Categoria: Cinema

  • Crítica | Esqueceram de Mim

    Crítica | Esqueceram de Mim

    esqueceram-de-mim 1

    Esqueceram de Mim é conhecido essencialmente como o clássico de natal capitaneado por Chris Columbus, ainda inciante na função de diretor após alguns sucessos como roteirista, e claro, lembrado pelo seu protagonista mirim Macauley Culkin. No entanto, a realidade estabelecida na casa dos McCallister foge um bocado do maniqueísmo comum à comédias infantis, em especial para o “herói” da jornada, o pequeno Kevin. A casa cheia, com quinze pessoas, pré-viagem natalina, demonstra que o garotinho não tem qualquer privacidade ou ideia do que é o conceito, tanto que seu desejo mais íntimo, é o de ficar sozinho em seu lar.

    Os preparativos para a viagem de fim de ano à Paris acirra os ânimos dos familiares suburbanos, ao ponto dos adultos estarem sem paciência, deixando os primos e irmãos de Kevin praticarem bullying  com o protagonista. Em um revide a uma dessas agressões leves, o garoto molha os passaportes de viagem, sendo posto de castigo por sua mãe, Kate (Catherine O’Hara),  que o isola no porão, em suma, a maior desculpa para ter sido deixado para trás.

    Há tramas paralelas a relação entre uma mãe preocupada e seu filho arteiro, como o ingressos dos dois assaltantes, Harry (Joe Pesci, que faz um esforço hercúleo para não pronunciar palavrões), que até se dá ao trabalho de se fantasiar de policial, e de Marv (Daniel Stern), que na intenção de assaltar a casa na ausência do clã, mas é nos agouros de uma criança, solitária e repleta de imaginação que moram os reais problemas que o roteiro de John Hughes alude. Kevin é deixado sozinho graças a correria que seus pais, tios e irmãos protagonizam, fator causado pelo claro cansaço que a rotina produz neles, gerando um desejo tão grande de fugir do cotidiano opressor da cidade de Chicago, que a falta de um dos membros da família simplesmente não é sentida ao partir.

    esqueceram-de-mim 2

    A criatividade da criança faz ver apuros que não existem, seguidas de atitudes pouco condizentes com o comum a um menino de sua idade, preparando ardis para os arrombadores, através de sombras causadas por objetos que ele monta em sua sala. A inteligência que ele demonstra talvez seja a manifestação da hiperatividade que sua mente produz, sobrecarregada pela paranoia enérgica comum ao quotidiano do americano médio. Kevin é o filho do meio, tanto em seu seio familiar, como na representatividade do comum cidadão inerte, inapto e sedentário do centro-oeste americano.

    O esmero de Kevin em montar armadilhas em sua casa confunde o analista quanto a origem desta influência, variando entre o arquiteto com sede de sangue Paul Kersey de Desejo de Matar e o veterano do Vietnã John Rambo. Em comum com o rapaz, os dois heróis de ação têm a desolação por estarem isolados do estado normativo de psique e sentimentos, e claro, a característica de servir como entretenimento fugaz para o seu público alvo específico. A repetição de piadas e situações tem um alvo óbvio, que é alcançar o clichê de humor infantil que normalmente funciona, e que no longa, logra exito. A expectativa por instaurar a normalidade narrativa faz contraponto com a trajetória incomum do garoto, que mesmo solitário e abandonado, consegue ter mais sobriedade e sabedoria do que qualquer adulto, rivalizando essa personalidade brilhante intelectualmente com a clara nostalgia originada de um filme que é considerado exemplar na temática natalina.

    O desfecho adocicado combina com a temática pueril e é condizente com o comum as comédias desta época anual. O fator mais discutível nem é o retorno da família à Paris e a quantidade de gastos exorbitantes desperdiçados entre ida e volta ao menos da parcela familiar envolvendo os pais e  fraternos de Kevin, e sim a necessidade que o protagonista tem de aprovação de Buzz (Devin Ratray), seu irmão mais velho e agressivo. A camada superficial do roteiro de Hughes tem como alvo a criança que assiste o filme, e a mais contestatória é bastante inspirada, mostrando como o consumismo desenfreado e o stress diários podem afastar pessoas que têm um vínculo sentimental inexorável, fazendo inverter até as prioridades tradicionais, unindo a isto uma fita divertida  e burlesca.

    Compre: Esqueceram de Mim

  • Crítica | 007 Contra o Satânico Dr. No

    Crítica | 007 Contra o Satânico Dr. No

    poster

    Criar um mito só não é mais difícil que mantê-lo. James Bond virou sinônimo de espião, e seu nome fidelizou o público com sua imagem, desde Sean Connery até Daniel Craig e suas várias faces ainda por vir. A personagem do agente mais secreto do mundo virou o mais amado e copiado de todos – incluindo a cinesérie de Spielberg, um tal de Indiana Jones que viria a aparecer nove anos após esta primeira aventura do Bond mais clássico e divertido de todos, na correria inicial de 1962 adaptada do livro Dr. No, de 1958. O escritor Ian Fleming jamais poderia prever o sucesso da sua versão mulherenga e (não tão) misteriosa de Sherlock Holmes, com o primeiro livro, Cassino Royale, levado as telas apenas em 2006. Por muito tempo, a saga foi a mais bem-sucedida do Cinema, mas já superada por Harry Potter e o universo Marvel.

    Na trama, um cientista louco que quer dominar o mundo nos esclarece sobre a SPECTRE, uma organização de gênios que, em tese, controla o mundo por trás das cortinas. São tais persianas que Bond, no melhor estilo Bogart em À Beira do Abismo é obrigado a queimar, em ordem de desvendar planos terroristas em uma base ultra-secreta na Jamaica. Assim como no filme de Howard Hawks ou em Uma Aventura na Martinica, o mito Bond encarna com perfeição em  Sean Connery, ainda tido por muito e por quem vos escreve como o melhor 007, não só pelo ator carregar aquele extinto charme da era de ouro de Hollywood, mas se para Pierce Brosnan e Daniel Craig o espião deve ser gélido, direto e mecânico em suas ações, quase assexuado se não fosse as bond girls, para o pai de Indiana Jones tanto cérebro quanto coração mediam o bom uso d’um gatilho. São esses detalhes que fizeram-no mito ao longo de mais de 50 anos e 24 filmes.

    Além de afirmar a mitologia bem apresentada neste primeiro filme, a produção mostra competência e, historicamente, o gênero ação deve (e muito) para esta obra e a outros como 007 Contra Goldfinger e Moscou Contra 007, aprimorando uma abordagem, mise en-scène, identidades e uma ambientação tidas, hoje, em 2015, como parâmetro por uma indústria que não sabe olhar para o futuro sem beber do passado.

    Quando o Bond mais Bogart de todos, bem como é descrito por Fleming nas páginas do livro homônimo, mata um dos soldados do perverso doutor em seu paraíso tropical para completar sua missão, sem provocar angustia na vítima ou derramar uma só gota de sangue, a primeira mocinha a acompanhá-lo mundo afora o indaga, assustada: “Por que fez isso?”, e Bond responde, “Porque precisava ser feito. Vamos!”, pronto! Está feita para sempre a mitologia e a ética de nosso espião em qualquer outra de suas missões; métodos e temas inesgotáveis, e bem revisados em Skyfall, de 2012, no provavelmente melhor filme da franquia (apesar de ser cedo para afirmar isso).

    Mesmo sobre questões extra-filme, como racismo, machismo e políticas globais, o filme é sóbrio o bastante para manter sua elegante atmosfera, aquele charme tão citado que verte da tela, tão envolvente, e interpreta um livro sério demais num filme bem divertido, e que simplesmente não envelhece jamais.

    Compre: 007 Contra o Satânico Dr. No

  • Crítica | Um Amor a Cada Esquina

    Crítica | Um Amor a Cada Esquina

    Um Amor a Cada Esquina 1

    Após um período aproximado de dez anos sem lançar um filme, o premiado diretor Peter Bogdanovich, retorna suas forças para uma comédia romântica estilosa, que lembra bastante a fase áurea de Woody Allen no gênero. Um Amor a Cada Esquina acompanha os relatos de Isabella Patterson (Imogen Poots), uma moça que usa da verborragia para se expressar, e que começa um conto sobre como a própria largou o ofício de prostituta para então, tentar a sorte como atriz.

    As confissões ocorrem em um consultório psicanalítico, semelhantes em espírito ao processo de espiação de pecados ocorrido na igreja católica. Patterson fala então de seu envolvimento no passado com Arnold Albertson (Owen Wilson), um homem solitário sentimentalmente que depois de fazer uso de seus trabalhos como prostituta, resolve convidá-la a sair, começando a partir dali a se importar com seus sonhos, de tentar ser atriz. O motivo dessa importância é bastante óbvio, já que Arnold é um diretor de teatro, entediado com seu casamento malfadado. A resolução dele envolve gastar 30 mil para que a moça largue o atual ofício e se dedique a se tornar uma atriz, de fato.

    O roteiro de Bogdanovich e Louise Stratten se desconstrói com menos de trinta minutos, revelando que o ato de “desapego” não era isolado já que ocorreu outras vezes para o diretor e tampouco inspirado já que ele ajudou moças com outros interesses, compondo assim uma prática comum de um sujeito cuja monotonia frequentemente invade sua rotina, fazendo dele e dos demais personagens que o cercam criaturas dignas de pena, mas não de torcida ou apego.

    Exceto Arnold e Isabella, que são trabalhados anteriormente, os outros personagens se valem de arquétipos, tendo poucas das suas características reveladas, o suficiente para cada um ter sua importância dentro do cenário romântico/amoroso complicado, com intenções escusas se misturando ao desejo.

    O personagem que se diferencia do trivial é a atriz e esposa de Arnold, Delta, vivida por uma (cada vez mais) inspirada Kathryn Hahn que, ao se descobrir traída, tem uma série de atitudes cujo estado emocional condiz em excesso com todo o desrespeito que sofre. Bogdanovich consegue se reinventar, após tanto tempo longe das câmeras, reunindo em sua comédia um humor não escrachado, condizente com o moderno cinema dos membros da produção executiva Wes Anderson e Noah Baumbach, digerindo o cinema desses para fazer algo com identidade própria e com um magnetismo hiperbólico.

  • Crítica | O Cidadão do Ano

    Crítica | O Cidadão do Ano

    cidadão

    Vermelho é a cor mais quente. Cor que irriga os campos de neve de uma região inóspita, mas repleta daquela “sujeira debaixo do tapete” que, no Brasil, não temos vergonha de pendurar no varal. Aqui, e não só aqui, corrupção já é clichê, furar a fila também; a violência então é figurinha, se tornou banal (exportada e importada). Ontem mesmo, já cronicando, subi num ônibus e pedi licença pra sentar ao lado de uma senhora, o que fez algumas pessoas prestarem atenção em mim. Pedir licença é o que surpreende por aqui, fazer o que, mas num contexto social nórdico, onde cultural e teoricamente todos são mais educados, o sangue explode junto d’um choque incomparável ao vê-lo.

    É incomum, é gráfico e gritante, por lá e também em nível universal, já que todos ainda carregamos uma consciência de certo e errado ao presenciar certas cenas. Enquanto Cláudio de Assis filma A Febre do Rato com aquele “mais do mesmo” do Cinema nacional, tudo o que a neve esconde nas veredas do leste europeu tem impacto e mistério e atração triplicados. O Cidadão do Ano brinca com essa “ética” do impacto cultural diante do inesperado; do escândalo que depende da cultura da plateia para acontecer, lembrando a todos que a arte tem responsabilidades apenas consigo mesma.

    Um filme livre, absolvido de culpa e cujo vermelho e branco são cortados pelo azul da frieza emocional, num mundo gélido, glacial e deliciosamente contemporâneo, na essência otimista que a palavra carrega. A linhagem de Onde os Fracos Não Têm Vez e Drive se expande a cada ano, com um homem, por X razão (sem spoilers) decidindo ou precisando fazer justiça com mãos pesadas e ombros ainda mais! Se em Leviatã ou no ótimo Era Uma Vez em Anatólia é a injustiça que alimenta a barbárie moral entre os homens, O Cidadão do Ano atinge o nível de identificação global que o ambicioso Um Toque de Pecado alcança, indo além dos valores da região, tanto chinesa quanto sueca, e mostrando a vida como ela é: tempestuosa e competitiva à todos nós, hoje em dia.

    Uma história tratada como se baseada em fatos reais, na linha entre a ficção e seu primo pobre: O tal do real. Toda noite, quando o branco escurece e Nils, um simples trabalhador montanhês, levanta da sua cama e busca vingança pela morte de seu filho, o Cinema agradece pela bela forma que o filme retrata as emoções que o regem, e nos regem durante a projeção. Nós podemos sentir tudo que o injustiçado sente, seja deixando a esposa tranquila nos lençóis de madrugada, seja em seu rosto duro, ou melhor: Endurecido! Um principiante na arte do “olho por olho, filho por filho”, Nils não tem um mestre ninja pra lhe ensinar alguns truques, nem superpoderes ou a mira (e o charme) de Clint Eastwood. Ele tem mais. Muito mais.

    Nils tem a ira de um pai órfão de filho que, por onde passa, a mágoa se materializa em água. Água vermelha e, logo depois, água de cachoeira, nas cataratas que a natureza não congela, para que a natureza de um pai sinta o gosto puro de retaliação! Mas o diretor Hans Moland não faz questão de pesar seu filme na atuação de Stellan Skarsgard, talvez um dos melhores atores vivos; um monstro indiscutível em cena. O filme resiste a ser um western spaghetti na neve, apostando sua estrutura dinâmica de drama e suspense numa espiral de causas e registros culturais e regionais, até chegar ao clímax que a história merece, ainda que dominado por um homem e a violência imprevisível que ele acarretou.

    Mas vai dizer que não tem uma pitada dos Coen, aqui? O humor quase surreal e a ação parecem ser inerentes a trama, surgindo do absurdo moral de quem vive a violência e a encara como um negócio; no caso, a máfia. É tanto na crueza gélida, quanto na falta de cinismo, ou seja no apelo elegante pelo explícito onde tudo é banhado e ocorre, que o filme orgulhosamente mostra sua cara, ostentando equilíbrio e sem filtros para extrair a nossa satisfação até o último minuto. Porque, assim como Nils, o Cinema também chegou muito longe, só que ainda tem muito a perder. Felizmente, O Cidadão do Ano reintegra à arte a posse da realidade, como todo bom filme faz, resultando num universo próprio, ainda que real, onde a tríplice das cores que o permeiam ditam o que sentimos, e o que podemos discutir  depois dos créditos finais.

  • Crítica | Star Wars – Episódio VII: O Despertar da Força (3)

    Crítica | Star Wars – Episódio VII: O Despertar da Força (3)

    19_AVCO_Payoff2_B1_Brazil

    Maior fenômeno da cultura pop, maior franquia da história do cinema e com o filme mais esperado do ano (possivelmente da década), Star Wars dispensa comentários sobre sua importância. A decepção dos fãs com a nova trilogia encerrada em 2005 era nítida. Tamanha expectativa com a estreia de A Ameaça Fantasma em 1999 só foi igualada pelo tamanho da decepção com filmes tão ruins e que desrespeitavam praticamente todas as premissas estabelecidas na trilogia original. É dentro desse turbilhão de emoções que a franquia ganha em 2015 o primeiro de seus novos episódios, chamado “O Despertar da Força”, dessa vez sob o comando da Disney e direção de J.J. Abrams, com roteiro de Lawrence Kasdan, Michael Arndt e do próprio Abrams.

    Atingir uma expectativa tão grande não era tarefa fácil, e ciente da cobrança (provavelmente injusta) em cima de si, Abrams desde o início resolveu focar justamente onde a nova trilogia falhou: o respeito pela saga original, sua mitologia e simbologia. Dentro deste aspecto, o Episódio VII é muito eficiente. O visual se assemelha muito aos filmes originais, tanto nas cores, vestimentas e designs, como nos pequenos detalhes de botões em centros de comandos, luzes de painéis e toda a arquitetura interna e externa da chamada “Primeira Ordem”, que se assemelhava a do Império, quanto do restante da galáxia.

    A história gira em torno basicamente de dois personagens, Rey e Finn. Rey (Daisy Ridley), residente do planeta Jakku e que sobrevive juntando peças de antigas naves caídas em seu planeta, tanto do império quanto da aliança rebelde, em troca de rações de alimento. Dotada de um espírito perseverante e determinado, Rey sofre naquele cotidiano árduo, ela sonha com a volta de sua família para resgatá-la, já que vimos um flashback onde ela é ali abandonada. Finn (John Boyega) é um stormtrooper que deserta por se recusar a cumprir as ordens que recebe para executar habitantes de Jakku em sua primeira missão, que era recuperar o mapa da possível localização do antigo Jedi Luke Skywalker, em posse do piloto rebelde Poe Dameron (Oscar Isaac) e também buscado pelo vilão do filme, Kylo Ren (Adam Driver). Dameron o esconde em uma unidade BB, chamda BB-8, que encontra Rey, que encontra Finn, que encontram a Millenium Falcon, que é encontrada por Han Solo (Harrison Ford) e Chewbacca (Peter Mayhew/Joonas Suotamo), e de onde a história principal se desenvolve como apresentada nos créditos iniciais: o objetivo é encontrar Luke Skywalker. Os rebeldes querem o retorno do antigo Jedi para ajuda-los, e a Primeira Ordem quer encontrar para destruí-lo, afinal enquanto um jedi estiver vivo, é uma ameaça a seus objetivos.

    Um ponto que o novo filme acerta em cheio é na escolha do novo elenco. Daisy Ridley e John Boyega possuem uma química raras vezes vista em filmes do gênero, o que mostra a noção perfeita dos produtores no casting, e como eles sabiam exatamente o que estavam buscando no filme (ponto positivo para escolherem como protagonistas um negro e uma mulher, tentando tornar o universo de Star Wars mais diverso). Atores mais conhecidos como Oscar Isaac e Domhnall Gleeson (General Hux) também agregam um enorme valor devido a seu talento, mas sempre ajudados por cenas construídas especificamente para os atores darem vida a seus personagens da melhor forma possível. Já Harrison Ford não consegue transmitir de novo o mesmo carisma do Han Solo que vimos na trilogia original. Notório carrancudo a respeito de Star Wars, Ford parece a todo tempo estar em modo automático, e apesar de seu papel funcionar bem na maior parte do tempo, parece não ver a hora de tudo acabar, até mesmo seu figurino demonstra essa preguiça, se assemelhando mais a um cosplay de Han Solo do que o legendário piloto. Tanto que seu destino no filme parece até mesmo saído de uma sugestão sua. Também retornam a seus papéis clássicos Carrie Fisher como a agora General Leia Organa e Anthony Daniels como C-3PO, além de R2-D2 (Kenny Baker).

    Star Wars: The Force Awakens Ph: Film Frame ©Lucasfilm 2015

    Porém, se em todo o respeito ao universo o novo episódio é irretocável, onde ele falha é justamente no excesso de cautela na fórmula da franquia. O Episódio VII recicla praticamente inteira a trama principal do Uma Nova Esperança de 1977. De novo vemos planos escondidos em um robô por um membro da resistência que é capturado pelo vilão principal e por ele torturado. De novo (pela terceira vez) temos uma arma grandiosa capaz de destruir planetas usada como forma de impor a força da “Primeira Ordem” no universo. De novo o plano dos rebeldes é montado em um diálogo expositivo rápido em frente a uma projeção. De novo o plano constituído é destruir essa arma com um ataque aéreo. De novo alguém precisa desabilitar um escudo internamente. De novo temos uma sequência aérea com direito a voos em uma trincheira e a arma é explodida. Tudo filmado de forma muito eficiente e empolgante, sem o marasmo dos episódios I, II e III. Porém, que ainda deixa o fã, lá no fundo, um pouco decepcionado, porque parece que tudo em Star Wars gira em torno de uma arma que precisa ser destruída. Se nos primeiros filmes ao menos o desenvolvimento dessa trama seguia um andamento mais lento, neste capítulo da saga o ritmo frenético do filme mal deixa o espectador respirar para absorver tudo o que está vendo na tela. Não há um momento de pausa, e talvez seja sinal dos tempos, mas um equilíbrio maior neste sentido poderia ter dado mais espaço aos personagens para se desenvolverem de forma mais subjetiva.

    Outro ponto também mal explicado é a origem da “Primeira Ordem”, organização que substituiu o antigo Império. Também não é falado nada a respeito de Kylo Ren e sua ordem, assim como seu mestre, Supremo Líder Snoke (Andy Serkis), o que reflete não uma tentativa de não contar muito da história, e sim um certo descuidado com o roteiro, afinal, essa falta de informação faz com que ambos os vilões não representem uma ameaça tão grande quanto Darth Vader no primeiro filme. Porém, a relação entre o braço militar da Primeira Ordem, representado pelo General Hux (em alusão clara ao nazismo) e o braço místico representado por Ren é muito bem construída, e a crescente tensão e disputa entre os dois personagens pela aprovação de Snoke serve como catalisador para diversas situações interessantes no filme, especialmente para Ren, que mostra uma fragilidade interessante ao se dizer tentado pela luz. Mesmo Adam Driver não entregando uma atuação maravilhosa, seus melhores momentos ainda ficam enquanto usa a máscara e entoa a voz mecanizada e assustadora que emula, propositalmente, Darth Vader. Outro personagem muito esperado pelos fãs, a Capitã Phasma (Gwendoline Christie), possui uma participação reduzida no filme, o que se pode extrair daí dois pontos: a menção a Boba Fett, personagem construído pelos fãs e que nunca fez muita coisa nos filmes, e que ela irá voltar nos próximos episódios, possivelmente com um papel maior.

    star-wars-7-the-force-awakens-could-kylo-ren-really-be-a-skywalker-668067

    Mas, mesmo com esses pontos negativos, o principal objetivo do filme é mantido, que era resgatar o espírito da franquia e a magia de se contar uma história dentro da mitologia que cativa tanta gente ao redor do mundo. A excelente cena de Rey tocando no sabre de Luz de Luke e tendo seu primeiro contato com a força utiliza de efeitos especiais como deve ser, em favor de se contar uma história. A Força é explicada a ele na cena seguinte por Maz Kanata (Lupita Nyong’o) relembrando os ensinamentos de Yoda em O Império Contra-Ataca, deixando de lado a bobagem pseudo-científica dos midi-chlorians inventada por Lucas em “A Ameaça Fantasma”. Outras pequenas homenagens ao universo também são feitas, quando Finn enfrenta com o sabre de luz um stormtrooper que empunha uma arma que lembra uma vibroblade em um duelo muito bem construído. A opção de Abrams pelos cenários reais ao invés do tão criticado CGI foi louvada por praticamente todos, e o resultado é nítido. Tudo parece real (e é!), nos fazendo acreditar em todo momento em tudo o que está acontecendo na tela. Em momento algum da projeção a credibilidade do filme é quebrada por conta de algum efeito especial mal acabado. Tanto os monstros mais simples quanto as excelentes e bem trabalhadas sequencias de confronto entre as X-Wings e os TIE Fighters passam um realismo que o fã de Star Wars sempre quis ver novamente, mas devidamente atualizado. A leveza do humor também consegue apagar o marasmo das tramas políticas da nova trilogia, e tanto BB-8 (sabiamente utilizado) quanto Finn (e também várias cenas com os stormtroopers) possuem cenas que tiram risos naturais da platéia.

    As cenas de luta também são outro ponto positivo, sendo muito bem feitas e distantes do balé estéril mostrado na nova trilogia, como o próprio Abrams havia deixado claro que iria fazer. Com pouco treinamento, não seria possível os personagens exibirem tamanha técnica nos duelos, o que torna a emoção e a visceralidade dos golpes e defesas ainda maiores. O duelo entre Rey e Kylo Ren, apesar de causar estranhamento inicial (afinal, como ela empunhando um sabre pela primeira vez iria competir com um mestre da ordem Ren?), consegue transmitir em poucos minutos uma carga dramática muito grande, e a superação de Rey utilizando a Força estabelece-a como o que era desde o início, um campo de energia que depende da pessoa usá-la e canalizá-la corretamente, não importando você ter décadas de treinamento de esgrima. O que importa é a Força, sua vontade, determinação e o quanto você acredita fielmente nela. Neste filme a Força é realmente importante e um de seus maiores méritos é justamente mostrar como ela é poderosa. Kylo Ren parando no ar um raio do blaster de Poe Dameron é fenomenal. O uso que faz da Força a todo momento nos mostra mais detalhes do que a saga havia mostrado até então. O mesmo acontece com Rey conforme ela vai descobrindo seus poderes enquanto vai sentindo-os.

    Portanto, “O Despertar da Força” entrega justamente aquilo que os fãs esperavam tanto. Um filme fiel as suas origens e que tratasse todo o seu legado com respeito. J.J. Abrams se declarou fã da franquia por diversas vezes, e talvez esse excesso de respeito tenha tornado o filme seguro demais, sem praticamente tomar nenhum risco sob o ponto de vista narrativo. Porém, com o tamanho estrago feito pelos três filmes anteriores da franquia, essa escolha é perfeitamente compreensível. O que podemos esperar agora é, com o universo novamente consolidado, que novos objetivos sejam traçados e que possamos ver novas histórias ser contadas de outras formas. O Império Contra-Ataca é o que é justamente porque a sua frente tem alguém que entende a linguagem cinematográfica mais do que entende de Star Wars. Entende a motivação por trás de cada personagem e as ações condizentes que eles deveriam tomar. Entende que pequenos detalhes fazem a diferença entre algo comum e algo fenomenal. Não fosse Irvin Keshner, Han Solo nunca teria dito “Eu sei” ao ouvir que Leia o amava. É isso que a franquia precisa.

    O Episódio VIII já tem seu diretor contratado, o novato e promissor Ryan Johnson, que sempre carrega uma atmosfera noir em seus filmes. Com tempo, um bom roteiro e um pouco de sorte, talvez tenhamos algo novo neste sentido. As expectativas agora estão mais altas do que nunca (ainda mais pela cena final do Episódio VII), pois a comparação da sequência ser melhor que o anterior, relembrando os episódios IV e V, será feita. Ao menos agora estaremos felizes esperando o próximo, e não mais apreensivos.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Star Wars: Holiday Special

    Crítica | Star Wars: Holiday Special

    SW Holiday Special 1

    Versão defenestrada por George Lucas,  misturando estilos diversos, Star Wars Holiday Especial teria “tudo” para ser considerado canônico, exceto é claro a qualidade do filme anterior. O elenco que protagonizava todo o filme premiado estava de volta, claro, em cenas isoladas, para compreender a agenda de cada um dos astros, acrescido também das curiosas criaturas, Malla, Itchy e Lumpy, mais tarde apresentados.

    A história começa com Han Solo (Harrison Ford) e Chewbacca (Peter Mayhew) cruzando o espaço, a bordo da Millenium Falcon, para chegar ao planeta Kashyyyk, onde o Wookie comemoraria junto a sua família, o Dia da Vida, um claro equivalente ao natal terráqueo. As mudanças começam pela chamada, que inclui a nomeação do elenco, ator por ator, diferente dos créditos de toda a saga, que só elencava o cast após o término dos filmes, tradição que seria ratificada em 1980 com Império Contra Ataca.

    As criaturas que interpretam os novos personagens, citadas anteriormente, são parte da família de Chewie, e estão ávidas a espera do seu ilustre parente. O trio protagoniza cenas horrendas, na sua casa na árvore, conversando abertamente sem qualquer legenda. O cúmulo ocorre quando elas dialogam através de um holograma com Skywalker (Mark Hammil, com um penteado risível), que deixa claro não entender qualquer palavra daquele balbucio, mas que ao final, percebe que a dupla de caçadores de recompensas eram perseguidos pelo Império, claro, com cenas repetidas do primeiro filme, se valendo do orçamento anterior. O detalhe são os diálogos pífios entre o pretenso Jedi e a Senhora Wookie.

    SW Holiday Special 7

    Os absurdos começam pela programação “televisiva” que os wookies consomem, com programas de dança, de cozinha e musicais, protagonizados por humanos, que produzem cenas vergonhosas, dignas de riso em um primeiro momento, mas que se perdem dentro da sua própria comicidade, podendo causar uma sensação semelhante ao desejo por suicídio no fã mais extremista da saga. Para surpresa geral, o personagem Saun Daunn (Art Carney), o mesmo que comunicou a família que Chewie estava sendo perseguido pelos imperiais, aparece na porta da casa com os presentes natalinos, chegando ao cúmulo de pedir “bons modos” aos wookies. A sequência é fechada com uma situação catastrófica, onde o ancião Itchy (pai de Chewie) assiste a um clipe musical horroso, que seria uma versão de pornografia via hologramas imaginários, suavizados em sensualidade por ser uma produção televisiva.

    Toda a aura tosca de Holiday Special, torna-se curiosa e até charmosa, visto a vergonha que o criador da franquia tem por ela. A cultura de ódio a George Lucas torna a obra uma coqueluche rara e até abraçada por alguns fãs, que veem nela um protótipo da quantidade de absurdos que ocorreram nos filmes dos anos 90 e 2000.

    Há outras cenas com música, que ocorrem em meio a invasão do Império a cada de Chewbacca, além de inserções de cenas animadas, que claramente foram feitas para reunir os personagens dos atores que não puderam participar mais ativamente das gravações, por questões de agenda ou por simples vergonha. A explicação para a mudança de estilo, é a visualização da criança Wookie, em um visor especial, que faz ele enxergar Luke, C3PO (Anthony Daniels) e R2 (curiosamente não creditam o ator)  viajando a bordo de uma Y-Wing (fato jamais ocorrido na saga original) para interceptar a “perdida” Milenium Falcon. É dentro deste segmento que é apresentado Boba Fett, que mais tarde se tornaria em um boneco da Kenner, antes mesmo de sua aparição nos filmes. O tom de obviedade faz o personagem já ser encarado como vilão desde o começo, o que era de se esperar em uma produção tão mal feita.

    SW Holiday Special 5

    Próximo do final, ocorrem momentos ainda mais toscos, como a ida a cantina de Mos Eisley, em cenas e cenários completamente diferentes do feito no filme original, seguidos da chegada de Han e Chewie a casa do wookies, onde Solo declara a um modo tão vergonhoso, dizendo que o clã é importante para si, que Ford chega a corar de vergonha, situação piorada por não haver qualquer menção anterior a tal família, ratificando que coerência não é um pré-requisito para a produção.

    Mas o melhor certamente foi guardado para o final, onde os wookies usam túnicas vermelhas – evidentemente inúteis, já que os pelos cobrem quaisquer de suas “vergonhas” – pontuada pela chegada de Luke, Leia(Carrie Fischer), os droids e demais personagens, repetindo as músicas de John Williams, executadas ao final de Uma Nova Esperança, para permitir que Leia celebre o tal Dia da Vida, cantarolando no mesmo ritmo das canções tema, para nem meia dúzia de homens fantasiados de macacos gigantes felpudos, com fantasias tão mal feitas que certamente seus interpretes não aguentariam assumir a autoria dos personagens.

    Star Wars Holiday Special tinha um potencial tão destrutivo, que o autor da saga “caçou” todas as cópias deste produto, o que tornou a visualização do filme na íntegra um trabalho árduo, por anos, especialmente para quem não tinha o domínio da língua inglesa. Em sua curta duração, a fita consegue agredir quase todo o cânone da saga e irritar profundamente qualquer pessoa que já tenha gostado da jornada de Luke e dos outros.

  • Crítica | The Ridiculous 6

    Crítica | The Ridiculous 6

    The-Ridiculous-6-Poster

    O cinema de Adam Sandler, salvo raras interpretações dramáticas, se divide em duas vertentes de comédia. Uma delas, a primeira na qual o astro se tornou conhecido, dedica-se a um humor explícito entre ironia, paródia e piadas físicas de apelo fácil. Outra se ancora em certa tradição da comédia romântica, transformando o ator em uma espécie de galã em histórias em que o conhecido humor exagerado fica mais leve, integrando melhor com a trama.

    Em ambos os caminhos, porém, o ator é criticado e ainda mantém o status de um dos atores menos rentáveis da indústria. O forte apelo de algumas produções se somam a outras obras pouco frutíferas, promovendo um caminho difícil em que o público nunca parece receptivo com suas histórias. Um fato que ainda não o impediu de ser personagem principal de diversos filmes e de manter sua popularidade fora dos Estados Unidos. Em nosso país, por exemplo, seus filmes sempre estreiam em primeiro lugar e se mantêm na lista dos mais assistidos.

    Assinando com a Netflix para produzir quatro longas-metragens, The Ridiculous 6 é o primeiro fruto dessa parceria que equipara o cinema tradição e o serviço de streaming em um mesmo patamar, com grandes produções e estrelas de destaque. Na trama, Tommy “Faca Branca” Stockburn parte em uma jornada para resgatar seu pai fora da lei, e no caminho descobre que tem cinco irmãos.

    Logo após o lançamento, as críticas negativas atribuíram o humor de Sandler como preconceituoso com os personagens abordados. Como em outras obras anteriores com o comediante, o roteiro utiliza clichês comum, no caso, o Velho Oeste, para produzir personagens caricatos. Como humorista, o ator nunca renovou seu repertório cômico e seu estilo de sempre é o visto em cena com piadas sobre escatologia, personificando figuras deslocadas e usando o riso como paródia. Nada de novo dentro de seu estilo de humor. A comédia sempre visa um alvo, afastando a realidade para rir de si mesma e, neste cenário, a produção ainda é capaz de rir do conceito que o cinema americano criou do cinema Western.

    Em cena se destacam as parcerias costumeiras do ator, como Rob Schneider e John Turturro, compondo certa química para uma história que não apresenta nada de novo. Dado que o humor de Sandler está preso à própria formula criada, aos poucos parte do público começa a rejeitá-lo pelo cansaço.

  • Os Bastidores, Detalhes e As Mudanças de George Lucas em Star Wars

    Os Bastidores, Detalhes e As Mudanças de George Lucas em Star Wars

    SW George Lucas 1

    Desde 1997,  passados 20 anos da primeira vez em que a abertura da 20th Century Fox quase se mesclava com a música de John Williams e os letreiros amarelos prenunciando o intenso conflito entre rebeldes e o Império, há ainda o mesmo assombro do público com o Star Destroyer Cruzader invadindo o espaço atrás da nave Tative IV ao perceber novas mudanças em meio aos três filmes clássicos – e canônicos – de Mister George Lucas.

    O aspecto que talvez não esteja claro para o aficionado atual – ainda mais o alienado – era todo o cenário cinzento que ocorria nos anos 1970. Graças a fatores como Watergate, a Guerra do Vietnã e muitos outros eventos históricos, a maior parte do público americano consumia fitas protagonizadas por anti-heróis, homens talhados pela vida, que se valiam de drogas e bebidas para fazer aplacar a sua miséria existencial.

    Em meio a tantos outros expoentes do futuro cinema, com De Palma, Coppola, Scorsese e De Palma, Lucas surgia como um homem que apontava para outras vertentes, ainda que seu THX-1138 – tanto o curta, quanto o longa- fossem produtos da mesma depressão emocional que inspirava os seus contemporâneos, havia nele a vontade de resgatar tempos mais simples, o que o fez realizar seu American Grafitti – ou Loucuras de Verão, na tradução brasileira. No entanto, ainda faltava algo, já que o jovem diretor não gostava das interferências e intervenções que os produtores faziam em seus dois longas-metragens lançados.

    A descoberta de Joseph Campbell e seu livro O Herói de Mil Faces ajudou o contador de histórias a organizar sua epopeia, se valendo do monomito para tal, um conceito que resume a tradição retórica e oral no “contar histórias”, usando arquétipos que facilitariam o diálogo com o público, ainda que alguns desses detalhes fossem ligeiramente diferentes em Star Wars, especialmente em relação à “donzela em perigo” da Princesa Leia de Carrie Fischer, que, apesar de estar encarcerada, não era exatamente a figura feminina sem ação.

    SW George Lucas 2

    Mesmo os terríveis erros de direção, especialmente nas cenas de tiroteios, onde charmosamente se apresentavam dois droids praticamente invulneráveis – e que serviriam de alívio cômico durante três filmes e, claro, a pontaria sempre certeira da cônsul e princesa Leia Organa – traziam um extrema simpatia para a versão de 1977 de Uma Nova Esperança. Misturadas ao caráter dúbio da perseguição de Darth Vader aos resquícios da Aliança Rebelde (até então um rumor, aos olhos do poderoso governo totalitário), as coincidências convenientes se diluíram, não precisando ser desnecessariamente revistas e remontadas.

    Curioso é que George Lucas não mexeu nos erros mais crassos de seus roteiros, e sim no que poderia soar flagrante aos olhos do público mais conservador. A falta de coragem e dificuldade em seguir em frente acabaram por fazer o antes promissor cineasta se tornar um bilionário enfadado, entediado, sempre preocupado em agradar às plateias que o rejeitaram antes, em detrimento do público que sempre lhe foi fiel, e que se agigantou graças à popularidade.

    Lucas se tornaria o avesso de Luke: enquanto o jovem fazendeiro buscava a possibilidade de novas aventuras, lutando contra o status quo, seu criador faria basicamente o exercício de regurgitar o trabalho que o tornou famoso, não conseguindo sair da prisão em que ele próprio se impôs. As boas ideias de Star Wars teriam vindo de criadores mais inteligentes e experimentados, na concepção de alguns fãs ranzinzas, reunindo as intenções dignas de Kurosawa, Flash Gordon, Frank Herbert e afins.

    As dificuldades em gravar começaram pelos problemas com clima, com uma tempestade de areia terrível na Tunísia, que destruiu grande parte dos cenários de Tatooine. O caos se instaurou e por pouco a franquia não parou antes mesmo de começar, já que a maioria dos atores reclama o tempo inteiro, exceção feita a Alec Guinness, que apesar de não acreditar em nada na história, era o mais profissional e experiente do elenco.

    SW George Lucas 3

    A versão “desespecializada”, compilada a partir de rips dos Blu-rays da antiga trilogia executada por fãs inconformados com tantas mudanças em pós lançamento, faz lembrar o quão épica era a ideia inicial do jovem diretor e roteirista nascido em Modesto Califórnia. Desde a tragédia que acometeu os tios adotivos de Skywalker, até o encontro com Obi-Wan “Ben” Kenobi – que emula os grandes mestres dos samurais, ainda que seja muito mais ativo do que o costume dos homens sábios –, e, claro, o caminho até Alderaan, incluindo a recusa de Luke e aceitação de seu destino, algo já desejado antes, são elementos que deram forma aos escritos de Campbell, um manifesto que ainda não era tão banalizado quanto atualmente é.

    A burocracia tomou conta daquele universo e manifestou-se de forma brutal através do conselho que responde ao almirante Grand Moff Tarkin, de Peter Cushing, um dos homens fortes do governo tirânico e que acabou de dissolver o conselho de senadores, talvez o último bastião da antiga república. A derrubada deste era na verdade um ato simbólico, uma última desculpa que visava justificar os desmandos do autointitulado Imperador.

    Skywalker era um personagem com o caráter em formação, tão inseguro quanto seu intérprete Mark Hammil, propenso a fugas e desobediências, e até a não ceder a desaforos. Tal característica seria comum – e ainda mais exacerbada – no Han Solo de Harrison Ford, que não sequer pensa em não desferir o primeiro “golpe” em seu opositor, Greedo, ao se ver na mira da morte. A atitude mais enérgica era pouco sutil e representava a mudança mais esdrúxula e criticada por quase todos os fãs, fator que retiraria do caçador de recompensa (e cafajeste) toda a sua atitude de anti-herói arrependido. O Solo que “atira depois” seria incapaz de improvisar junto a Luke e Chewie uma invasão a uma estação espacial impenetrável, bem como planejaria raptar a senadora que já era refém. A trinca de protagonistas ganharia o acréscimo da ardilosa Leia, que, sem saída, encontra uma rota improvisada, uma atitude típica de uma inconformada política.

    A fuga da Estrela da Morte abre precedente para duas questões interrogativas, a primeira em relação ao legado de Kenobi e a segunda em relação ao grupo de rebeldes, que ao se despedir do esquadrão Rogue usa a famosa frase “que a força esteja com você”, como incentivo para os pilotos/atiradores. É sabido que a religião dos Jedi estava em desuso, praticamente sepultada após a extinção da ordem anos antes, tendo em Vader seu único remanescente, ao menos de modo oficial. Os membros da aeronáutica rebelde teriam dito aquilo como mais uma atitude de resistência, onde o apego ao Divino seria o maior ato de revolta possível, em comparação com a burocracia adotada pelos que restaram da República.

    SW George Lucas 4

    Paul Hirsch e Richard Chew seriam fundamentais para o sucesso da empreitada de Lucas em Star Wars. Depois de terminar suas filmagens, e após deixar a maioria dos atores decepcionados com sua direção frouxa, que basicamente pedia mais intensidade e velocidade, George Lucas se via com problemas de prazo e com um corte de filme terrível em mãos. A saída foi demitir seu então editor, que se recusava (por motivos certos) a fazer o que ele queria, e então a dupla começou a “salvá-lo”. O problema maior é que este mérito premiado no Oscar fez ele criar o hábito de agir como diretor dentro da sala de direção, e não no set, fato que se agravaria de 1999 em diante.

    O resultado das primeiras impressões da recém-criada Industrial Light and Magic era terrível, e as acusações iam desde desleixo puro e simples até o desperdício de tempo somente com substâncias ilícitas, dada a caracterização hippie da maioria dos operários. A pressão fez o cineasta acelerar ainda mais os processos, além de encontrar em Ben Burtt e sua edição de som primorosa um fator que garantisse a maior parte da alma da trilogia. O maior mérito de Lucas, aliado a persistência do produtor Alan Ladd Jr., que quase perdeu seu emprego pela Fox por causa do filme, certamente foi conseguir reunir todas essas mentes inteligentes em torno do mesmo propósito, conseguindo harmonizar tudo isso de modo que ficasse realmente lendário, tão escapista quanto ele queria no início.

    A vitória dos mambembes soldados revoltosos sobre os ditames dos poderosos e bem armados membros do reinado sombrio é simbólico, remete a uma época mais simples, de luta entre o bem e o mal, como era na época da Segunda Guerra Mundial, em que aliados e o eixo se digladiavam. O resgate a essa temática se via necessário, diante da grande depressão que os Estados Unidos passavam, fato que também fez da série Rocky um sucesso. A ressalva resulta na questão do simplismo que seria imposto ao recém criado gênero de “blockbuster”, tencionado por Tubarão de Steven Spielberg, e fundamentado neste pelo merchandising que Lucas garantiu a si antes do fechamento de contrato, expandindo o conceito que se iniciou em Planeta dos Macacos e tornando profissional a comercialização de “bonecos” e demais produtos.

    SW George Lucas 6

    Em 1978, George Lucas parecia ter um cuidado maior com exposição de sua marca, já que Star War Holiday Especial foi defenestrado e recolhido, execrado por ele e negado sempre que se levantava a possibilidade da obra ter existido. Para todos os efeitos de discussão a respeito do que é cânone e do que é universo expandido na franquia, uma vez que o especial continha o elenco do primeiro filme. Dois anos após, a trajetória de Luke, Leia, Han, Chewbacca e os droides prosseguiria, com o anúncio de novos personagens a serem explorados.

    O Império Contra-Ataca começa nas planícies geladas de Hoth, provando que no universo Star Wars os planetas têm normalmente um só clima. A arenosa e calorenta Tatooine fora gravada na Tunísia, enquanto o planeta gelado que servia de base para os rebeldes, localizava-se em Finse, Noruega.

    SW George Lucas 7

    Dois fatores ajudaram a fundamentar mudanças na franquia, primeiro, o acidente que vitimou Hammil, deformando seu rosto, e outro dentro da própria trama, com o tema Marcha Imperial estreando, no que é possivelmente o maior marco musical de toda a saga. A entrega do roteiro nas mãos de Leigh Brackett e Lawrence Kasdan foi uma saída excelente, bem como a direção de Irvin Kershner, que suplanta muito bem os defeitos de George Lucas em ambos os aspectos. É na abordagem do trio que acontecem as cenas com maior tensão sexual da saga, entre Solo e Organa, além da lendária figura do mentor, vista na diminuta criatura que se apresenta para Luke.

    Dagobah serve de avatar da caverna de preparação do herói, o lugar para onde o protagonista recorre a fim de acumular conhecimento e se preparar para a grande batalha. Luke é um aluno arredio, complicado e incrédulo; possui vícios como a teimosia e arrogância, que não ficavam tão gritantes antes, mas que em ambiente isolado pioram demais. Com Yoda, Skywalker percebe que seu pior inimigo é ele mesmo, e ainda assim se deixa levar pela pressa e pela aproximação do perigo. A imprudência o faz agir instintivamente, indo atrás de seus amigos emboscados.

    A figura criada por Stuart Freeborn teria que ser mais convincente do que qualquer ator humano, e a liga de plástico só fez sentido graças ao ótimo manuseio de Frank Oz, que trazia sua experiência em Muppets para orquestrar um mestre zen esverdeado, diferente de tudo o que já existia. As lições de Yoda ecoariam pela eternidade, no personagem mais inspirado pensado por Lucas – ao menos no lado do Bem.

    SW George Lucas 8

    Grande parte dos méritos do segundo filme se dá pela distância de seu criador, que procurava outras locações. A bifurcação da trama, dividindo as ações em duas frentes, se assemelhava à divisão da Sociedade do Anel, no livro As Duas Torres, de J. R. R. Tolkien. Toda a parte passada em Bespin faz discutir as intenções de Han Solo, especialmente por compará-lo com o caráter de seu antigo amigo e aliado, Lando Calrissian (Billy Dee Williams), um antigo apostador que, por ter se “endireitado”, teme perder seus feitos.

    O roteiro de Empire Strikes Back é formado por sucessivos movimentos de traição, primeiro de Lando com Solo, depois, Lando com os lacaios de Vader – evidentemente por arrependimento, dada a quebra do acordo entre ambos – depois, no discurso do Darth junto ao seu filho, tencionando juntar as forças familiares contra o Imperador. A motivação dos personagens é carregada de duplicidade de pensamento e incertezas, gerando uma carga de ambiguidade até então desconhecida pelo maniqueísta projeto inicial. Além disso, o suspense e a tragédia são muito presentes nos momentos finais, deixando em aberto a sensação de que as forças malignas venceram, sem mais espaço para o otimismo desenfreado da encarnação anterior.

    Apesar da relação antiga entre Kershner e Lucas ser baseada no mesmo mote visto entre Obi-Wan e Luke, a cisão ocorreu, com acusações de “ruína do filme”, atrelada às mudanças que Kershner havia feito dentro da trama. Envolvido com outros aspectos da produção, o cineasta decidiu por seguir na descentralização de funções. A saída obrigatória do nome de Lucas do quadro do sindicato de roteiristas e diretores, se fez como represália à realização de seu filme de modo independente. O ressentimento por ter a audácia retribuída com isso fez com que Lucas se isolasse ainda mais, tendo de abrir mão de ter Spielberg como diretor, optando então por Richard Marquand, o mesmo de O Buraco da Agulha, baseado no livro de Ken Follet.

    SW George Lucas 9

    O Retorno de Jedi se inicia com o anúncio de que o Imperador visitará as instalações da nova Estrela da Morte – ainda em construção – e claro, o retorno da aventura a Tatooine, para encontrar Jabba the Hutt, que tem em seu poder o Capitão Solo, preso em carbonita, argumento utilizado no filme anterior para o caso de Ford não aceitar renovar seu contrato.

    A exploração do submundo de crimes de Tatooine é interessante, mostrando uma nova gama de personagens e criaturas, com um conjunto estranhíssimo de alienígenas, fato que deixa ainda mais claro o intenso racismo do Império, visto que quase não há criaturas não-humanas nas fileiras do exército dos poderosos, somente nas bordas da galáxias, nos subúrbios do universo.

    Outro ponto curioso é notar a evolução postural de Luke, tão convincente que se faz perguntar se ele não retornou ao planeta pantanoso nesse meio tempo. Fator destacável é a fraqueza de mente dos subalternos de Jabba, quase todos facilmente manipuláveis, exceção feita ao próprio chefão do crime e ao caçador de recompensas de visual interessante Boba Fett. A fragilidade é tanta dentro da instituição que a maioria dos personagens se infiltra sem quase dificuldade nenhuma,

    O decréscimo de qualidade é bastante notado, desde a descida de Skywalker a Dagobah, onde o antigo “mestre zen” está convalescendo, se despedindo melancolicamente do seu aluno, até a conclusão de que o treinamento que jamais foi findado, não o será graças a esta saída – metalinguagem para a decadência cinematográfico do tomo anterior para este. A aura de Retorno é muito mais sombria, não no aspecto fotografia, mas sim dos figurinos. O traje de Luke é negro, sua nova espada reluzente é esverdeada, e quase todos os cenários onde está são repletos de lodo e escuridão, mesmo quando está na lua de Endor.

    A problemática ocorre graças a gravidade das circunstâncias, algo que claramente poderia ser maior, tendo seu teor banalizado pelas aventuras semi-infantis com o ewoks, os “ursinhos irracionais” capazes de preparar armadilhas para os generais rebeldes e as tropas imperiais. É neste filme também que as cenas de amor constrangedoras começam a ocorrer, ainda que sejam muito menos incômodas do que nos filmes dos anos 2000.

    Outro fator complicado é a desnecessário sexualização de Carrie Fischer de sua personagem. Leia era uma personagem forte, feminina e operante no espectro político, tinha argumentos e justificativas corretas em relação à revolução e no debate da democracia. Se algo funcionava no confuso cenário de Star Wars, transformá-la em um bibelô, vestido em um biquíni dourado, faria ser lembrada mais por isso do que, por exemplo, ter sido ideia dela a fuga bem-sucedida da Estrela da Morte, e ainda seria motivo de piada em filmes B como Mortal Kombat. A diminuição da personagem é de uma covardia sem escrúpulos, fruto de uma ação provavelmente mal pensada da parte dos roteiristas, que não percebiam o sexismo bobo em que enfiavam a personagem, mesmo que tal ato tenha vindo de uma figura nojenta com Jabba.

     SW George Lucas 10

    Para compensar tal problema, há a construção da batalha espacial, entre a resistência e o poderoso governo tirânico. Um dos argumentos que justifica a construção tosca do ideário dos rebeldes é a tentativa de fortalecer a figura do Imperador interpretado por Ian McDiarmid, fortificando a teoria de que o Império só poderia perder para ele mesmo, e que o acerto dos “mocinhos” só ocorreu pela arrogância dos opositores, factoide que teoriza um dos motes principais de O Despertar da Força, e que serviu de base para inúmeras aventuras no Universo Expandido posterior à trilogia clássica.

    Star Wars é uma saga familiar, trata dos dramas caros a Anakin e Luke Skywalker, ao contrário do que foi vendido pela “nova” trilogia, de que seria a trajetória trôpega de um jedi que passou por ambos os lados da Força. A vitória final é em conjunto, entre Vader e seu filho, com o Darth derrotando seu antigo mestre, dando finalmente a chance aos revoltosos de acertar o âmago do seu inimigo. Mesmo os finais adocicados e cafonas, reunindo os aventureiros em torno da lua, não fazem o sacrifício dos personagens perder a força simbólica que ostentam. O fechamento da saga merecia um final melhor, o que motivou claramente Lucas a rever tudo, modificar o que achava equivocado, montando  equívocos ainda maiores para criar prequels tão fracassadas quanto os spin-offs focados nos ewoks. A força da trilogia original é tão grande que suplanta mesmo esses delitos e transgressões por parte de seu criador, que claramente tem problemas em perceber que sua história não pertence mas a si, e sim ao público que o fez rico, que trata de forma cara seu objeto de idolatria, e que segue mantendo carinho em um objeto que maltratou demais seus apreciadores, mas que prossegue vivo, claro, graças ao selvagem capitalismo visto nos produtos derivados. A obra se mantém ainda viva graças à magia da fábula que Campbell previu.

    A Força sobrevive, apesar de midi-chlorians, corridas de pods e piadas, além do Universo Expandido, subsistindo, há muito tempo, em uma galáxia distante e no ideário de seus devotos.

    Leia nosso especial sobre Star Wars.

  • Crítica | Brinquedo Assassino

    Crítica | Brinquedo Assassino

    brinquedoassassino 1

    Criação conjunta do diretor Tom Holland – o mesmo do clássico A Hora do Espanto – e do então roteirista iniciante Don Mancini, o filme de 1989 começa genérico, mostrando uma perseguição policial a um estrangulador famoso, que resulta em um evento comum, de traição e covardia e de morte do malfeitor. O diferencial em Brinquedo Assassino é que o vilão chamado de estrangulador de Lake Shore tem hábitos ligados ao ocultismo, aspecto que o faz realizar um ritual antes de ser atingido pela bala do policial Mike Norris (Chris Sarandon) e que resulta em um raio que atinge a loja de brinquedos onde os dois estavam.

    A presença de Brad Dourif como Charles Lee Ray é curtíssima, mas é tão marcante que gerou mote para o script de Mancini e John Lafia, e para toda um seguimento de franquia. O argumento tocava em questões em voga na época: primeiro, na dificuldade que uma mãe solteira repleta de precariedades financeiras tinha em cuidar de uma criança, como é visto com Karen Barcley (Catherine Hicks) e seu filho, bem como a ambiguidade em relação aos crimes ocorridos, variando entre a criatura demoníaco e o angelical menino Andy, executado por Alex Vincent quase estreante, mais inspiradíssimo no papel que lhe propõem.

    Alguns fatores tornam a produção um filme curioso, primeiro pela hiper atividade de Andy, fator comum a crianças nessa fase de crescimento, em torno dos seis anos, postura que se torna inversa nos momentos futuros, graças ao trauma que sofre. Outro aspecto interessante é o desfile da câmera de Tom Holland, de uma perícia monstra, primeiro traçando o caminho que seria o das perseguições pela casa antes mesmo do acréscimo do vilão, além do uso irrestrito da lente como olhar do “monstro”, semelhante ao já feito em Tubarão, Halloween e Psicose. Tal cuidado com a fita não seria repetida nas continuações.

    A arma do primeiro crime é um martelo, um objeto comum em qualquer casa ordinário, mas que é mortal ao acertar o olho da personagem Maggie Peterson (Dinah Manoff) e que a faz percorrer um trajeto praticamente impossível, rumo a janela e à sua morte, mas não antes de serem produzidas provas contra o menino, que já dormia, dentro de outro cômodo da casa. A trama bastante fantasiosa discorre sobre a possibilidade de esquizofrenia infantil, um terror tão ou mais maligno quanto a possibilidade de um assassino serial dormir agarrado com um menino de tão pouca idade.

    Não há incongruência pior que os erros de continuidade e quantidade enorme de coincidências, como por exemplo, o fato de Norris ser praticamente o único policial designado para os casos estranhos de assassinato na cidade, que resulta na enorme coincidência dele ser o responsável pela morte de Lee Ray e o curioso fato envolvendo Andy e seu boneco Chucky. As cenas que contém diferenças nos cabelos do brinquedo visavam mostrar a transformação do personagem ao longo da fita, tendo descartado em pré produção até o crescimento de barba no objeto antes inanimado.

    A cidade de Chicago parece ter propriedades explosivas, já que qualquer esbarrão mais forte em suas construções resulta em uma estouro pirotécnico gigantesco. Outro fato curioso é que um infante de seis anos não tem qualquer problema em circular pela cidade, inclusive entrando e saindo de metrôs que levam até o subúrbio do município.

    A noite, quando a cidade parece cenário de um filme noir, ocorre a melhor sequência do filme, com a louca batalha dentro do carro, entre Norris e Chucky, onde a predação do menor e maior se inverte, com o boneco levando vantagem sobre o homem feito, enclausurado por uma claustrofobia forçada.

    Apesar dos problemas técnicos, datados ao extremo se analisados atualmente, a criatura de David Kirschner funciona quase à perfeição, sendo assustadora em inúmeros momentos, fortificado pela construção em volta do vilão. O brinquedo se revela uma abominação ligada ao voodoo, refutado mesmo pelos que prestam fé ao ocultismo, com um cuidado do roteiro para não tornar a figura de Damballa em algo necessariamente maligno, pondo toda a carga do mal no ideário do assassino, e não do religioso crente em reencarnação.

    A arquitetura da casa dos Barclays compreende cômodos que tem sempre duas saídas, e os adultos tem o poder de mesmo em um ambiente familiar, conseguir tropeçar a todo momento, demonstrando a superioridade que o assassino tem sobre todos, exceto com Andy, que não teima em executar seu antigo “amigo”, queimando-o vivo. Ao menos carbonizado, Chucky causa um terror imenso, graças ao assustador semblante que tem. Karen rende-se a crueldade, de esquartejar a base de tiros o algoz de seu filho.  O sadismo de Lee Ray é imparável, mesmo deformado ele segue com sede de sangue, atacando qualquer detentor da mesma vida e condição humana que lhe foi tirada, fazendo de sua perseguição um manifesto de ódio a vida.

    O close em Alex Vincent amedrontado, olhando pela fresta da porta do quarto de sua mãe revela o medo infantil de ser extinto, apegando-se de um modo a vida de um modo que somente um homem feito poderia sentir, mostrando que toda a jornada sangrenta pela qual passou, o talhou para uma nova experiência, para o decorrer de uma existência completamente diferente da eu lhe ocorreu até então, cercada de tragédias emocionais tremendas, que não o fariam jamais dormir tranquilo novamente.

  • Crítica | Labirinto de Mentiras

    Crítica | Labirinto de Mentiras

    Labirinto de Mentiras 1

    O concorrente alemão ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro não traz muito alarde consigo. Apesar de recorrer ao plano de fundo histórico da Segunda Guerra Mundial, o longa-metragem dirigido por Guilio Ricciarelli elabora uma narrativa leve e sem apelos dramáticos, pela perspectiva mais negativa possível do resgate histórico.

    O filme nos traz Johann Radmann (Alexander Fehling, rosto familiar em Bastardos Inglórios), um jovem promotor que inicialmente, possui um trabalho monótono e pragmático. Sua rotina profissional e pessoal se transforma quando encontra com o jornalista Thomas Gnielka (André Szymanski). A partir de pequenas reuniões, informações e buscas, Johann se vê em meio ao começo dos processos investigativos dos crimes cometidos em Auschwitz, o campo de concentração responsável por massacrar a população judia durante a década de 40, período do conflito.

    Aos poucos, o filme vai dando pequenas pinceladas sobre os fatos que estavam acontecendo treze anos depois do fim dos confrontos. Os processos de antinazismo, a implementação gradual de órgãos americanos na desassociação da influência nazista na sociedade alemã, as divergências dos apoiadores e de quem foi contrário ao regime.

    Outro ponto interessante e um triunfo a ser exaltado é a falta de tendencialidade. O filme não caracteriza o lado nazista como o mais perverso do mundo, o vilão a ser enfrentado sobre todos os custos. Ele sai da ideia opinativa e se baseia em conceitos explicativos e demonstrativos. Há dados, estatísticas, questões técnicas e jurídicas que dão base nos argumentos levantados pelos promotores responsáveis pelas prisões dos agentes nazistas. Mesmo que no final o protagonista tenha seu breakout e desenvolva paranoia a partir de uma infeliz descoberta, este arquétipo não é manifestado no decorrer do longa.

    Guilio estreia de maneira inquietante e elaborativa. Demonstra um jogo de câmeras interessante, planos sequências desbravando pequenos interiores e associando-os às características e situações atuais dos personagens em cena. Há uma intuição construtiva por parte da direção que permite interpretar as nuances pessoais a partir de análises visuais.

    Orgânico, bem calculado, filmado, produzido e com um tema histórico importante, Labirinto de Mentiras é um curioso registro ficcional do início do julgamento de Frankfurt e do combate ao que remanescia do nazismo na derrotada Alemanha.

     –

    Texto de autoria de Adolfo Molina Neto.

  • Crítica | Star Wars – Episódio VII: O Despertar da Força

    Crítica | Star Wars – Episódio VII: O Despertar da Força

    kylo

    Após um recomeço informal mas ainda assim acertado na franquia Missão Impossível e misturar novidade e reverência a um seriado laureado em Star Trek, J. J. Abrams finalmente dá vazão ao objeto que era seu sonho e o de muitos aficionados. Star Wars – O Despertar da Força começa tradicional, acompanhado do famoso letreiro vertical, iniciando sua trama novamente com uma perseguição espacial desigual, atendendo finalmente ao anseio de uma legião de seguidores, após péssima última trilogia.

    A condução do filme beira a excelência. Se em Star Trek os exageros de Abrams fez torcer o nariz de grande parte dos fãs, em Despertar da Força as injeções de adrenalina funcionaram muito bem. A começar pelo fato de o projeto nascer a partir de um roteiro de Lawrence Kasdan, que também escreveu os textos de O Retorno de Jedi, Império Contra Ataca e Os Caçadores da Arca Perdida, além do trabalho de Michael Arndt.

    O produto final também contou com a colaboração do diretor, que conseguiu imprimir um equilíbrio visual pontual, dando destaque para os restos do império, sobrevoando Star Destroyers caídos sobre a areia, usando o cenário como elemento da narração, e não despiste como nos últimos filmes de George Lucas. O diretor é equilibrado, emulando uma escola de cinema americana clássica, a um estilo semelhante de Clint Eastwood e John Ford, claro, guardadas as devidas proporções ao gênero blockbuster, trazendo harmonia entre visual e textual, fugindo de o histrionismo imagético  que povoou o cinema recente de Star Wars.

    SW Despertar da Força 5

    O argumento trata de um período complicado politicamente, claramente não explicitado em detalhes minuciosos, possivelmente para exploração do novo Universo Expandido autorizado pela Disney, que, a priori, considerará tudo como canônico. As lacunas temporais servem de estofo para o mistério, fomentando a curiosidade de público e de personagens com o paradeiro de Luke Skywalker (Mark Hammill). A história dessa vez é contada a partir do olhar de Finn (John Boyega), um personagem repleto de carisma e ligado ao lado negro. Sem demora, seu destino é entrelaçado com o do exímio piloto Poe Dameron (Oscar Isaac), e de seu “mascote” BB8, em Jakku, um planeta arenoso, como Tatooine. Nesses momentos, são introduzidos também o vilão Kylo Ren (Adam Driver), em cenas belíssimas e repletas do massa véio fan service esperado da parte de um diretor que um dia já foi também um fanboy da saga de Lucas.

    Apesar de Finn  unir o alívio cômico a uma personalidade valente, é a jornada de uma personagem feminina a de maior destaque. A Rey composta pela até então desconhecida Daisy Ridley é a heroína, sendo esta a principal semelhança entre todos os espelhamentos deste roteiro ao de Nova Esperança, já que ela também é orfã,  de profissão simplória (catadora de sucata), habitante de um lugar desolado e sem esperança e que ainda assim, insiste em ter sonhos e anseios. Além das óbvias referências a Luke, lhe cabe também o intervencionismo da antiga princesa Leia e o caráter voluntarioso de Mara Jade, a jedi do lado sombrio introduzida em Herdeiro do Império. Seus enfrentamentos e as surpresas do roteirosão de encher os olhos e a composição de suas características são pontuais, acentuadas pelos closes que Abrams usa em suas cenas, que invadem sua psique e revelam pouco a pouco o seu ideário, além  de claro, trazer uma história detalhada em imagens.

    Talvez o problema mais flagrante – e não o maior – em Despertar da Força seja o cenário político. Nos filmes, a apresentação da sociedade era maniqueísta: existia o Império, malvado e cruel, em contraponto ao mambembe grupo de revolucionários da Rebelião. Quando Lucas tentou tornar complexo, soou pueril, e nesta, os detalhes são muito mais sugeridos do que trabalhados,  soando mais rico do que qualquer filme tocado por seu criador. O pouco que se sabe é que Nova República foi instaurada e sofreu um duro golpe a partir de um traidor que se alistou aos resquícios do Império Galáctico, unidos sobre o nome da Primeira Ordem, que tem no General Hux (Domhall Gleeson) um líder ideológico, e em Kylo Ren a figura religiosa, reprisando a dupla Tarkin/Vader, ainda que bem menos inspirados. Os mistérios ao redor do tal líder supremo Snoke, dublado e executado por Andy Serkis são tão grandes quanto o entorno de Luke, e parecem só ser revelados ao longo desta nova saga.

    As referências ao III Reich são ainda mais escrachadas com a Primeira Ordem do que eram com o Império, com cenas de discursos inflamados que soaram tão semelhantes a persona de Hitler em A Queda: As Últimas Horas de Hitler que pareciam inclusive serem pronunciados no idioma alemão. Apesar da distância ideológica, há uma intimidade implícita entre os distintos lados, com uma revelação familiar revelada logo de início, fugindo da possibilidade de gerar um burburinho de uma cópia do impacto ocorrido no episódio V.

    SW Despertar da Força 4

    A participação dos personagens clássicos varia entre momentos épicos e futuros plausíveis, mas um pouco decepcionantes. Han Solo finalmente retornaria a pele de Harrison Ford, que consegue com maestria expressar sentimentos de remorso e culpa, pelos rumos que a galáxia e que sua vida pessoal tomaram, mas seu ofício atual é muito pouco para o potencial que sempre apresentou, ainda assim, é menos incoerente que os rumos do antigo Universo Expandido. Leia Organa interpretada por Carrie Fischer consegue equilibrar o papel de líder político resignada e mulher forte que sobreviveu a tantas mágoas. Chewbacca (Peter Mayhew) tem menos momentos de ação e mais de comédia, bem como C3PO (Anthony Daniels), que se destaca em uma engraçada cena para os fãs que conheciam a lenda da perna dourada, que permeou os filmes originais. Nenhum destes ofusca a trajetória de Rey, Finn, Dameron e BB8.

    A edição de som é primorosa em mais um trabalho dedicadíssimo de Ben Burtt, que dá consistência e volume a todo o aspecto mecânico da obra, incluindo até sons da fuselagem da Milenium Falcon e outras naves. O equilíbrio entre efeitos práticos também ajuda a textura do filme em relação aos produtos antigos e a propensão de easter eggs soa interessante também.

    J. J. Abrams usa extensivamente planos longos, ao estilo de Terence Malick, ainda que os significados sejam diferenciados, já que os cenários não são exatamente personagens da trama, e sim complementos de um ambiente já vasto. As ligações com o antigo Universo Expandido servem para inserir no antigo fã algum consolo pela destituição de todo o ideário construído por anos e consumido por muitos. A estrutura social que deverá ser explorada em livros e spin-offs tem em sua base o conceito pensado por Timothy Zhan em sua trilogia Thrawn e eventos posteriores, especialmente na figura de Kylo Ren, ainda que sua concepção encontre alguns problemas, não da sedução para o lado da força, e sim por detalhes que precisavam de uma minúcia maior. Ainda assim, nas cenas em que revela seu rosto, Adam Driver consegue soar dúbio e cruel.

    Apesar de não ter uma batalha tão equilibrada quanto em Yavin ou Endor, os momentos finais são carregados de emoção, em especial nas cenas de ação. O final, com clima de cena pós-crédito, sobra em emoção e edificação, trazendo um nostalgia semelhante a vista em toda a postura do Ben Kenobi de Alec Guiness. A ideologia e espiritualidade da força retorna como nunca, repleta de alma, nostalgia e aura lendária, finalmente revivida após trinta e dois anos sem qualquer resquício do rastro dos bravos jedi, da aliança rebelde – chamada agora de resistência – e de todo o ideário que geraram sonhos em tantas gerações. Um capítulo primordial do que pode ser uma saga tão clássica quanto a primeira.

     

  • Crítica | Atividade Paranormal: Tóquio

    Crítica | Atividade Paranormal: Tóquio

    Atividade-Paranormal-Tóquio-1

    Declaradamente uma versão asiática do filme de estreia de Oren Peli, Atividade Paranormal – Tóquio se inicia momentos após o primeiro filme, com a chegada de Haruka Yamano (Noriko Aoyama), uma estudante cadeirante que fez intercâmbio em San Diego e que voltaria a sua terra, o Japão. O filme, lançado em paralelo com o segundo, teve lançamento primeiro no oriente, e mostra um curioso irmão, chamado Koichi, vivido por Koi Nakamura, cujo hobby inclui filmar toda a rotina familiar.

    O grande “vilão” do spin-off é a ausência paterna, já que os jovens são praticamente abandonados pelo patriarca, mesmo com a recuperação de sua filha, que somente conseguiria voltar a andar depois de seis meses. A perda maior em comparação com o original é a completa falta de química entre os pretensos irmãos, não havendo sequer a desculpa de assistir a um casal recém-unido como atrativo para prender a atenção do público.

    Toshikazu Nagae dirige o longa, que visaria o revide às muitas adaptações de terror que cruzam o mundo, entre Japão e América do Norte. Mas a ideia de revanchismo não passa da premissa e se apresenta fraca e repetitiva, com pouco a acrescentar além do original. O único aspecto realmente diferencial do filme executado no ano anterior é a utilização de uma segunda câmera, posta no quarto do rapaz, que ajuda a estabelecer uma bifurcação narrativa que se demonstra vergonhosa pela completa falta de nuances no comportamento dos personagens.

    Com o passar das horas, as cenas se repetem, aparentemente só sendo filmadas para ocupar o tempo mínimo de tela para ser considerado um longa-metragem. Logo Koichi se lança em pesquisas na internet a respeito do “diabo”, um conceito não presente no ideário japonês em praticamente nenhuma das religiões conhecidas entre o povo. A solução de arranjar uma cruz para executar uma espécie de expulsão das más influências é fácil, banal e estúpida, combinando em nada com a proposta de terror comumente vista nos filmes do país.

    Não há acréscimo de quase nenhum espectro de susto ou temor. Os vidros se estilhaçam sozinhos, madeiras entram em auto combustão, os corpos dos possuídos permanecem inertes, as câmeras são jogadas pelo chão. Não há perspectivas de novidade, tampouco de melhora do nível de qualidade tanto de trama quanto de direção. Ao que se assiste, é uma cópia ruim de um produto já enfraquecido, que não permite sequer atemorizar o espectador.

    Compre: Atividade Paranormal: Tóquio

  • Crítica | O Povo Contra George Lucas

    Crítica | O Povo Contra George Lucas

    O Povo Contra George Lucas 1

    Usando a fama de John Stewart para iniciar a discussão que achincalha com os “pecados” do cineasta que deu luz aos sonhos de muitos nerds, Alexandre O. Phillipe leva seu documentário à frente dando vazão a um sentimento que perdura até a atualidade. O Povo Contra George Lucas é uma manifesto sério, com pitadas de comédia e deboche como modo de defesa do aficionado em relação ao criador de tudo.

    Phillippe mostra imagens de arquivo da juventude do diretor de Star Wars, desde suas pretensões em cinema, até a mercantilização de sua arte, focando nos métodos que ele usaria para modificar as tratativas dos cineastas junto a tecnologia, inaugurando assim um novo estilo.

    O modo como o documentarista mostra a subcultura iniciada a partir da obra de Guerra nas Estrelas é focando em produtos feitos por seus fãs, desde fan films mais sérios, até iniciativas mambembes e jocosas, que funcionam como tributo à obra tão adorada e laureada, o que serve de extremo oposto às alterações propostas na versão da edição especial de 1997, a qual o grupo de fãs basicamente apoiava graças aos avanços em termos gráficos. O engano começaria a ser desbaratado na cena acrescida com o mafioso Jabba sendo pisoteado na cauda por Han Solo, para depois evoluir ao maior problema, visto em Greedo atirando primeiro, e mais um montante de easter eggs que se tornam realidade, retirando toda a ousadia que fez da trilogia algo único.

    A duvida e insegurança passaram do artista para o público, já que seus filmes pareciam sempre necessitar de novas mudanças. As obras de arte, ao menos aquelas que se dão ao respeito, precisam “findar”, se bastar, pois se não ocorre isso, desdenha-se de seu espírito e caráter, como ocorre nas volumosas edições. O documentário tem argumentos tão bons que se torna impossível não culpar o criador da saga por todos os erros recorrentes, mesmo ao fã mais fiel e pouco contestador, principalmente por causa do desdém em mexer no material original, praticamente extinguindo o trabalho de edição oscarizado em 1977. Sem falar no serviço de inúmeros outros departamentos não premiados e, portanto, pouco lembrados.

    Phillips piora a situação ao lembrar a participação de Lucas em protestos que combatiam a colorização de filmes em preto e branco. O mesmo defensor da memória do cinema mundial seria o sujeito que basicamente remexeria em seus sucessos antigos, e que se impediria de evoluir como cineasta para apenas virar um marqueteiro, um homem que usa sua marca apenas para ganhar dinheiro com brinquedos, camisetas e toda sorte de memorabilia.

    É curioso notar no que o antigo diretor hippie anti-corporações se tornou, além de ver seus produtos estampando toda sorte de merchandising e fazendo parte das atrações do maior parque temático do mundo. Prova do quanto uma ideologia mal construída e mal fundamentada não resiste ao menor sinal de abalo.

    Há um foco especial nas edições organizadas por fãs, bem como nas críticas à nova trilogia. O paralelo estabelecido culpabiliza de certa forma os fãs, por estarem tão ávidos por novas aventuras que sequer se deram ao trabalho de pedir boas histórias. A prova cabal de que o argumento está certo é a horda de fãs que acredita que as histórias eram bons momentos. O Povo Contra George Lucas evoca sentimentos muito fortes a respeito do biografado, sendo o da comiseração o pior deles, mais degradante até do que o ódio que o “personagem” causou nos seus antigos fãs. Mesmo diante da miséria e desprezo, o sujeito segue com algum prestígio junto às mesmas pessoas que foram maltratadas por suas atitudes puramente capitalistas.

  • Crítica | A Felicidade Não Se Compra

    Crítica | A Felicidade Não Se Compra

    The Academy of Motion Picture Arts and Sciences will examine the technology behind "It's a Wonderful Life" at Los Angeles and New York City screenings on Friday, December 9, and Monday, December 12, respectively.

    Considerado um dos primeiros grandes diretores americanos, a trajetória de Frank Capra no cinema dialogava diretamente com sua época através de suas obras, que representavam a sociedade americana e apresentavam em seus roteiros uma mensagem explícita sobre o momento presente. O distanciamento temporal provou que o diretor, de origem italiana, não só compôs grandes produções para aquele momento como foi capaz de universalizá-las e fazer de sua trajetória parte da história cinematográfica.

    Localizado na fase final de sua filmografia, A Felicidade Não Se Compra se definiu como um de seus filmes mais reconhecidos, tanto pela mensagem universal quanto pelo destaque que já possuía em sua carreira devido a produções como Aconteceu Naquela Noite, A Mulher Faz o Homem, Do Mundo Não Se Leva Nada e O Galante Mr. Deeds. Na época de seu lançamento, o filme recebeu críticas mistas sem muito elogios. Críticos atribuíam uma queda em sua carreira devido a uma trama mais suave do que a das histórias anteriores. Interessante como o mesmo aspecto, a leveza narrativa, seria objeto de reverência em anos futuros e promoveria-o à lista de grandes filmes de todos os tempos.

    A produção foi o primeiro lançamento do estúdio do diretor, o Liberty Films, em parceira com Samuel J. Briskin, um dos grandes produtores da era de ouro do cinema americano. Baseado em um conto de Philip Van Doren Stern, lançado de maneira independente pelo autor, o filme se tornou um representante icônico de história natalina com uma mensagem inspiradora ao abordar um anjo que, para ganhar suas asas, tem a missão de ajudar um empresário deprimido com problemas financeiros. Como seu argumento é fabular, envolvendo uma trama que transita entre realidade e fantasia, é natural a comparação com outra história cuja base é semelhante: O Conto de Natal, de Charles Dickens. Em ambas as histórias, a data cristã do nascimento de Jesus é o ambiente no qual as personagens estão inseridas em sua trajetória modificadora.

    Lançado em 1946, o filme localiza-se após uma conturbada guerra mundial, época em que o cinema era um entretenimento de escapismo diante de uma sociedade desolada. Nesse cenário, as obras de Capra promoviam uma visão iluminada sobre a vida, projetando uma inspiração motivacional que tocava a sensibilidade do público em tempos árduos. No roteiro escrito por Frances Goodrich, Albert Hackett e Capra, mesmo que a obra utilize uma famosa data histórica ocidental, o símbolo da renovação é a vertente seguida, conseguindo levar o público a um contexto maior que toca no cerne da existência. Mesmo que a mensagem pareça moralista, ao retirar a personagem central, George Bailey, de sua própria vida, e colocá-lo como um personagem de não-existência, a reflexão sobre a importância da vida, bem como a dimensão de uma teia de contatos e influência, demonstra como o todo seria interligado por pequenas partes, demonstrando que cada um tem seu significado, como pequenas peças de um relógio invisível. Ainda que a história seja explicitamente clara ao propagar a necessidade de se fazer o bem.

    A maneira pela qual a trama cresce e conduz com eficiência e técnica a sensibilidade é de um talento sublime. A figura interpretada pelo excelente James Stewart esbanja carisma desde o início para, em momentos de conflito, o espectador compartilhar sua dor. Quando o fantástico quebra a realidade e o próprio personagem vê o vazio de uma vida sem sua existência, a narrativa vai atravessando suas relações do nível exterior rumo ao centro familiar. Neste aspecto, evidencia-se a importância de um núcleo ativo de relações. Um caminho que passa pelos conhecidos, amigos até chegar nos dois níveis da família: a genealogia anterior a Bailey com irmãos e mãe, para aquela criada a partir dele com a esposa e os filhos. É este núcleo o ponto agudo de emoção e agonia da personagem. Assim, o roteiro seleciona esta formação como a mais explícita revelação do bancário: a esposa que ele ama e a família pela qual deu a vida.

    Quando retorna para a vida real, é este mesmo núcleo familiar que se arquiteta como base. Embora Bailey seja um personagem querido por toda cidade, é a esposa que move sua teia de contatos e lhe ajuda em um momento de crise. A sensibilidade corre externa e internamente: é explícita quando demonstra o companheirismo de seus amigos e implícita pelo amor da esposa, fechando um circulo simbólico de influências, do macro ao micro.

    A frase que encerra o longa, nenhum homem é um fracasso quando se tem amigos, é a conclusão final de uma narrativa que explora de maneira eficiente as relações sensíveis de um microcosmos. Mesmo sendo um filme natalino, aproveitando-se deste momento reflexivo, A Felicidade Não Se Compra trabalha com perfeição os sentimentos do público a seu favor, explicitando o lado emotivo para arrebatá-lo, numa história universal sobre a condição humana.

  • Crítica | Star Wars – Episódio VII: O Despertar da Força

    Crítica | Star Wars – Episódio VII: O Despertar da Força

    19_AVCO_Payoff2_B1_Brazil

    A franquia Star Wars talvez seja a maior e mais bem sucedida do cinema. Com o lançamento de Uma Nova Esperança, em 1977, O Império Contra-Ataca, de 1980 e O Retorno de Jedi, em 1983, a saga criada por George Lucas se solidificou de forma poderosa, mudando para sempre a maneira de fazer cinema, devido ao seu pioneirismo nos efeitos especiais, principalmente, além de espetaculares cenas de ação que envolviam batalhas travadas no espaço. A história do jovem órfão Luke Skywalker que, de repente, se vê no meio do embate entre a Aliança Rebelde contra o temido Império Galático, ao lado de icônicos personagens como Han Solo, Chewbacca, Princesa Leia, os simpáticos C-3PO e R2-D2 e o temido Darth Vader, angariou uma horda de fãs espalhados pelo mundo todo. E é assim até hoje.

    No final dos anos 90, para deleite dos fãs, Lucas resolveu mostrar ao mundo como a Galáxia foi dominada pelo Império. Novamente centrando toda carga em cima de um membro da família Skywalker, o resultado foi desastroso. O diretor também foi responsável pelos roteiros e, novamente, foi pioneiro ao usar câmeras digitais, porém, deu um tiro no próprio pé, ao dar uma ênfase maior ao visual, se esquecendo quase que por completo da história. Não adiantou muito contar o que todo mundo já sabia sem ter diálogos ou situações que se sustentassem por si só. Assim, A Ameaça Fantasma, O Ataque dos Clones e A Vingança dos Sith são considerados pelos mais velhos uma mancha na história da franquia.

    Desde o começo, Lucas planejou três trilogias para contar a história da família Skywalker, uma terceira parte que nunca sairia do papel, deixando para os fãs imaginarem o que teria acontecido com os personagens. Contudo, antes mesmo da trilogia prequel, liberou os direitos da história para que o escritor Timothy Zahn desse continuidade à história que se passava alguns anos depois de O Retorno de Jedi.

    Foi então que o inesperado aconteceu. No final de outubro de 2012, a Disney anunciou a compra de todo o grupo da Lucasfilm e, neste mesmo anúncio, foi dada a notícia que, enfim, veríamos na tela do cinema os Episódios VII, VIII e IX, além de filmes derivados. Obviamente a notícia, além de cair como uma bomba na indústria, trouxe mais perguntas do que respostas. Perguntas respondidas aos poucos até a estreia de Star Wars – O Despertar da Força.

    J.J. Abrams foi o encarregado de dar vida ao Episódio VII. Porém, o diretor tinha uma bomba nas mãos: o roteiro de Michael Arndt não era bom o suficiente, além de parecer que o escritor quis desenvolver uma nova história em vez de trazer de volta os velhos conhecidos dos fãs, o que obrigou Abrams a substituir Arndt por Lawrence Kasdan, roteirista de O Império Contra-Ataca e O Retorno de Jedi. Com isso, aos poucos, foi ganhando a confiança dos fãs, o suficiente para que a frase “in J.J. we trust” fosse replicada pela internet. Contudo, Abrams tinha um prazo apertadíssimo nas mãos para faze-lo da forma merecida, com efeitos práticos e uma história justa tanto para aqueles que amam a franquia, quanto para os novos espectadores.

    O despertar da força - 01

    Seguindo a “fórmula” das duas trilogias anteriores, o trio de protagonistas foi composto por novatos. A atriz britânica Daisy Ridley nunca tinha atuado em um longa metragem, John Boyega tinha em seu currículo o bom Ataque ao Prédio, cabendo a Oscar Isaac o posto de “veterano” por ser mais conhecido do público. No lado dos antagonistas, temos o ótimo Andi Serkis, Domhnall Gleeson e Adam Driver. O time se junta com Mark Hamill, Carrie Fisher, Harrison Ford, Anthony Daniels e Peter Mayhew, deixando o filme com excesso de personagens, prejudicando, de certa forma, a aparição e o tempo de tela de certos alguns destes.

    Em que pese os créditos iniciais focarem a história no desaparecimento de Luke Skywalker (Hamill), fica claro que a protagonista de O Despertar da Força é Rey (Ridley), uma jovem deixada por sua família no planeta Jakku. Enquanto seus familiares não retornam, Rey sobrevive precariamente no planeta desértico recolhendo sucata em troca de pouca comida como forma de pagamento. O caminho de Rey cruza com BB-8, o robô do piloto da Resistência, Poe Dameron (Isaac). O droide fugindo de um ataque da Primeira Ordem, liderado por Kylo Ren (Driver), esconde informações importantíssimas sobre o paradeiro de Luke Skywalker. A semelhança com Uma Nova Esperança é notória, mas, em momento algum prejudica o desenvolvimento da trama, sendo que em paralelo a estes acontecimentos, também somos apresentados a FN-2187 (Boyega), um stormtrooper sem nome e sem propósito algum para lutar pela Primeira Ordem e que mais tarde é batizado de Finn.

    O primeiro ato é marcado pela química entre os 3 novos protagonistas que funciona bastante. Dameron é cínico e sarcástico, mas de bom coração, Finn é o responsável pelo lado lúdico que a franquia sempre adotou (mas sem soar chato) e Rey é o destaque do filme. Sabe pilotar qualquer veículo, além de ser muito inteligente e conhecer tudo sobre mecânica.

    Demora um pouco para vermos os personagens antigos, porém, a espera vale cada centavo gasto na sala do cinema. Embora a aparição da dupla Han Solo (Ford) e Chewbacca (que não envelheceu um ano sequer, vivido novamente por Peter Mayhew) seja por conta de uma coincidência difícil de acreditar, considerando o tamanho da galáxia (um dos pontos preguiçosos do roteiro), pôde-se perceber que muita coisa mudou desde O Retorno de Jedi. Fato comprovado quando Rey pergunta se o mercenário em cena era Han Solo, a resposta é clara: “eu costumava ser” e a situação a seguir é um divertido momento do filme mostrando um Han Solo mercenário, algo que o espectador nunca tinha visto na prática. Com certeza teremos mais momentos assim se seu filme solo for confirmado.

    Se o lado da Resistência segue na busca por Luke Skywalker, também é esse o objetivo da Primeira Ordem. Aliás, o resquício do Império é um dos pontos mal trabalhados no filme, o que deixa claro que os personagens da Resistência tiveram mais atenção do que os da Primeira Ordem que aparenta ser mais poderosa e mais organizada quando da época do Imperador Palpatine. Aqui, temos a liderança do General Hux (Gleeson, frio, sem nenhum carisma), o cavaleiro Kylo Ren, ambos liderados pelo misterioso Supremo Líder Snoke (Serkis), que ganha este adjetivo por simplesmente ser uma incógnita, uma vez que não faz sentido algum termos um personagem com a magnitude que aparenta ter. Também está presente a Capitã Phasma (Gwendoline Christie), uma stormtrooper imponente com sua armadura cromada, bastante adorada pelos fãs nos trailers, mas que foi uma decepção. A participação de Phasma chega a ser pior que as presenças descartáveis de Bobba Fett e Darth Maul nos filmes anteriores.

    O despertar da força - 02

    Kylo Ren é um destaque à parte. Devoto de Darth Vader, jurou destruir o último Jedi e terminar o que Vader começou. O cavaleiro que não pode ser considerado um Sith é poderoso no uso da Força e não pensa duas vezes em se exibir. O curioso é que Kylo ainda é um tanto quanto cru e demonstra não ter habilidade suficiente com seu sabre de luz, além de ser tão jovem quanto Rey nos momentos em que aparece sem sua máscara.

    A história faz um longo desvio do caminho percorrido por Uma Nova Esperança quando a personagem de Lupita Nyong’o, Mas Kanata, surge em tela. A agradável e milenar alienígena consegue enxergar através dos olhos das pessoas e se torna responsável por esclarecer algumas coisas à Rey, o que faz com que a trama tome um belo caminho, enchendo os olhos de quem assiste, preparando um terceiro ato grandioso, repleto de momentos incríveis, ainda que retorne ao paralelo do filme original.

    O Despertar da Força é repleto de ótimos momentos, tanto do que diz respeito às situações mais engraçadas, quanto nos momentos de ação, bem como de tensão. A perseguição de um caça Tie Fighter à Millennium Falcon faz com que você se agarre na cadeira. – podemos perceber que a equipe da ILM – Industrial Light And Magic teve um cuidado especial com a Falcon (uma nave respeitada inclusive pelos membros da Primeira Ordem). Embora Star Wars não respeite as leis da física, é fácil perceber que a nave de Han Solo é bem mais pesada que o Tie Fighter, fazendo esses e outros pequenos detalhes arrancarem sorrisos tímidos vez ou outra.

    A expectativa cresce quando os personagens clássicos entram em cena. A sensação de nostalgia percorre toda a fita. O veterano e mestre John Williams, mais uma vez, é responsável pela ótima trilha sonora, e assim como em todos os filmes, traz uma trilha original onde busca, em alguns momentos, revisar seus clássicos imortalizados na primeira trilogia. O departamento de arte e o design de produção também são certeiros. As naves que todos conhecemos estão lá, assim como o posicionamento das câmeras, tomadas, ângulos e principalmente nos cockpits dos X-Wings e dos Tie Fighters. O mesmo podemos falar das roupas dos personagens. Como Han Solo diz, sua jaqueta é nova, mas podemos perceber sua clássica camisa branca, sua calça militar e seu cinto com o coldre são os mesmos.

    Embora seja um filme de J.J. Abrams, Star Wars – O Despertar da Força, não é um típico filme do diretor, que procurou de forma respeitosa manter o legado brilhante criado por George Lucas. O resultado é um ótimo filme, repleto de ótimos personagens em uma história divertida, cheia de ação e principalmente emocionante. Promovendo mais um marco cinematográfico e apontando novos caminhos para o universo desta galáxia muito, muito distante.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | A Terra e a Sombra

    Crítica | A Terra e a Sombra

    A Terra e a Sombra 2

    Cesar Augusto Acevedo introduz seu filme de modo puramente visual, mostrando imageticamente os meandros por onde a vida escapa e em que curvas a existência se torna complicada. A Terra e a Sombra é uma história de sofrimento, amargor, confronto ao passado, focada em pessoas cujas mãos calejadas servem de introdução aos seus dramas, complicados e complexos de um modo que qualquer sinopse simplesmente não consegue resumir.

    Alfonso (Haimer Leal) é um homem velho e seu andar lento e gradual determina sua condição e de idade, bem como pontua sua saúde ainda não tão debilitada, especialmente em comparação com os outros personagens, membros de sua família. O resignado homem atende ao chamado dos seus, de retorno a sua terra após 17 anos ausente, enxergando em sua antiga casa um ambiente e cenário completamente mudado, sendo recebido por sua nora Esperanza (Marleyda Soto), que rapidamente o “apresenta” ao seu filho, Gerardo (Edison Raigoza), que está acamado e impossibilitado de trabalhar na coleta de cana de açúcar.

    Neste micro universo, são postos dois aspectos importantes, o primeiro, da casa comandada pelo matriarcado de Alicia (Hilda Ruiz), que tem em seu doce nome uma contradição de sentimento enorme, dada sua clara indocilidade. O tratamento da mulher ao recém-chegado “visitante” é frio e cheio de amargura, reação imediata do abandono que o sujeito fez no pretérito, e que se tornou a partir daí uma figura estranha, até para os que algum dia foram seus. A desolação de alma da matriarca também ocorre graças ao trabalho que ela e Alicia fazem, no lugar de Gerardo, sendo elas as únicas funcionárias que aceitam trabalhar nas condições de quase greve que os canavieiros tentam impor, já que não são pagos.

    Apesar de aventar uma situação política bem estabelecida, mesmo com poucas cenas, o roteiro de Acevedo prioriza as condições paupérrimas, econômicas e emocionais do clã, usando o pragmatismo para explicar e até justificar a submissão das mulheres às péssimas condições de trabalho, o que gera não só um mergulho mais profundo nas necessidades daquela família, como serve de aspecto universal ao drama de muitos trabalhadores humildes, que não têm qualquer esperança de igualdade empregatícia.

    No entanto, o tema mais caro ao argumento são as relações de uma família devastada, e a simbiose presente entre as gerações, fato que impede Gerardo de tentar voar solo, bem como de tratar sua doença, que só se agrava graças à hostilidade das queimadas que ocorrem ao redor de sua casa. A dificuldade em se ver livre do pesado julgo de sua mãe revela apatia e comodismo com o que está claramente errado, além de uma surdez seletiva, onde mesmo o moribundo, ignora completamente os apelos de sua “amada” esposa, fazendo dele um personagem indigno de torcida, pondo-o no mesmo nível de empatia de seus pais.

    O sistema opressor de A Terra e A Sombra é basicamente matriarcal, como em eras passadas, ratificando por um entorno também ligado ao passado. A tentativa de transportar este sistema para o patriarcado se mostra tardio, mesmo ganhando espaço como a possibilidade do “último recurso”. A decisão de Gerardo por sair da zona de desconforto é lenta, não passando de um embrião. O desespero dos residentes é tamanho que a falta de opção de saídas se manifesta apenas pela possível troca de um regime opressor para outro, ainda que aparentemente a figura de Alfonso seja mais dócil do que a de Alicia.

    A crônica sobre abandono se dá pela posição do conflito e pela inércia em não evoluir, mesmo diante de todas as consequências dos pecados do passado, fator que faz de A Terra e a Sombra um conto de desesperança caro e sensível, como pouco se vê no circuito comercial de cinema.

  • Crítica | Goosebumps: Monstros e Arrepios

    Crítica | Goosebumps: Monstros e Arrepios

    Goosebumps 1

    A começar por um drama tipicamente adolescente, Goosebumps: Monstros e Arrepios, filme do diretor de animações Rob Letterman (responsável por Monstros vs. Alienígenas e Espanta Tubarões) adapta o seriado homônimo que tem como foco histórias infantis de antologia envolvendo elementos de histórias de terror com uma abordagem para um público muito moço.

    Zach Cooper (Dylan Minnette) acaba de se mudar com sua mãe para uma nova cidade pequena, pessimista em relação ao que o futuro lhe reservava. Logo, ele se interessa pela bela Hannah (Odeya Rush), sua vizinha, filha de R. L. Stine – autor real dos livros de Goosebumps, interpretado pelo mesmo Jack Black que protagonizou o filme As Viagens de Gulliver, também dirigido por Letterman. Logo, mistérios começam a ganhar a tela, como as criaturas que atormentavam os infantes nos livros de Stine, e Cooper junto ao seu novo amigo, o atrapalhado Champ (Ryan Lee), começa a suspeitar de Stine, primeiro achando-o um charlatão, para depois perceberem um segredo ainda mais bizarro.

    A  reverência que o filme presta à figura do autor é merecida, já que além de escritor dos livros, e consequentemente colaborador de roteiros e argumentos, Stine ainda servia de host do programa de TV que ia ao ar nos 1990. A trama mostrada em tela é repleta de piadas pueris, não agressivas em sua maioria para o público um pouco mais adulto, mas também não tão engraçada para as crianças. A trama segue morna, até a chegada da primeira meia hora, quando finalmente é percebida toda a motivação do chamado da aventura, já que Stine guarda as criaturas que protagonizam seus escritos dentro dos originais que esconde no porão.

    A construção em torno do protagonista mais velho é interessante, amarra bem os demônios de seu passado, aderindo a si uma aura de complexidade poucas vezes vistas em comédias rasgadas. As criaturas mágicas são muito bem construídas, com efeitos especiais excelentes. Quase todas acrescentam camadas interessantes à trama, muito além da simples desculpa visual para executar qualquer loucura, especialmente a figura do boneco Slappy, presente no seriado e também dublado – maravilhosamente – por Jack Black, que em quase todas as suas participações consegue fugir do histrionismo que o tornou insuportável em seus últimos filmes.

    Apesar de conter alguns problemas de ritmo, o filme funciona muito bem como comédia em torno da paródia biográfica, concentrando graça e carisma em seus vilões e nos personagens veteranos, quase compensando a falta de Zach e sua namoradinha. Até o recurso metalinguístico barato, presente no embate entre Zappy e seu “criador” e próximo do desfecho, soa interessante.

    A escolha de palavras para as emoções conflitantes de Stine é mal pensada, pois não deveria ser a revolta que o fez criar seus monstros, e sim a rejeição que sentia desde a infância. Tirando esse mal elemento, a motivação das duas faces do personagem de Black é plenamente crível, resultando em um acerto poucas vezes visto. O desfecho do famigerado casalzinho é tosco, brega e possui uma solução muito fácil e já esperada, mas o resultado final vale o esforço, com um gancho para uma continuação cumprindo a proposta do professor Stine, de que toda a história precisa de um início, meio e uma reviravolta, ainda que este último aspecto não seja tão interessante quanto o restante.

  • Crítica | Amy

    Crítica | Amy

    Amy - poster

    Há dificuldade em analisar uma pessoa ou objeto artístico cuja discussão ou modificação aparente ainda ecoa no presente. A ausência de distanciamento adequado pode cegar o analista, tornando-se um desafio duplo registrar uma análise de qualidade sem cair em equívocos naturais que o tempo pode ser capaz de filtrar com adequação.

    Dos mesmos produtores do elogiado Senna, Amy intenta analisar o legado de Amy Winehouse, cantora com breve carreira musical que saiu cedo de cena e foi explorada ao extremo por especialistas e tabloides. Com apenas dois álbuns lançados, sua trajetória foi estratosférica e se destacou tanto pela voz quanto pelo uso constante de drogas, uma problemática que colidia seu talento musical com uma história de abusos desde a infância, em uma família sem uma estrutura tradicional e apontada como incômodo pela cantora.

    A narrativa se apoia na cronologia para traçar um panorama da cantora. O primeiro erro da produção é imaginar que o público conhece sua biografia em detalhes e, assim, insere cenas cronológicas sobre a adolescência e, posteriormente, testes e gravações, sem explicar se, de fato, foram importantes para sua trajetória ou usadas aleatoriamente como registro gravado. Semelhante ao conceito de Senna, os depoimentos se apresentam somente em voz, destacando em tela o nome do declarante com imagens. A maioria dos depoimentos presentes são de pessoas ligadas à cantora, tanto de sua carreira quanto os amigos vindos da infância.

    Devido à proximidade dos depoimentos, falta um alcance maior para a narrativa. Não há nenhum fio condutor de maior alcance; nenhum crítico profissional que analise a importância de Winehouse no cenário musical, repórteres que acompanharam sua trajetória, qualquer outro tipo de personagem que a abordasse de fora como a cantora conhecida pela mídia e aclamada pelos críticos.

    Mesmo com uma lista de colaboradores, falta imagens e cenas relevantes que demonstrassem sua trajetória. Há muito registro pessoal, feito por amigos aleatórios e poucos apresentando sua grandiosidade nos palcos, gravando seus álbuns, discutindo suas composições, como se Amy como artista não fosse maior que a pessoa. Além deste aspecto, em mais de uma cena, fotos se congelam na tela como se a imagem tentasse causar maior impacto mas o resultado é levemente sensacionalista, distanciando-se de um documentário cinematográfico que deseja ser sério, se assemelhando a projetos feitos para televisão com apelo rápido. Afinal, quando é necessário uma imagem deplorável da cantora para demonstrar seu devastamento, é significativa a falta de narratividade do documentário.

    Diante deste cenário, a figura de Amy parece permanecer um mistério para seus produtores. Analisada por seus amigos íntimos que, de qualquer maneira, assumiam sua trajetória errática, falta material e depoimentos que consolidem a cantora por aquilo que a imortalizou. Após uma hora de duração, a produção já apresentava seus dois álbuns e intensificava o drama envolvendo as drogas. Um momento em que a história melhora, provavelmente, pelo fato do público reconhecer a problemática vivida por ela, não pela condução da história em si.

    Dona de uma grande vozes de sua geração, interessante compositora que inseriu um teor autêntico de realidade na erudição do jazz, elogiada por outras grandes vozes americanas, Amy Winehouse se torna uma pálida imagem da potência musical que foi em vida. Melhor ir direto à fonte e ouvir Frank e Back to Black para compreender, por experiência própria, o significado que a produção de Asif Kapadia não soube justificar em sua produção.

  • Crítica | Love 3D

    Crítica | Love 3D

    Love 3D 1

    O repertório do franco-argentino Gaspar Noé é repleto de filmes símbolos de transgressão, desde o já considerado mainstream Irreversível até os poucos conhecidos curtas-metragens Sodomites e Carne. A nova expressão de sua arte se inicia de maneira poética, usando o sexo – mais uma vez – como ponto de partida, em uma intensa demonstração sexual levada pela música instrumental, realocando o ideal de Kubrick em 2001 – Uma Odisseia no Espaço em termos bem mais carnais, já que Love 3D se trata estritamente disto: carne.

    Murphy, vivido por Karl Glusman, é um homem cuja rotina o esmaga, tendo o seu cotidiano como principal algoz. Apesar da proximidade com sua bela esposa Omi (Klara Kristin) e seu herdeiro recém-nascido, falta-lhe algo, logo explicitado através de um estranho telefonema, que o faz se imaginar em um momento diferente de sua vida, quando dava muito mais vazão aos seus instintos mais básicos.

    O desaparecimento de Electra (Aomi Muyock) causa no sujeito sensações primordiais, não de preocupação comum relativo a uma estranha ligação que anuncia o sumiço de alguém querido do passado, mas sim de vazios de espírito causados pela rejeição que sofreu anteriormente. Os flashbacks são orquestrados de uma maneira inusual, com episódios espaçados que mostram os motivos plenamente cabíveis em relação ao ciúme e à completa entrega emocional pela qual passa Murphy. Transitando por momentos em que uma relação completamente abusiva é mostrada em tela, esses pecados se tornam uma via de mão dupla, tanto protagonizados pelo homem quanto pela mulher em ambos espectros temporais, já que o ânimo incorre sobre o pretérito e o presente do protagonista.

    A sexualidade ultrapassa a tela, exibindo os corpos contorcidos interagindo sem pudores, sentimentalismo barato ou pieguice. O traço comum a quase todas as cenas que envolvem o sexo é a presença de sentimento, da necessidade que o personagem principal tem em pertencer e se sentir pertencente a alguém, associando a libido necessariamente à presença do amor, resultando, assim, em uma visão completamente parcial e restritiva do modus operandi do homem.

    O roteiro não tem como prioridade explicar o quanto uma relação pautada em ciúmes pode ser abusiva, até por não ser do feitio de Noé ser tão catedrático, explicativo ou moralista. Sua exposição é de pele e de sentimentos, não de valores arcaicos. A definição do que é ou não permissivo fica por conta do espectador que, como voyeur, assiste a um sem número de transas, brigas e vazios existenciais e de discurso. Murphy é como uma tela em branco, que reproduz só instinto, e que se frustra por em um determinado ponto da vida ter optado por seus neurônios, e não hormônios.

    O comentário metalinguístico, ligando o cinema ao registro do amor sexual presente no desejo de Murphy, soa pretensioso em alguns momentos, especialmente pela ausência de curvas dramáticas na obra. A expectativa em relação a Love 3D é que o filme fosse muito além do que seu primo temático, excedendo a questão de Ninfomaníaca: Volume 1 e Ninfomaníaca: Volume 2 a níveis mais profundos e viscerais, como antes fez Noé. Em determinado ponto, a trama do longa cresce, mas não o suficiente para mergulhar mais fundo do que o filme de Von Trier, já que o sueco consegue tocar em questões graves de mente e alma, enquanto aquele envolve apenas o segundo elemento, se tornando “apenas” um ensaio sobre o saudosismo erótico, repleto de ótimas cenas que mais enfeitam do que acrescentam. Até há um comentário interessante, entre as diferenças de pensamento em termos de cinema, vista no embate de estadunidenses e franceses, inteligente por sinal, mas muito pouco perto de todo o potencial.

  • Crítica | Mr. Holmes

    Crítica | Mr. Holmes

    Sr. Holmes 1

    Baseado na velhice e extrema misantropia do personagem-título, Mr. Holmes é uma aventura capitaneada por Bill Condon, que usa o talento de Sir Ian McKellen para dar substância a um roteiro confuso, atrapalhado e bastante genérico. A história se situa 35 anos após a “real” aposentadoria do Detetive, excluindo, claro, as mortes que forjou, com um Holmes que do alto de seus 93 anos tenta reescrever o seu último caso.

    O agravo que o roteiro propõe é que Sherlock já não tem todas as qualidades necessárias para relembrar seus próprios atos, graças à senilidade que se aproxima e aplaca sua inteligência e memória conhecidamente irretocáveis. A problemática não está nisso, e sim no drama genérico, que se encaixaria com qualquer personagem, não somente com o investigador de Baker Street.

    As licenças poéticas são muitas e não chegam a comprometer a qualidade do filme, mesmo que soem incongruentes, como o fato de ignorar-se que ao menos um dos 56 contos canônicos ter sido “escrito” pelo próprio agente, a despeito do médico/escritor que o acompanhava. A atribuição de elementos básicos, como uso de boné e cachimbo à imaginação de Watson, varia dentro do texto fílmico entre uma charmosa negação do herói e exageros do escritor original, que fantasiava demasiadamente, fatos reclamados já nos primeiros contos depois de Um Estudo em Vermelho.

    O enfoque no enferrujamento do detetive poderia ser mais interessante, mas é diluído por todo o entorno familiar, o que torna o drama cafona, banalizando até seu exílio com a pasteurização conservadora de humanizar o personagem, aspecto aliás completamente desnecessário. A mensagem interessante fica por conta da solidão dele, que não tem mais seus amigos, parentes e antigos colegas policiais, uma vez que somente os mitos sobrevivem eternamente – inclusive sobre mal engendradas produções cinematográficas.

  • Crítica | Minha Querida Dama

    Crítica | Minha Querida Dama

    Minha Querida Dama - poster

    Baseado na peça do renomado dramaturgo Israel Horovitz, em produção adaptada para o cinema e dirigida pelo autor, Minha Querida Dama promove um genuíno drama com uma roupagem leve que adquire coesão graças aos seus três grandes atores.

    Na trama, Mathias Gold (Kevin Kline) é um homem beirando os 60 anos que herda do pai uma casa em Paris. Ao visitar o local, descobre que na casa mora Mathilde (Maggie Smith), uma senhora de 90 anos de idade vivendo em um tipo de contrato, tradicional no país, em que o inquilino deixa o apartamento somente após a morte. Sem pretensões de sair da casa, surgem os conflitos iniciais e um laço de amizade devido ao passado.

    A narrativa trabalha uma situação pontual para desenvolver sua história. Inicialmente, de maneira leve e bem humorada, humor destacado pela trilha sonora, a personagem de Kline procura maneira de como retirar a velha e sua filha do imóvel. Convidado a permanecer no local, a história cresce deixado o cômico de situação de lado para enfatizar um apelo dramático, uma transição coerente que não retira a leveza da história pela ausência de qualquer elemento trágico. A presença de Mathilde na casa revela mais do que uma simples moradora, trazendo à tona um passado de seu pai ainda não conhecido por Mathias.

    Grande parte do equilíbrio cênico se deve ao elenco maduro composto por Kevin Kline, Kristin Scott Thomas e a sempre sensacional Maggie Smith. Em cena, os atores transitam entre as nuances de sensações representando personagens maduros que sentem um manancial de sentimentos sem extravasar ao todo o tempo de maneira enérgica, sendo capaz de rir mesmo em momentos ruins. A história se revela uma análise sobre a trajetória de pais e filhos e de como filhos podem carregar culpas e responsabilidades dos pais devido a sua criação como se o acaso ou os momentos vividos em conjunto refletissem nos filhos além da inspiração, como um fardo.

    No papel da velha Mathilde, Smith é a única representante viva da geração dos pais, testemunha de acontecimentos foram definitivos em sua vida e refletidos na trajetória de sua filha Chloe e na de Mathias. Mesmo consciente de sua história e dos conflitos gerados por suas escolhas, a matriarca permanece com uma visão otimista da vida, de sabedoria madura que não nega o passado e as decisões equilibradas no dualismo da razão e emoção.

    Apesar de um desenlace um pouco incoerente com a proposta da obra, um tanto apoiado em um final feliz em que tudo se resolve na medida do possível, Minha Querida Dama é um filme maduro que narra um conflito pontual para redimensionar uma reflexão universal sobre trajetória, escolhas e maturidade, e destaca três grandes atores que, para o público que se concentra somente no cinema hollywoodiano, são raramente destacados mas que sempre brilham em produções menores com muito talento.