Dentre os instrumentos de manifestação artística, o cinema talvez seja o que mais facilita o artificio da metalinguagem e é notório quando em um filme que fala exatamente sobre Hollywood haja uma fala tão incrédula e resumidora da conjuntura criativa mainstream. Ao ter seu carro invadido por um ator pretensioso – Don Lockwood, vivido pelo eterno Gene Kelly – a moça simples Kathy Selden (Debbie Reynolds), ao afirmar que não vai muito ao cinema, dispara que se já viu um, já viu todos. A química entre o casal de protagonistas só funciona graças ao desprezo da mulher sobre o homem, que está acostumado a ser adulado o tempo inteiro, e essa é somente uma das muitas quebras de expectativa que o filme de Kelly e Stanley Donan realiza.
Em meio a indústria do cinema mudo, o roteiro de Betty Comden e Adolph Green transita, mostrando os detalhes sórdidos de um cinema norte americano em construção, em meio a números musicais inspirados e com uma coreografia afiada e inspiradora. Mais do que a construção de cenários grandiosos e luxuosos, há um cuidado em louvar a indústria como um todo, valorizando inclusive as funções de contra regra e demais membros da produção, em especial os que fazem o trabalho mais pesado.
O ponto de ruptura da perfeição que é todo esse ambiente idílico, é a transição do formato do cinema mudo para o falado, mudança essa que atrapalharia a estrela Lina Dumont (Jean Hagen), que era belíssima mais tinha uma voz ruim. Tal situação abre espaço uma farsa, onde se usaria a voz de Kathy para substituir o som esganiçado que saia da garganta de Lina.
Apesar de ser um clássico, o argumento traz a tona assuntos bastante controversos, como o papel da mulher no showbusiness e o esforço tradicional em relegar esta a um segundo plano, seja na supressão da imagem de Selden, que deveria somente emprestar sua voz e não o audiovisual, como também na busca por seus direitos, somente ocorrido após o famoso ator se apaixonar por ela, como se a mulher fosse apenas um prêmio a ser disputado, desprovida de identidade e da busca por seus próprios sonhos. Nesse ponto, o trabalho de Reynolds é salutar, pois sua postura além de conter uma enorme graça, também reúne uma audácia poucas vezes vistas em papéis femininos, e isso ocorre desde sua primeira aparição, quando ela finge não se interessar pelo formato cinema, como em uma resposta atravessada de que se aquela não era uma arte capaz de ser palco para seu talento, não haveria de debruçar interesse sobre ela.
O equilíbrio entre reverenciar o cinema dos anos vinte e denunciar as injustiças que incorreram em toda a história da construção da sétima arte é alcançado a maestria, claro, sem descuidar de uma direção de arte tão inspirada quanto a série de músicas entoadas por Kelly, Reynolds e pelo coadjuvante de luxo Donald O’Connor. A ode à arte que faz Cantando na Chuva transcende as meras homenagens e se torna uma real desconstrução do irreal dentro da linguagem cinematográfico, soando ainda mágico em sua proposta musical, tendo um caráter poético e metalinguístico que alia forma e conteúdo em torno da arte.