“Sobre a frágil base da realidade a imaginação tece sua teia e desenha novas formas, novos destinos”.
Revisitar Ingmar Bergman é e sempre será uma experiência única de redescobertas. Contemplar o trabalho de um artista que debruçou-se em seus mais recônditos medos e aspirações é um trabalho árduo, principalmente se o filme em questão se trata de Fanny e Alexander – provavelmente seu trabalho mais “biográfico”. Na obra em questão, encontraremos condensado tudo aquilo que elevou o cineasta ao patamar de um dos maiores diretores de todos os tempos e tudo pelo qual ele sempre buscou abordar em sua carreira.
Ambientado no início do Século XX, depois de um prazeroso Natal, a família Ekdahl se vê abalada com a morte de um de um ente querido, o membro que acaba falecendo tratasse do pai de duas crianças – Fanny e Alexander – e é esse acontecimento que desencadeará todo o desenrolar dos fatos subsequentes. Emilie (Ewa Fröling) a mãe do casal de crianças, logo após a morte de seu marido, acaba se casando com um homem extremamente religioso e rígido chamado Edvard Vergérus (Jan Malmsjö).
Ao mudar-se junto das crianças para sua nova morada, Emilie e seus filhos acabam sendo acometidos por vários problemas que vão surgindo aos poucos. Além das ditatoriais condições impostas pelo novo patriarca, Alexander começa à presenciar e ver espíritos e fantasmas que assolam a moradia. A partir desses intempestivos eventos o trio acaba iniciando uma saga para retornar ao seu antigo lar.
Em grande parte da história somos guiados principalmente pelo olhar de Alexander perante os fatos, personagem esse que acaba assumindo um suposto alter ego infanto-juvenil do diretor sueco, fator que fica evidente quando observamos acentuados na narrativa dois aspectos marcantes: os temas metafísicos vividos pelo garoto e uma forte doutrinação religiosa familiar, questões que sempre foram muito significativas e recorrentes na vida de Bergman como o próprio diretor já deixou claro em entrevistas e documentários.
Além de uma minuciosa e detalhista produção, um grande ponto forte que salta aos olhos é a preciosa fotografia regida por Sven Nykvist – parceiro de longa data do cineasta -, que inclusive acabou sendo laureado com um Oscar pelo trabalho. A inocência do casal de crianças posta à prova há todo momento, assume em determinados instantes uma metáfora de transição sobre o amadurecimento humano. Narrativamente falando, a proposta dos muitos símbolos e personagens sobrenaturais utilizados de maneira tão crua, segue uma lógica dentro do enredo que propõe e acentua as incertezas e intempéries cotidianas que várias vezes fogem de nossa compreensão, soando por vezes ilógicas. Tal solução e sua representação, acaba acrescentando o elemento do “fantástico” na trama como algo natural e ao mesmo tempo crucial, uma característica bastante conhecida pelo grande público através dos tão difundidos contos e livros de Shakespeare – outra clara inspiração do filme.
Se em Alexander temos configurado a espinha dorsal dos acontecimentos, na personagem de Fanny encontramos uma personalidade que contrapõe à de seu irmão e que é marcada por uma ternura quase angelical, cadenciando com isso a forte relação entre ambos. Cenicamente a obra é muito fidedigna, reconstituindo de forma precisa a época onde se dão os eventos e que de maneira homogenia, se equilibra entre figurinos esteticamente belos e cenários ambientados de forma deslumbrante.
Flertando com lúdico e o real o tempo todo, Bergman compõe um filme extremamente intenso e poético que se sustenta em grande parte por uma narrativa fluída de diálogos inspirados e uma identidade visual artística pautada na linguagem teatral.
Fanny e Alexander é uma obra coesa, que assimila exemplarmente técnica e conteúdo e que não sendo histriônica, expõe de maneira muito interessante um diálogo entre questões religiosas e sobre a liberdade individual.
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Texto de autoria de Tiago Lopes.
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