“Nem sempre a gente sabe o que tá filmado…”
É engraçado como João Moreira Salles soa o filme inteiro como se estivesse pedindo licença para adentrar na realidade, registrá-la e investigá-la, feito um jornalista não temeroso mas ainda desacostumado com a sua profissão. O cineasta carioca não parece decifrar com tranquilidade fotos em movimento com atores e situações reais de um Brasil, de uma Europa, de uma Ásia ancestrais. Poetizando tempos distintos ao nosso momento atual, Salles promove uma viagem pelo tempo e faz um filme-hipnose, e metódico, como melhor deve ser chamado No Intenso Agora. A intensidade, na verdade, não mora em nenhum dos seus relatos acerca de eventos que moldaram a história da humanidade, como hoje em 2018 já se pode perceber, mas consta na ganância especulativa de Salles em torno de fatos dignos de interpretações de caráter extremamente dúbio, e abismal.
A história é feita de controvérsia, aonde quer que se olhe em seus registros e impressões decorrentes. Para nós, seria injusto ter sobrado apenas uma nostalgia irreparável de tempos remotos e recentes? Eis um documentário que tenta ser original não escapando da nostalgia familiar do começo da sua narração (onipresente e que quase nunca deixa as imagens falarem por si só), para se debulhar em questões paralelas e nacionalistas que equilibram os seus temas, o tempo todo. O forte teor político de No Intenso Agora, que consegue ser um pouco mais que um poço de desejos e lembranças do seu diretor, anda de mãos dadas com uma visão caseira e basilar que parece sair de um documentário do saudosista português Manoel de Oliveira, e é esse o verdadeiro núcleo essencial de uma obra que une tantas ocorrências da década de 60, para culminar num mesmo propósito nobre para todos nós: seus desdobramentos posteriores constatados no povo, e para o povo.
E é isso que o diretor do espetacular Santiago, de 2007, está mais interessado: O que acontece de periférico na existência de um fato, o que rola em suas beiradas e como isso afeta a todos. Como ele mesmo fala, é mesmo difícil prever o futuro, e por isso talvez tenhamos tanta sede em revirar o passado, como sentem com mais força os mais conservadores de opinião. Numa teia de acontecimentos, o povo carioca velava em 1968 o estudante Edson Luis, morto pela polícia, e a democracia ainda era mito no Brasil. Na França, o povo francês lutava na rua por liberdade, felicidade e mais direitos em março do mesmo anos, mas qual era a opinião dessa gente, aqui e acolá? E qual o valor da rua quando pronunciamentos presidenciáveis são filmados pela TV, e não diante do próprio palanque? O filme de Salles tenta estimular respostas a essas perguntas, para a dimensão humana das tragédias, mas se perde em excesso de relatos e registros que, por mais valiosos que sejam, faz o documentário perder o foco e ser engolido pelo ego considerável do seu diretor.
A alegria e a tristeza do povo (europeu, chinês, brasileiro) não é debatida em eventos de grande potência, mas pincelada e almejada como bem se entende na frase de um estudante francês: ‘Cada segundo tem a espessura da eternidade’. Se antes havia mais local que polêmica num fato controverso, hoje há mais controvérsia que peso regional num fato, dada a nossa globalização. O mundo já foi regulado, e hoje parece seguir feito uma criança sem os pais para engatinhar em seus tropeços históricos. No Intenso Agora é um Utopia e Barbárie menor, mais pessoal com o que lida e debate, muito mais poético e mais excessivo no seu vasto escopo histórico. A partir dos caminhos de uma família de classe média, conhecemos os víeis conflitantes e marcantes de um outrora não tão distante da nossa contemporaneidade líquida, e conectada. Mas a questão que fica, agora, é a seguinte: O quanto nosso passado importa à maioria das pessoas, agora? Se depender desse documentário, tudo.