Em nossa cultura, a figura do português é invariavelmente satirizada. Não tem jeito, as piadas sobre a pouca inteligência dos lusitanos e as inúmeras representações humorísticas de D. João VI e sua corte fazem com que não levemos nossos colonizadores a sério. Nesse contexto, é fácil esquecer que Portugal é uma nação milenar e tem também sua cota de grandes acontecimentos históricos, em especial o período das Grandes Navegações. O livro A Casa de Avis, escrito por Marcelo Mússuri, surge então como uma grata surpresa, mostrando que o passado da pátria de Camões pode ser tão épico quanto o de outros países europeus.
Publicado pelo selo Novos Talentos da Literatura Brasileira, da Editora Novo Século, A Casa de Avis é a primeira parte da Trilogia Calicute. Trata-se de uma ficção histórica em seu formato tradicional, de misturar fatos e personagens reais com elementos inventados. Romantiza-se a aventura sem deixar de lado uma interessante aula de História. A trama foca principalmente em dois personagens: o navegador Bartolomeu Dias e o pequeno Jaime, filho do terceiro Duque de Bragança. Ambos existiram realmente, mas seus caminhos só se cruzaram nesta obra ficcional.
Dias é reconhecido como o primeiro a cruzar o Cabo da Boa Esperança, mas historicamente acabou à sombra de Vasco da Gama, que foi o primeiro a chegar às Índias. O autor aborda não apenas isso, mas coloca Dias também como pioneiro na chegada ao Brasil, nisso também perdendo o crédito. Quanto a Jaime, com apenas 6 anos de idade ele viu seu pai ser executado por traição, e foi exilado até o final da idade adulta. Mússuri aproveita esse período de exílio para inserir o personagem na tripulação das primeiras navegações de Dias, como um jovem grumete.
Desde o início, nota-se que a obra é bastante ambiciosa. Ela procura trabalhar tantos aspectos que acaba até se dividindo em múltiplos estilos de aventura: temos intrigas e politicagens da realeza medieval-renascentista (impossível não lembrar do recente seriado The Borgias); navegações, perigos em alto-mar e descoberta de terras exóticas; e até mesmo um trecho “aventura na África”, com os inevitáveis choques culturais. Cada um desses momentos, individualmente, é muito satisfatório. O cuidado com a pesquisa histórica é notável, e as descrições são detalhadas sem se tornarem maçantes. A violência das batalhas, por sinal, é impressionante. Sem dúvida, o grande destaque do livro.
O problema é a conexão entre esses momentos. A narrativa fica truncada nas transições, pois acontecem saltos de tempo, cenário e até de personagens, de maneira brusca, sem grandes explicações. Logo no início do livro, após Dias e seu irmão Diogo resgatarem Jaime, a história volta repentinamente décadas no passado e dedica-se a outros personagens, sem ligação evidente com o tempo presente da trama. O leitor fica confuso, pois são muitos nomes (repetidos em diferentes pessoas, inclusive). Mesmo adiante, quando os protagonistas voltam à cena, um salto de cerca de dez anos acontece sem aviso.
Talvez por conta disso, ou por simples falta de espaço para tal, o desenvolvimento dos personagens também sai prejudicado. A competência e determinação inabaláveis de Dias, a fidelidade para com ele por parte de Diogo e do colega navegador João Lopo, o crescimento de Jaime e sua amizade com o negro capturado Zuberi; aspectos interessantíssimos captados apenas nas entrelinhas, mereciam maior destaque.
Mesmo com esses problemas, A Casa de Avis sai com saldo positivo e digna de uma recomendação segura, especialmente para os interessados em História. Aplausos merecidos por dedicar-se a um período tão ligado a nós brasileiros, mas pouco explorado em obras ficcionais, e fazer disso uma aventura empolgante.
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Texto de autoria de Jackson Good.