A recente coleção Otra Língua, da Editora Rocco, faz a lição de casa que nós, leitores e escritores brasileiros, meio que historicamente nos recusamos a fazer, envoltos em nossos próprios mestres nacionais, alheios a oceânica diversidade de vozes de nossos vizinhos latino-americanos. É como se a nação de Machado de Assis (Dom Casmurro) e Guimarães Rosa (A Rosa do Povo) só fosse voltar a sua atenção a Pablo Neruda (O Coração Amarelo) e Gabriel Garcia Márquez (O Amor nos Tempos de Cólera), só depois dos mesmos terem ganhado reconhecimento muito além do continente que compartilhamos – seja pela fronteira linguística que nos torna mais distante de grandes autores da Argentina, Chile, Peru e outros países, seja pela predileção brasileira aos clássicos de autoria própria, quanto a nossa própria realidade tupiniquim que já é continental, por si só.
Ao introduzir no cenário editorial nacional diversos autores renomados, do calibre de Juan Emar (Um Ano) e Eduardo Halfon (O Boxeador Polaco), entre outros, a Otra Língua expõe, em traduções inéditas para o português, as veias abertas da literatura moderna latino-americana em inúmeras obras-chave de autores, até então, tidos como secretos ao grande público do Brasil. Ainda longe da fama do argentino Jorge Luís Borges (Ficções) ou de seu conterrâneo Mario Benedetti (Primavera num Espelho Partido), chegou a hora de mais leitores de São Paulo, Rio de Janeiro e outros estados do país conheceram, muito mais facilmente, a obra do uruguaio Mario Levrero, autor do clássico instantâneo Um Romance Luminoso, uma publicação póstuma de 2005 que o colocou no radar dos leitores até mais exigentes. Não que Deixa Comigo não mereceu ser o escolhido pela Rocco para a coleção, uma vez que o romance é aperitivo perfeito para se encantar pelo universo nada particular de Levrero.
Perdido numa investigação fictícia pelo autor desconhecido de uma verdadeira obra-prima em espanhol, e incumbido nesta missão por uma editora que o oferece dois mil dólares para que Levrero ache a mente por trás de um manuscrito anônimo, de inacreditável qualidade e sofisticação literária única, vamos juntos com o escritor até a “cidade fantasma” e esquecida por Deus de Penúrias, em algum lugar do Uruguai. Lugar árido, descrito, em uma fabulosa narrativa em primeira pessoa, mais a partir de seus habitantes que das peculiaridades regionais, ou geográficas de Penúrias. Personagens sem futuro ou passado, já que tudo é a mesma coisa para eles, vivendo o hoje. O calor latino, sob uma temperatura forte e uma condição de museu justamente para que o autor as descreva como seres que apenas vivem, e nada mais. Entrelaçados uns aos outros, num cotidiano que parece se estender até o Juízo Final sem muitas transformações, até lá. Levrero tem um estilo fabulesco para a realidade, usando-a para fins de revisão poética do dia a dia de um turista, ou melhor, de um detetive todo atrapalhado.
Detetive que não supera sua separação recente da ex-esposa, e que por isso, volta a confiar em si mesmo com a ajuda de prostitutas espertas, de epifanias boêmias, de amigos que também não pertencem a Penúrias e que faz pelo caminho, em meio a sua cruzada que nunca parece dar frutos. Afim de achar o tal autor secreto, Levrero explora na verdade o papel do homem de palavras neste mundo, neste sistema de tantas influências que chamamos de sociedade. Não importa aonde vamos, para onde nos deixamos atrair ou com quem criamos laços: o escritor é um ser incomodado por natureza, e curioso como só, vive em desdobramentos e investigações auto impostas, sobretudo existenciais. Deixa Comigo torna-se, desde o princípio, uma curta e célebre metáfora sobre estas criaturas do dia, da noite, da vida, da morte, de missões tão variadas que geralmente são absolutamente maiores que suas extensões humanas. Como o próprio Mario Levrero comenta, numa estimulante entrevista consigo mesmo já nos finalmente do romance: “eu certamente vou voltar a escrever, mas por ora, isso não depende de mim”. Levrero vive, e agora no Brasil também.
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