Resenhar Fiódor Dostoiévski é ingrato. O que ainda se pode falar sobre esse que é considerado por muitos o que chegou mais perto de entender o Humano? Notas do Subsolo (L&PM Pocket) foi publicado em 1864 e rende venerações e interpretações diversas até hoje. Um livro provocativo e perturbador, no mínimo, e que tenta desvendar a “eterna contradição humana”, como sintetizado por Machado de Assis em A Igreja do Diabo, o nosso Machado, por sinal, lia muito Dostoiévski.
Notas do Subsolo é um monólogo dividido em duas partes onde o narrador é um ex-funcionário público que, após ganhar uma herança, resolve se mudar para os subúrbios de São Petersburgo. Ao adotar o novo modo de vida modesto e por ocasião dos quarenta anos (uma longevidade surpresa), resolve defenestrar contra tudo e contra todos os inconformismos que ficaram presos na garganta.
Sozinho, mas escrevendo a todos os homens sobre as qualidades podres do “homem do séc. XIX”, mostra a razão na insanidade, a felicidade na infelicidade, o amor no desamor, o prazer na dor, etc para nos vender a ideia de que o homem do séc. XIX é no mínimo desonesto para com os demais. E para ilustrar esse homem, ele mesmo, do subsolo, conta seus prazeres niilistas, sombrios, mas também frágeis, de quem sobreviveu com carências à face.
O subsolo é sua base. Ele escolhe descer no menor degrau possível para observar toda a pirâmide social que tem diante de si; os aristocratas, os funcionários públicos, os burgueses, o clero, os militares, todos escondem parcelas degeneradas desse homem do Séc. XIX. Sua motivação em escrever parece ser a própria antítese em sobreviver, pois se por um lado afasta o sombrio ao escrever (ou pelo menos tenta iluminar qualquer escuridão), por outro é como se cortejasse a própria ruína em suas palavras.
Isto é o que ele nos vende: a sensualidade da contradição entre o falar e o agir. Ficamos fascinados por seu ódio, sua violência cotidiana, sua grosseria que nos esquecemos de sua baixeza ética e moral. Nos concentramos nas palavras de um narrador que tem por única qualidade não mentir, e deixamos de lado seus desvarios para com o outro, “A violência é tão fascinante e nossas vidas são tão normais”, já cantava Renato Russo.
Cada qual fará o seu julgamento, esta é a certeza do homem do subsolo. Cada qual fará a sua leitura deste que é um dos livros mais recomendados possíveis. A edição pocket da L&PM é boa, agradável e realmente cabe no bolso. Deixemos a superfície por um momento, vamos ouvir o homem do subsolo.
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Texto de autoria de José Fontenele.