A visão da informática nos anos 80 e 90 não poderia ser melhor representada, popularmente, do que foi em Matrix bem na virada do milênio. Não só através de cenas de ação inesquecíveis, mas no próprio uso dramático do seu principal tema tecnológico: o mundo online é uma extensão da nossa realidade. Logo no começo da revolução digital, autores de ficção científica e fantasia piravam nas possibilidades infinitas de um novo cenário, onipotente e fadado as ambições e loucuras do homem. Mas, se no épico das irmãs Wachowski ou em inúmeros animes japoneses futuristas, tudo pendeu mais ao surreal e ao barulho para garantir a adrenalina da plateia, e a ela apresentar pela ótica da ficção uma rede mundial de computadores, foi no campo literário que o cyberspace foi e continua a ser bem mais sofisticado, ou seja: melhor especulado nas suas inúmeras questões extrafísicas, polêmicas e regulatórias, debatidas em sociedade desde os primórdios da invenção coletiva da internet.
Em 1992, Neal Stephenson veio com o seu Snow Crash, publicado inicialmente como Nevasca no Brasil pela editora Aleph, um dos cem melhores romances dos anos 90 segundo a revista Times. Exageros à parte, eis um livro-chave para os amantes mais modernos de aventura, e que as vezes podem se indagar: e se o Indiana Jones caísse numa dimensão cibernética, cheia de tecnologias delirantes e muita paranoia? Bom, foi mais ou menos isso que Neal imaginou ao acompanhar a história de Hiro Protagonist. Para todo mundo, ele é só um ex-entregador de pizza, já que na verdade (e para poucos) ele é o último hacker freelancer dos Estados Unidos. Co-criador do Metaverso, uma enorme realidade aumentada aonde se pode andar pelas ruas, e entrar nas lojas que os melhores programadores da Terra criaram no início do Metaverso, Hiro ajudou a criar o bar Black Sun. É lá onde os avatares mais renomados do Metaverso adoram passar um tempo ostentando suas vaidades, e é também onde uma poderosíssima droga (um vírus) chamado “Nevasca” aparece, pela primeira vez.
Aparentemente inofensiva, a droga (“Snow Crash”, em inglês, um termo para quando o computador trava, e a imagem do monitor fica embaralhada igual uma Nevasca) é comercializada no Metaverso cada vez mais, feito o Covid-19 a se propagar na China. Infectando todo mundo nessa realidade virtual, Hiro começa a entender que ela pode ir muito além de um reles vírus online. Tendo implicações no mundo real, e servindo de ameaça iminente a Hiro, que sabe demais justamente por ser um hacker, a droga precisará ser combatida nas camadas mais ocultas do da deep web, ou poderá ser tarde demais inclusive no mundo real. O livro emblema com total dinamismo a falta de privacidade do cidadão quando inserido na internet, e o peso da liberdade quando esta é ameaçada. Assim, o autor reflete sobre a paranoia do homem diante do desconhecido, e principalmente quando o desconhecido é autônomo e faz parte daquilo que o próprio homem criou. É o velho drama do “Criamos um monstro e ele fugiu do controle, e agora?”, muito bem tratado aqui.
Mesmo sendo mais longo do que precisava ser, e previsível quanto aos arcos de personagens coadjuvantes, Snow Crash ou Nevasca é um amplo conto futurista e cheio de influências dos anos 80 lançado bem no ano da morte de Isaac Asimov, o genial escritor russo de ficção-científica que revolucionou a maneira a qual o ser-humano enxerga a inteligência artificial – para sempre. O que impressiona, de fato, é a maestria de Stephenson junto a uma narrativa que flui feito um rio, a serpentear. O cara nos conduz por um jogo de palavras realmente cativante e que, com certeza, seduziu a revista Times no seu ranking da década de 90. Um tanto cansativo no final, mas irresistível no começo, Snow Crash é feito sob medida para quem não tem paciência para toda a filosofia de um O Tempo Desconjuntado, e prefere uma cientologia e uma filosofia bem embaladas na adrenalina, e no suspense que existe aqui. Achou que só Matrix era assim? Achou errado.
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