“- Como é que tu ficou desse jeito, tchê?
– Um trauma.
– Pois toma outro!”
O tal analista de Bagé já entrou para a história da literatura brasileira dos anos 80, a chamada década perdida devido a tormenta de fatores políticos, econômicos e culturais que o Brasil enfrentou, e permanece traumatizado desde então. Enquanto o céu desabava em forma de ditadura militar, um homem de métodos não muito ortodoxos (por mais que negue isso) andava a revirar, com grande prazer, todos os recantos do espírito humano da forma mais sarcástica possível, em um consultório com uma secretária espertinha, e um pelego para se deitar, expondo toda sorte de loucuras e desamores não-resolvidos. Afinal, o doutor só pegava os piores casos, já que “cavalo manso, só para levar a missa”. Adepto de Freud, nosso Senhor, e mais mulherengo que marido de mulher barbada, seu nome é Analista de Bagé, e as crônicas que protagoniza tem o que há de melhor na criatividade deliciosa de Luis Fernando Veríssimo, de A Mesa Voadora e outras belezas.
Belezas essas que tais crônicas, tão rápidas quanto marcantes, tratam de retratar com um vigor e um sarcasmo a toda prova. Veríssimo é autor de excentricidades e saborosas ironias bem brasileiras, com um humor inconfundível a impregnar suas criações e reflexões até o talo, de cabo a rabo. Fato é que um livro seu, por mais breve que seja, vale como a mais gostosa conversa de boteco numa tarde de primavera que se possa ter, rindo da vida como se esta fosse um hospício que tratamos de levar a sério demais. O Analista de Bagé reconhece e encarna essa visão, já tendo suas peripécias adaptadas para o teatro e as HQ’s também, e contando com sua fiel secretária Lindaura, separa para sua análise no divã os “melhores” tipos de esquizofrênicos e complexados do Rio Grande do Sul – e sem poupar algumas verdades inteiras quando é preciso. A reunião de Todas as Histórias do Analista de Bagé é puro ouro, com o leitor porventura sentindo-se tentado a passar por uma análise bem politicamente incorreta com esse personagem, vivo até demais.
Certa vez, atendeu um cleptomaníaco. Na outra, um paciente que se achava o Presidente da República, sem falar naquele que não queria deitar no divã – até porque sofria de incontinência urinária. Não o bastante, o Analista foi chamado às pressas para Londres para curar a princesa Diana de uma tristeza profunda, no que ele diagnosticou como pura e simples “frescura da realeza”. Não havia enigma que, em três páginas, o doutor não resolvesse com sua psiquiatria tresloucada, tal uma cozinheira que detecta mudança no tempero só de sentir o cheiro. Bagé tinha sorte e não sabia: contava com um representante de Freud que não tolerava teimosias, e nem gente que desrespeitasse seu mestre alemão. É claro que o Analista trocou o cachimbo pelo chimarrão, e assim se tornou uma figura lendária, ganhando até mesmo uma estátua da prefeitura de Bagé, no Rio Grande (que, segundo ele, foi feito com mais capricho que qualquer outro estado). Um ilustre morador da cidade, mas também da nossa literatura, nobre como suas confusões e sua sabedoria de malandro velho.
Ele sempre sabe o que dizer – e o que fazer, ainda mais quando o paciente quer se jogar pela janela ou acha que é metade cavalo. Tem de tudo no consultório. E vai chamar gaúcho de homossexual pra ver o que acontece. Só não é pior do que urinar no seu pelego. Todas as Histórias do Analista de Bagé faz parte de um regionalismo e de uma época de moralidades muito particulares, cujas expressões, verdades e dilemas permeiam essas crônicas de forma generalizada, intrínseca. Retratos legítimos de um outro tempo na sociedade de Bagé, dos anos 80. Veríssimo faz-se extremamente hábil e gracioso em suas tramas curtas, emblemático em sua já mencionada visão de mundo através de um analista que chega a se analisar, de tão curioso pelo espírito humano que, para ele, é mais misterioso que o fundo do mar. Como diria: “Não te fresqueia e deita logo!”, ou vai acabar levando o joelhaço mundialmente reconhecido e aprovado do Analista. Isso sim, cura todos os males.
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