Lourenço Mutarelli é um autor brasileiro cuja obra é bastante peculiar. A editora Comix Zone aproveitou da proximidade de um de seus editores com ele para publicar compilados de algumas de suas histórias clássicas. Foi assim com o fanzine Over-12, recentemente trazido de volta junto com Mundo Pet.
Capa Preta possui quatro histórias, publicadas originalmente em anos diferentes e que tem em comum a temática da violência e escatologia. As histórias são Transubstanciação (1991), Desgraçados (1993), Eu te amo, Lucimar (1994) e A confluência da Forquilha (1997). Na primeira é mostrado que nesse mundo de Mutarelli, as pessoas são degeneradas, podres e taradas em sua maioria. A trama aborda um poeta vagabundo, que comete infidelidades e tem sonhos bastante estranhos, envolvendo gente e divindades deformadas. Esses pesadelos ocorrem depois dele tentar ocupar sua mente com qualquer coisa: ouve rádio ou vê TV com volume de ambos altos. A atmosfera aqui lembra um pouco o trabalho do quadrinista Robert Crumb, embora mais sujo e cínico, deprimente em seus personagens como os do poeta e contista Charles Bukowski, ou seja, esse cenário fálico, violento e infernal, possui influência de autores malditos, cuja visão de mundo é mirada em desesperança, basicamente.
As pessoas mostradas nas histórias são feias, cheias de imperfeições e imoralidades, e o uso do preto e branco valoriza essas condições. Outro aspecto curioso é que Mutarelli parece gostar demais de música portenha, as canções em espanhol permeiam mais de uma história, e servem de pano de fundo para a narrativa. Apesar da brevidade das histórias, há um monte de referências visuais em cada uma. A leitura para ser apreciada precisa ser feita com atenção, afinal, seu traço característico envolve um número de detalhes imenso em cada página dupla que trabalha.
As pessoas das quatro histórias são destruídas moral e sentimentalmente, viciadas e insensíveis mesmo quando são as “mocinhas”. Há poucos momentos de alegria e muitos de agonia. Elas são personagens, de fato, desprovidas da graça. Em mais de uma história há também a questão de profanação de elementos bíblicos, embora a maioria das vezes, só se referencie momentos contraditórios que o escrito cristão normalmente tem, como as brigas fraternais de Caim e Abel ou Esaú e Jacó. As cenas de sexo são grotescas, e caso o leitor seja muito sensível, é preciso apreciar com cuidado e parcimônia.
A mais anárquica e pesada entre as desventuras reunidas é A Confluência da Forquilha, que mistura sentimentos familiares com fetiches estranhos em praticamente todos os personagens. Toca o “Divino Mau” de fato e mostra um apego dos homens estranhos ao comum e ordinário como forma de rechaçar o que o sujeito conservador acha ser errado. A curadoria que a Comix Zone fez ao escolher essas quatro edições para formar sua publicação é bem pensada, e apesar de não haver entre elas amarras cronológicas ou narrativas, há o mesmo espírito permeando todas, sem que se perca a identidade e originalidade de cada uma.