Há dois conflitos básicos em Estranhos, a primeira graphic–novel de Fefê Torquato: a invisibilidade social que uma vida urbana pode trazer ao cidadão, e a dificuldade em conviver consigo mesmo quando tudo que existe na sua vida é apenas você, seu canto, e mais nada. Num contexto brasileiro, é difícil imaginar outra cidade que simbolize melhor a individualidade urbana, e a indiferença entre as pessoas de um mesmo quarteirão, ou de um mesmo prédio, que São Paulo; verdadeiro formigueiro onde vizinhos são mais distantes e alheios, uns aos outros, que dois extremos terrestres.
Pois a cidade grande é isso, um vasto campo de anonimato e poucas celebridades sensacionalistas, vendendo sonhos aos anônimos de reconhecimento, e felicidade bem-sucedida que parecem nunca terminar. Aos famosos, o prestígio ilusório, ainda mais agora nos tempos de Instagram, e aos normais do cotidiano que só fazem acordar e dormir, para (e sobre) eles ficam as histórias de Estranhos, centradas no cosmos particular de cada rosto, na multidão. Quando a multidão se dissipa, e cada um toma uma direção, o que fica é o que existe por trás de cada janela, de cada cortina semiaberta. Da quebra de máscaras de cada um, garantindo assim a nossa banalidade diária, e a luta contra ela.
Temos então a família acima de qualquer suspeita, o ator com extrema ansiedade social, o homem que só quer chegar em casa para alcançar um motivo de sorrir. Torquato invade a privacidade alheia com grande sensibilidade, e graça, encantando-nos com a quebra do sigilo “dos outros”, conseguindo talvez nos fazer ver os nossos segredos refletidos em suas páginas e personagens, também. Com a autora, serpenteamos por cômodos e edifícios daqueles que gritam, condenados ao nada, e aquelas que olham para esse nada, atrás das janelas, esperando. O purgatório existe, não há porque esperar por ele se vivos já podemos experimentá-lo.
Curioso como esses “contos do nada” nos lembram que somos, sim, bastantes parecidos aos nossos vizinhos. Aqueles que, muitas vezes, não sabemos nem o nome, ou o número da sua casa – nesse caso, apartamento. Solidão e solitude tornam-se dois conceitos híbridos para o homem solitário que vive entre quatro paredes enquanto morre dentro de si, ou a mulher cujo único prazer é escovar seus dentes, enfrentando a monotonia como uma amazona enfrenta seus leões. Fantasmas sociais, corpos empilhados, um em cima do outro, numa selva de pedra com infinitas histórias por metro quadrado que, para acessá-las, é preciso burlar a intimidade do próximo.
Uma das melhores e mais reflexivas produções dos quadrinhos nacionais recentes, Estranhos segue irrepreensível até sua última história, a mais dispensável entre todas. Ao focarmos a atenção no zelador do prédio, o fantasma dos fantasmas, alma penada entre os passantes, o livro tenta condensar toda a essência do anonimato e da banalidade inerentes de todos(as) nós numa única figura, simbólica por natureza. Nisso, perde um pouco de sua pujança ao resumir todo esse mural antropológico do ser urbano num ponto só, algo bastante óbvio e simplista, mas que encapsula a “estranheza” que veio antes. Uma esquisitice tão comum e familiar, a nós, os sobreviventes.