O livro do correspondente de guerra Curzio Malaparte entrou para história como um visceral conto feito de modo secreto enquanto ele registrava suas vivências em solo nazista. A arte de Eloar Guazzelli reabre as feridas da Malaparte em Kaputt, a versão em quadrinhos que invoca todo o sectarismo e crueldade nos atos dos alemães inspirados pelo antigo chanceler austríaco.
A missão de transpor os relatos do jornalista a outra mídia deve-se ao fato de que foi o pai do artista da nona arte que lhe presenteou com o denso trabalho de Malaparte, repleto de camadas e cuja compreensão varia de acordo com o repertório do receptor. O começo do relato é feito sob a égide de que é o medo que fomenta o ódio dos que causam o mal, uma alusão ao desconhecimento como fonte da antipatia do ser humano. Sem aplacar os horrores e preconceitos, a obra desmistifica o conceito de que havia na Alemanha, dos anos 30 e 40, uma desinformação geral, ao menos da parte dos poderosos.
O traço característico de Guazzelli dá uma nova dimensão de significados ao letrado original, algumas vezes dispensando os dizeres canônicos. Dentre todos os pecados dos opressores, o mais latente é certamente o da xenofobia, já que Malaparte encontrava-se na Ucrânia, assim como muitos soviéticos. Ainda assim, a denúncia também recai sobre o tratamento dado aos poloneses, vistos como seres inferiores, flagrando os guetos onde os judeus viviam e de onde era tirado o sacrifício que servia ao (pouco) simbólico banquete genocida.
As figuras criminosas são mostradas, de início, nas sombras, com pouca luz sobre suas faces, distintas suficientemente para não descaracterizar a humanidade dos prisioneiros. Uma tentativa de não banalizar os pecados cometidos sob o pretexto da guerra.
A predominância de cores escuras remete à ausência de bondade nos atos dos homens da Gestapo, que não têm qualquer piedade de suas vítimas, mesmo quando estas são munidas da ingenuidade típica da infância. Os poucos mostrados em cores vivas são os que não praticam atos bélicos, ao menos naquele momento. No entanto, quando as falas remetem ao conflito, a colorização negra retorna para deixar explícito onde reside o mal.
O espírito sentimental atrelado ao texto de Kaputt faz emocionar e introduz-se como documento histórico. Gerada pelo brasileiro, que assumiu a árdua tarefa de dar vida aos contos de chacina redigidos pelo italiano, a obra produz uma pessoalidade poucas vezes vista em histórias do Holocausto, traduzindo em fortes imagens a dor de um povo e o remorso de quem fez parte daquilo, ou dos que ainda guardam em si qualquer rastro de civilização. Mesmo após o anúncio do fim da narrativa, os aspectos de Kaputt são ligados à desfaçatez e à inumanidade dos que produziram morte, violência e desprezo por outrem. Um alerta, em última análise, para que a própria História não volte a se repetir.