Publicado no Brasil pela Conrad Editora, Minha Vida é uma obra como tantas outras de Robert Crumb, onde ele foca sua narrativa em uma espécie de auto biografia, tomando as liberdades que passando pelo seu bel prazer. É curioso como um quadrinista tão tímido quanto Crumb consiga fazer auto ficção e de maneira tão divertida e orgânica quanto é visto nesse número. É provável que o autor usasse esse tipo de artifício para exorcizar seus demônios, onde poderia, ao se colocar como personagem, falar e escrever abertamente sobre suas depravações, incluindo aí referencias a quanto as religiões judaico cristãs podem ser castradoras. Falando assim pode parecer sutil, mas a arte presente neste volume é mostrado de maneira escrachada em muitos pontos e visceral em alguns deles.
Como visto em Meus Problemas Com As Mulheres, Robert Crumb não era exatamente a pessoa que lidava mais facilmente com o sexo oposto ao seu, mas aqui há um mergulho em detalhes da alma que poucos imaginariam ocorrendo em uma revista biográfica. Os primeiros amores e as primeiras parceiras sexuais exploradas na revista são reflexos da mãe do personagem, há inclusive cenas bastante fortes que massificam a ideia de Complexo de Édipo, sendo inclusive explicito em sua arte.
Há um destaque na parte da nostalgia do autor com os quadrinhos, onde ele afirma que um dos fatores que o fazia lembrar da infãncia, quando devorava as hqs, era o cheiro dos gibis. Durante o decorrer do encadernado é mostrado um pouco das referências do artista, entre eles, Bertrand Russell.
Esse compilado certamente ajudaria os críticos do artista a fomentar o argumento de que Robert era um sujeito misógino, pelo fato de retratar as mulheres de maneira tão objetificada, sofrendo com a agressividade masculino vez por outra, mas é importante se ater a cronologia dessas publicações, pois durante os anos 60, no auge da carreira de Bob, o Comic Code tornava proibitivo em quadrinhos qualquer menção a sexualidade, minimamente. Crumb fazia historia ao falar de relações sexuais que fugiam do conservadorismo, e realmente perdia um bocado a mão em alguns dos quadros, mas a intenção de subverter era muitíssimo acertada, e a ideia de subverter a cultura e ir contra a mentalidade vigente nos Estados Unidos não poderia ser feita cheia de dedos, ou com medo de soar polêmico.
Ele ironiza também o jovem adolescente que se sente auto suficiente por ter gostos diferentes dos da maioria, como se ser “underground” fosse um carimbo de inteligência e sofisticação, e ele faz isso usando o seu próprio exemplo. Curiosamente há uma semelhança grande entre as posturas dele quando era católico e mais tarde intelectual, pois em ambos ele usava de subterfúgios para justificar o medo e a covardia que tinha por ser franzino e consequentemente ruim de briga. No entanto, o jovem Robert enquanto personagem assume que apesar de ler muito e ser um literato, seu problema era misantropia, ele não tinha intimidade com homens e mulheres e tinha receio do contato com os mesmos.
Os momentos finais do encadernado se dedica a explorar a dificuldade dele em escrever, o fato de ter enjoado de se drogar, o amadurecimento tardio e algumas questões existenciais. Uma boa parte desses momentos exploram a figura de Bunch, que foi seu par e que está inclusive na capa da revista. É estranho porque em boa parte de suas aparições a arte final dela é péssima, e todos os outros elementos são bem desenhados, talvez fosse ali uma manifestação de rejeição por parte do homem a pessoa que ele já amou, manifestando de maneira visual a crise na relação que os dois tiveram. A passagem pelas décadas faz Crumb retratar melhor seus pares, caprichando um pouco mais no desenho, provavelmente porque foi deixando seus ressentimentos de lado.
Robert faz nas últimas páginas um mea culpa sobre o entretenimento, ao mesmo tempo que assume que boa parte de sua obra é dedicada a isso, a distrair as pessoas, fazendo uma ode ao formato, também fala sobre as reflexões que causa nas pessoas que o lêem, e que isso (principalmente) vai além do auto culto que vem prestando nesta obra em especifico, ainda que o principal motivo deste compilado seja construir um retrato de Bob, mergulhando em sua intimidade, o que ajuda a entender a sua visão ácida do mundo.
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