Calúnia, culpabilidade não comprovada, injustiça: temas universais, cuja sensibilidade alcança desde os mais engajados até os “incautos”. As máximas estão presentes no romance de Franz Kafka O Processo, no qual se notam ecos da obra kafkiana mais famosa (Metamorfose), mas com uma evolução de abordagem que prossegue anacrônica. A quadrinização de histórias clássicas visa, entre outras motivações – como a clara reverência aos autores originais -, também atingir um público que normalmente não consumiria o livro. O francês Chantal Montellier é o responsável por realizar o ato transgressor de recontar Kafka, se munindo da mesma coragem contestatória do primeiro para se expressar ao público.
Muito do trabalho anterior de Montellier ajudou-o a reconstruir a aura presente na publicação. Seu passado como artista plástico garante um visual aterrador à publicação, e seus trabalhos pregressos em revistas de cunho esquerdista fundamentam o autor e o tornam ideal para realizar a ambientação do injustiçado Joseph K., um sujeito que é detido logo pela manhã acusado de um crime que, supostamente, não cometeu. A adaptação do texto ficou a cargo de David Zane Mairowitz, cuja intimidade com Kafka já havia se dado através da adaptação das obras canônicas para o teatro.
O traço de Montellier é singular. Primeiro, introduz a figura de Joseph K. em uma página inteira do quadrinho, já demonstrando o ardil que seria montado para o personagem. Seu lápis é repleto de hachuras mostrando sujeiras na casa do homem e emulando todo o processo judicial que o atacaria. Nas primeiras dez páginas, raramente é retratado como se estivesse engessado, de frente, ereto, e sim como quem posa para as fotos que um preso tira pouco antes de ser encarcerado.
A iconografia visual lembra muito a arte de Angelo Stano à frente de Dylan Dog, tanto nos cenários quanto nas referências de personagens ao colocá-los como pares reais, pois o rosto de Joseph K é parecidíssimo com a face de Franz Kafka. Quanto à disposição dos quadros que são apresentados, mostra-se uma vagareza, quase sem narrativa visual, como se emulasse o andar lento e mecânico da máquina jurídica e punitiva, com a injustiça representada por meio dos atos dos opositores do protagonista. O uso das onomatopeias intensifica o ar “encardido” e ajuda a assinalar ainda mais o equilíbrio entre a abordagem cartunesca com toques de literatura pulp.
Os capítulos seguem com estaticidade e arte singular. Os sonhos do réu Joseph K. lembram os elementos visuais do expressionismo alemão. O tempo todo, o herói da jornada aparece oprimido por signos visuais diversos, quase todos lembrando-o de sua mortandade e do quão próximo ele está de ser tachado como culpado. Diante de tantos objetos culposos, não resta espaço, tampouco tempo para que ele seja otimista.
A situação de injustiça que acomete Joseph é muito bem representada pela psicodelia barroca do desenhista e por sua gama de personagens maltrapilhos e surrados. O universo de culpa é mostrado com uma faceta horrenda e precária do ponto de vista da beleza. O viés escolhido pelo quadrinista para demonstrar o Estado enquanto órgão opressor sobre o homem impotente é diferente do livro, um pouco menos implacável com relação à maldade, mas visualmente aterrador por encher o quadrinho de figuras estranhas. Mas, em seu final, abre-se mão da ausência de violência para mostrar um modo agressivo de sentença.
Chantal Montellier consegue produzir uma obra que se equilibra entre reverência a um ídolo e um trabalho autoral (ao máximo, em se tratando de uma adaptação literária). Seu modo de contar a história canônica acrescenta, e muito, à obra original, algo que não costuma acontecer normalmente em versões de clássicos em quadrinhos que, em sua maioria, não possuem alma nenhuma.