Victor Hugo está inegavelmente entre os chamados imortais da literatura clássica mundial. Entre as suas principais obras, Os Miseráveis reina em uma posição de destaque por diversos fatores. Valendo-se do completo reconhecimento de tais aspectos, temos em mãos a adaptação para os quadrinhos deste grandioso romance.
Confesso que fiquei bastante curioso ao saber de tal projeto (que conta ainda com diversos outros títulos adaptados de autores como Julio Verne, Tolstói e Cervantes, por exemplo), pois creio ser extremamente válido e de suma importância que mais e mais pessoas se familiarizem com tais clássicos, mesmo que em uma ‘’versão simplificada”.
Os Miseráveis é a obra na qual Victor Hugo tentou consolidar todo um século em um único livro, abrangendo filosofia, política, drama e muitos outros aspectos que representavam a França no século XIX, mas que também são universais no que diz respeito ao humano e à sua luta para ser reconhecido como tal – principalmente os que vagueiam às margens da soberba e crueldade dos regimes autoritários que eram comuns e se sucediam em revoltas turbulentas e prejudiciais para o avanço da ética e de direitos humanitários que reconhecemos hoje como universais.
O romance tem muito, mas muito estofo histórico e intelectual como um todo. Talvez esteja aí o motivo dessa adaptação apenas arranhar muitos dos quesitos levantados pelo autor no original. A espinha dorsal que rege os personagens e suas conexões está aqui e consegue, sim, levar a algum tipo de reflexão sobre alguns dos temas propostos, tais como a redenção, que é recorrente no personagem central. Jean Valjean, condenado por roubar um pão, tem sua pena aumentada por tentativas de fuga; passou 20 anos na prisão por algo que um burguês sequer teria que responder caso infringisse o mesmo ato. O personagem de Javert, o policial que passa a vida perseguindo Jean, Marius e muitos outros. Todos têm, a seu tempo, a sua redenção e a sua epifania; mesmo que não resulte em benefício direto para alguns, ela está ao alcance deles, dentro do que Victor acreditava ser inalienável ao ser humano.
A HQ tenta ao máximo manter a profundidade dos temas tratados, mas lhe falta justamente o ‘’excesso’’. Falta-lhe a poesia de Victor, seus longos textos e suas reflexões. Os Miseráveis se tornou o que é justamente pelo que há “entre” os acontecimentos da história narrada de seus personagens. A famosa batalha napoleônica de Waterloo (que rende um livro inteiro no romance original) é apenas um reflexo fugaz nesta edição. Um outro exemplo simples pode ser conferido no final desta HQ, na qual temos dois textos escolhidos do original e que fecham a edição desta graphic novel. Lendo o texto “Paris Vista por Uma Coruja”, percebe-se o quão rico é o conteúdo original, que infelizmente não pode ser adaptado aqui em sua mestria.
A edição como um todo é muito bem cuidada, com papel de qualidade e capa dura. Detalhes sobre o autor, a situação política da época e a própria obra original são belos adendos e na verdade fazem muito mais jus ao livro do que a HQ em si. A arte foi bem cuidada e as ilustrações remetem, sim, a uma Paris antiga, suja, revoltada. Seus personagens refletem quase que o tempo todo a opressão à qual os excluídos estão sujeitos com seus rostos cansados ou abatidos, seja pela tristeza ou pela fome.
Infelizmente, condensar uma obra de tamanha importância e com tanto conteúdo em 110 páginas de uma graphic novel realmente não é nada fácil, e tenho completa ciência disso. Talvez com obras mais aventurescas (Viagem ao Centro da Terra, por exemplo) o objetivo de transcrever o espírito do original a uma nova mídia seja atingido com mais sucesso, e talvez seja melhor deixar de lado os grandes…
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Texto de autoria de Amilton Brandão.