Poucas obras conseguem produzir um profundo e ao mesmo tempo divertido debate sobre o papel da mulher e do homem na sociedade quanto Último Aviso, publicada em 2010 no Brasil pelo selo Barricada, da editora Boitempo. Em seu renomado trabalho de caricaturar a realidade dos sexos e seu icônico “embate” ao longo da vida, sem contar sua difícil e complexa relação de poder (que torna o mundo o que ele é), a cartunista alemã Franziska Becker usa do seu sarcasmo e afiadíssima sagacidade para impressionar os mais sensíveis com seus comentários e críticas ilustradas, ou aqueles que encaram as artes apenas como um entretenimento descompromissado, no fim do dia. Toda arte é política, todo artista sabe disso, não há escapatória para o público, e Becker trata de nos lembrar deste fato a cada página desta coletânea.
Seus desenhos são como onomatopeias visuais, estridentes em suas cores e situações quanto ao absurdo que domina a base do nosso cotidiano. Cotidiano este resiste entre as gerações que o perpassam, e cujo apelo se faz universal para todos os públicos que permitem-se encantar pelos traços e a dinâmica inconfundíveis de Becker, que já inspirou tantos gigantes mais famosos que ela, hoje em dia. Sem limites em sua retratação das rotinas e do banal, Becker usou, durante toda a sua carreira, de um surrealismo que serve para invocar o lado cômico da vida, geralmente urbana, dialogando por essência com o ridículo das crises de meia-idade, ou do papel que pode ser desastroso dos homens nas atividades domésticas – quase sempre relegadas ao “sexo frágil” feminino. A crítica social de Becker é tão forte quanto irresistível, conseguindo fazer com que o mais machista dos seus leitores ria com os seus desenhos, para logo depois sentir vergonha por ter traído seus pobres ideais.
É por isso que Último Aviso guarda em si grandes possibilidades de impacto. Temos aqui um verdadeiro mural de representações sobre o coletivo e o indivíduo, o culto pela beleza, moda, apropriação cultural, e até a vida sexual das pessoas – tudo sob um olhar irônico e delicioso. O jogo proposto em cada um dos seus desenhos é o de brincar com os arquétipos e estereótipos sociais ao nosso redor, e como eles moldam a estrutura das sociedades ao redor do mundo, em especial a sociedade alemã que, a grosso modo, é igual a qualquer outra. Becker, hoje com mais de 70 anos, cresceu no país europeu no pós-segunda guerra, e foi altamente empoderada pelo amor que seus pais tinham nos livros, e nas artes em geral. Isso é percebido, em especial, nas doze tirinhas que compõe as histórias de Felicidade de Mãe e Retrato do Artista Quando Criança (na clara alusão a James Joyce), a respeito de como nossos pais nos afetam, para o bem e para o mal, já que de médico e louco todo mundo tem um pouco.
Assim, nota-se na evolução cronológica que as páginas de Último Aviso concedem a vasta obra da artista, que todo o comentário social (com toques apimentados de deboche), antes fortemente lançado no papel dos sexos na civilização, ampliou-se para outros temas que surgiram com as décadas, tais quais o protagonismo cada vez maior da tecnologia na vida humana, a violência com o meio-ambiente, ou o lado bizarro e alienante do capitalismo. O olhar satírico de Becker nunca mudou, mas aumentou com segurança o seu campo de alcance analítico. Vale destacar, também, que a arte de Becker é feita para adultos, uma vez que leva consigo uma gama de significados que só podem ser realmente compreendidos por quem já passou por certas loucuras que a vida nos presenteia. Isso está celebremente expresso em cada traço de Becker, o que torna o folhear desta coletânea um passeio quase epifânico na galeria de sua vida.
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