Resenha | Flash Gordon no Planeta Mongo
As coisas estavam difíceis em 1929. Pela primeiríssima vez, o capitalismo explodiu igual uma casca de ovo e executivos se jogavam de cima de seus prédios, perdendo suas fortunas na pior crise de todas. Os danos na sociedade espalharam-se para bem além das muralhas de Wall Street, impactando a zona rural dos Estados Unidos e o mundo inteiro por anos. O baque nacional não foi nada pequeno, também devido a ressaca que os EUA ainda curavam desde 1918, após a Primeira Guerra Mundial. A realidade estava fétida, o pão cada vez mais difícil de conseguir, mas o circo, como bem sabe os donos do sistema, não pode parar. Principalmente nas crises.
Flash Gordon foi a mais prodigiosa resposta escapista aos problemas que cercavam Alex Raymond, demitido de Wall Street no auge da Crise de 29. Com essa porta fechada para ele, Raymond, um jovem sonhador e criado em fazenda, sempre desenhando seus sonhos de criança ao ser inspirado por livros de fábulas, e contos de fadas, enxergou no seu desemprego a oportunidade de tentar algo novo (e absurdo): se lançar de cabeça no ainda experimental mercado das histórias em quadrinhos. Na época, eram só tirinhas de jornais, distribuídas principalmente pela King Features nos EUA, empresa do ramo de palavras cruzadas, charges e, é claro, histórias dominicais bem curtas. Foi lá que o jovem Raymond cresceu feito um titã, numa aposta editorial que iria mudar para sempre os rumos da cultura pop.
Muito confundido hoje em dia com o velocista Flash, da DC, Flash Gordon era mais um atleta da universidade de Yale que, junto da desconhecida Dale Arden, são sequestrados pelo cientista Hans Zarkov e obrigados a entrar num foguete com ele, em direção de um meteoro que irá se chocar com a Terra. Ao pousarem no cometa e desviarem sua rota, os três percebem que o corpo celeste é na verdade o planeta Mongo, e são logo atacados por monstros e criaturas locais, lutando separadamente por sua sobrevivência – com o terrível imperador do universo Ming complicando tudo, para os estrangeiros. Ao longo de aventuras extremamente velozes e divertidas, e um gosto inebriante de nostalgia, Flash Gordon foi o primeiro grande sucesso da ficção científica na história do entretenimento de massa, com muita ação e leves toques de fantasia no que tange certos elementos das tirinhas, como dragões e outros recursos surrealistas.
Ao usar de ótimos coadjuvantes, e da vasta mitologia de Mongo para expandir os limites da longa história do nosso herói e sua amiga Dale (por quem Flash vira e mexe tem de salvar com seus músculos e inteligência [a história carrega certas conotações machistas, racistas e supremacistas muito evidentes, banalizadas pelo senso comum da época]), Flash Gordon tornou-se uma grande alegoria gráfica do homem branco lidando com inúmeros perigos. Obstáculos aqui metaforizados nas figuras de homens-tubarões (que influenciaram Aquaman e Namor), homens-falcão (Gavião Negro, Mulher-Gavião) e pela feiticeira Azura (muito parecida com o Doutor Estranho e a Zatanna). Em paralelo aos antagonistas, temos a filha de Ming, a imprevisível Aura obcecada por Flash, sem contar o príncipe dos homens-leão, o fiel amigo Thun, e claro, o cientista Zarkov, cuja loucura de salvar a Terra com seu foguete levou a todos na maior aventura interplanetária de todas.
Flash Gordon no Planeta Mongo, da Pixel Editora, compila as tiras de jornal de 1934 a 1937 e a jovialidade e o ritmo atemporais do álbum permanece intacta, em páginas horizontais cujo relevo ressalta o brilho e o frescor dos painéis ultra coloridos de Raymond. Nota-se em seu traço a obsessão do cartunista pelo realismo na ilustração, chegando até a usar modelos vivos em vários momentos, algo que seus colegas de trabalho desprezavam em histórias “descartáveis” de jornal, feitas para crianças. Contudo, para o visionário artista do interior e agora trabalhando em Nova York, nada era demais a fim de deixar a sua marca e inspirar mentes e corações no mundo dos quadrinhos, cinema, literatura, videogames, etc. Ademais, Raymond adaptava o encanto dos livros de contos de fada na nona-arte, produzindo ao todo um espetáculo realista e inteligente, galgando assim o seu espaço no hall das lendas até sua morte, em 1956. Seu legado já estava pronto.
Influenciando de Superman, Zagor e Capitão América a Star Trek, de Duna a O Elo Perdido e Star Wars, e mais um sem números de criações pop, Flash Gordon é simplesmente a mais importante obra de ficção científica e fantasia em língua inglesa, em paralelo histórico com O Senhor dos Anéis (também lançado a partir de 1935). Por conta disso e muito mais, Raymond ganha neste épico compilado de histórias para colecionador um prefácio escrito por Alex Ross, o colosso da Marvel e DC. A veneração em cima do trabalho revolucionário de Raymond não tem fim entre todas as lendas das HQ’s que vieram após ele – Stan Lee e Jack Kirby deviam ter feito suas homenagens a Raymond enquanto vivos, uma vez que muitas das suas ideias vieram dele. Como já disse Pablo Picasso: “bons artistas copiam; grandes artistas roubam”.
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