Crítica | Heli
O cinema político do mexicano Amat Escalante — que também realizou Os Bastardos e Sangre — ganha uma nova faceta, pois em Heli o diretor trata de uma comunidade mexicana assolada pela ação do crime organizado, usando uma família de pessoas comuns para demonstrar como é o modus operandi dos “marginalizados” e como é o status quo daquela parcela da população.
Logo no início, o caráter da fita é explicitado, mostrando um veículo truck se movimentando pela estrada, com o foco da caçamba, onde observam-se dois corpos ensanguentados e caídos, sendo levados a algum lugar ainda não definido. A violência parece ser a linguagem universal, ligada (e muito) à humilhação, uma vez que o rapaz que está derribado tem a cabeça pisoteada pela bota de alguém.
A câmera acompanha as atividades de uma família, mas isso é meramente ilustrativo, uma vez que tudo o que ocorre com estas pessoas é puramente genérico. As pesquisas demográficas são feitas com o intuito de “catalogar” a população, demonstrando a ausência de representatividade das pessoas que habitam o vilarejo mexicano e que buscam a ainda não encontrada identidade pessoal.
As cenas mais mundanas, que mostram as interações entre os personagens, quase nunca são apresentadas com trilhas sonoras, sendo o seu registro realizado somente com som ambiente, que, aliado às cenas em handycam, faz com que tais sessões se assemelhem demais às imagens de um documentário. A influência estadunidense no arraial é explicitada nas cenas de treinamento dos jovens que servem as forças armadas. Os rituais da farda variam com as fases da puberdade de um dos cadetes, que gradativamente vai descobrindo as suas vontades, contrastando a volúpia sexual com o esforço pueril e juvenil de procurar alcançar as metas, o que denota uma nova faceta da possível sedução do inocente, completamente diversa da ideia de Fredric Wertham.
A agressividade das imagens registradas chega a impessoalizar as “vítimas” daquela truculência, fomentando a discussão sobre até que ponto as pessoas que sofrem as violências mostradas são realmente “presas”, e o quanto o comportamento de cordeiro delas ajuda a aumentar o poder dos criminosos. Os personagens não são chamados por seus nomes quase nunca, como se suas personificações fossem uma tela em branco com espaço para encaixar-se em qualquer contexto social em que o receptor esteja. A intenção é gerar empatia; mostra-se gente comum como exemplo de que qualquer pessoa poderia sofrer aquilo.
As atividades triviais são filmadas em planos muito fechados e detalhados, de modo quase claustrofóbico para quem está vendo — sensação maximizada ainda mais graças à grande tela do cinema. A rotina do personagem-título varia entre seus afazeres domésticos banais, seu cuidado com as mulheres da sua família — quase sempre de super-proteção —, e sua dúvida em usufruir do comércio de bens ilegais. Este último visa mostrar a tentativa do protagonista de tirar os seus entes deste incômodo modo de vida, ainda que a origem do artefato ilegal não seja explicitada. Mesmo sem certeza, ele tenta se ver livre, mas tal investida de fuga falha miseravelmente e Heli é pego, sua casa é destruída, e a família, dilacerada.
A ação dos mascarados em busca dos narcóticos é truculenta, e sua fúria é assassina e inconsequente, não tendo piores conclusões pelo acaso de não estarem todos os membros da família na residência. O modo como os facínoras se vestem faz lembrar a polícia, demonstrando em imagens qual é a real autoridade do lugar. A tortura que se segue é feita pelos criminosos desmascarados, sem qualquer medo de identificação, e mesmo os atos mais cruéis são encarados com naturalidade pelas crianças que fazem parte do bando.
O desespero que acomete Heli não se caracteriza somente pelo medo da morte, mas também pela responsabilidade de ser, em determinado momento, o único homem da casa, papel este que ele deveria ter exercido desde que se tornou pai, mas que não o fez até então por acomodação. A responsabilidade batia à sua porta, na verdade a arrombava, como os bandidos fizeram, e ele não poderia mais negar tais deveres. Até as cenas de cunho sexual e expositivas remetem às suas necessidades infantis. A irascibilidade que predomina no lugarejo pede ações mais firmes do jovem pai de família. A visceralidade da obra relembra que os fatos mostrados em tela não são tão diferentes da realidade, e que em casos retratados como este a violência prevalece até sobre as pessoas, desumanizando-as através da banalidade de atos coléricos.