Crítica | Bacurau
Bacurau é o filme nacional mais esperado do ano, ao lado de Marighella de Wagner Moura, e a espera para a chegada dele ao seu país foi de muitas sessões de prés lotadas, a espera do thriller supostamente fantasioso de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. O que se assiste logo no inicio é um petardo, começando por um caminhão-pipa que carrega uma passageira de volta para sua casa. Ela é Teresa (Barbara Colen), que retorna a Bacurau, um vilarejo no oeste de Pernambuco que tem muita historia, o motivo desse retorno é o enterro de sua avó.
Algo estranho vem acontecendo ali perto, pois assim que se entra no território próximo de Serra Verde (uma cidade pernambucana mais central e mais populosa que o vilarejo que dá nome ao filme), vê-se um caminhão que carregava caixões tombado, após um acidente com uma moto. Os caixões aliás, se repetem em alguns momentos no filme, como um autêntico signo do roteiro.
A historia se passa em um futuro próximo, e seus elementos são revelados gradativamente, como a procura das autoridades por um traficante local, além de uma representação bem estranha do apego aos bens materiais. O que se nota facilmente é que a região nordestina é quase como um Oásis do mundo louco e retrogrado em que o Brasil está inserido, apesar de não se elucubrar muito sobre os outros territórios fora Pernambuco, mas o pouco que se tem contato faz teorizar que este universo tem muito em comum com o de Divino Amor, filme mais recente de Gabriel Mascaro onde uma sociedade burocrata e conservadora via religião impera. Na localidade de Bacurau isso é bem diferente, como se houvesse ali um redoma ideológica que não permite o reacionarismo imperar.
A experiencia como diretor de arte que Dornelles emprega no filme (ele fez Aquarius e Som ao Redor) é vista em cenas belíssimas. Por mais simples que sejam os figurinos dos personagens e as pequenas casas há um cuidado muito grande para a atmosfera do lugarejo ser diferenciado. Um lugar tão pequeno, mas que carrega muitas historias, muitas particularidades e obviamente precisaria ter uma identidade própria.
A partir daqui pontos substanciais da trama serão discutidos, então se o leitor se incomoda com spoilers, está por conta própria a partir da aqui.
O povo de Bacurau é igualmente diferenciado, tal qual toda a arte que envolve o filme. Há um DJ de aspecto urso, que é literalmente um mestre de cerimônias da cidade, os vigias/ fogueteiros são transexuais, e o lar de Lunga, o personagem de Silvero Pereira é uma represa, que ninguém faz ideia de que há bandidos ali. Aliás, o modo como Lunga é mostrado é sui generis, sua composição é algo absurdo, e a cidade é tão diferenciada que uma figura que normalmente seria encarada como vilã, é ovacionada. O lugarejo evita a policia tradicional, seus cidadão são diferenciados e bem informados em sua maioria, e enxergar até autoridades como Tony Junior (Thardelly Lima), o prefeito de Serra Verde, como um oportunista terrível. O modo como eles demonstram sua rejeição a ele é engraçado, tal qual a arrogância e petulância com que eles tratam isso. Aparentemente, nessa comunidade, o comunismo funciona, o comércio basicamente só ocorre para os de fora, e mesmo assim os preços são muito baixos.
Um dos signos mais estranhos é o fato de as casas serem sempre cheias de moscas, em especial as que possuem idosos, como se os corpos dos mortos ainda habitassem o lugar. Paralelos com fantasmas e com a memoria comum ao homem sempre são feitos em filmes modernos, mas desse modo é um evento mais raro. Toda a contemplação típica dos filmes do Novo Cinema Pernambucano é ressignificada, tendo um crescente de agressividade com a aproximação do final, mas ainda mantendo o caráter mais lúdico por boa parte do filme.
O isolamento “forçado” de Bacurau só faz sentido para quem não entende a mística do lugar, para quem não sabe como aquelas pessoas e as gerações anteriores sobreviveram até chegar nessa época. O pensamento retrogrado dos opositores misteriosos, liderados pelo personagem de Udo Kier (Michael) os faz soar arrogantes, e faz eles subestimarem os mais simples, intuindo de maneira tola que são todos tolos e ingênuos. Mesmo pouco se sabendo sobre as origens desses antagonistas, se percebe traços de reacionarismo e barbárie ligadas a pensamentos de extrema direita, além de um discurso supremacista e racista.
As mortes são poéticas especialmente quando o filme se aproxima de seu fim. Os vilões perecendo sobre os olhares dos retratos dos que habitavam o passado de Bacurau tem um peso simbólico imenso, assim como o uso do sangue como objeto redentor e de limpeza de espírito, que passa perto de redimir o banditismo, em especial para os que defendem a aldeia dos bárbaros que se aproximam. Essa vida fora da lei aliás é abordada de forma que foge tanto do maniqueísmo que faz perguntar se a redenção deles é por conta dos crimes cometidos até então, ou do perdão liberado da cidade para os foras da lei, que finalmente podem retornar ao lugar que sempre amaram.
A miríade de influências é tão grande que, além de evocar os filmes de ação ultra violentos dos anos 80 e 90, também faz paralelos com os contos de Robert E. Howard, em especial os de Conan e Kull, onde as conquistas dos homens que estavam em desvantagem de condições era o moto narrativo. A modernização dessa perspectiva traz bons momentos, e a crueza de ambas obras ressoa como se uma fosse uma espécie de releitura moderna da outra, por mais que seus universos sejam bem diferentes entre si.
A sociedade de Bacurau é evoluída o suficiente para não encarar os homens armados do poder paralelo como inimigos, o maniqueísmo, ao menos naquele pequeno pedaço de chão não existe, homens, mulheres, crianças e idosos são todos iguais, inclusive no uso de uma droga que amplia seus sentidos, fazendo com que todos sejam entorpecidos pela fúria e pela fome por vingança, por justiça, mas não uma justiça de via fácil, e sim a legítima defesa dos que nada fizeram para sofrer esse infortúnio.
O filme que Mendonça e Dornelles propõe é forte, resgata um Brasil do interior, com uma identidade própria e capaz de revidar preconceitos, selvageria e intolerância. Suas cenas são belíssimas, há uma poesia muito forte na demonstração dos cenários naturais e o uso da luz faz com que a fotografia seja muito potente, é um filme quase irretocável do ponto de vista tecnico e com um apelo pop muito grande, agudo, violento e realista, mesmo com toda a suspensão de descrença a que ele apela.
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