Johnny Mnemonic: O Cyborg do Futuro é uma das obras cinematográficas que se tornaram famosas pela falta de noção em sua premissa, como era bem comum nos anos 80 e 90. O filme lançado em 1995 se passa em um futuro situado na segunda década do século XXI, e mostra um mundo contaminado por uma doença contagiosa chamada NAS – que consiste em uma alergia fatal às ondas eletromagnéticas. No cenário proposto, as pessoas são conectadas de forma neural a uma rede cibernética semelhante a internet, portanto, o NAS se mostra perigosíssimo.
A história se desenrola mostrando um homem, vivido por Keanu Reeves, que recebe uma missão ingrata de transporte. O roteiro do filme é de William Gibsone boa parte das informações são dadas nos primeiros cinco minutos de exibição. O diretor Robert Longo tenta dar sobriedade à obra, mas qualquer seriedade não parece caber em sua proposta. Há referencias óbvias a Blade Runner, especialmente na globalização e nas influências asiáticas que tomaram os Estados Unidos. No entanto, falta qualidade e orçamento, já que os efeitos em computação gráfica são bastante artificiais à época, enquanto a direção de arte mostra gadgets tecnológicos que mais parecem brinquedos e maquetes que remetem aos trabalhos da pré-escola.
Reeves apresenta um desempenho bastante canastrão, as cenas em demandam esforço em dor, desespero ou sofrimento soam engraçadas, de modo que faz perguntar se isso é proposital ou involuntário. As atuações também remetem as cenas de uma comédia de erros, os atores que se levam a sério como Udo Kier e Dina Meyer parecem sofrer de crises intestinais, fazendo caretas sempre quando a câmera decide dar destaque a um deles. A tentativa de referenciar um cenário cyberpunk não tem muita sorte e as participações de outras figuras famosas como Ice-T e Dolph Lundgren são ainda mais caricatas que as já citadas.
Se haviam críticas a Reeves em Drácula de Bram Stoker, a faceta de caçador de recompensas do futuro é ainda mais digna de críticas a capacidade dramática do sujeito. Outro fator estranho é a insistência em utilizar tons de cinza nos objetos de isopor do cenário e figurino. Tudo é grafite ou prata, remetendo a um piloto cancelado de série dos anos 80.
A tradução do clima cyberpunk é obviamente pensada, mas se Johnny Mnemonic: O Cyborg do Futuro for encarado como uma piada certamente pode ser consumido como um objeto bastante divertido, um pastiche menos inspirado do que foi O Quinto Elemento. A tentativa de mostrar o mundo digital é constrangedora, os efeitos em 3D se assemelham aos de Tron: Uma Odisseia Eletrônica, só que piorado e mais grave, dado que esse se passa quase 15 anos depois do filme da Disney. O maior legado do filme é deixar claro que o esforço em ter esperanças no futuro da humanidade é infrutífero e fútil.
Bacurau é o filme nacional mais esperado do ano, ao lado de Marighella de Wagner Moura, e a espera para a chegada dele ao seu país foi de muitas sessões de prés lotadas, a espera do thriller supostamente fantasioso de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. O que se assiste logo no inicio é um petardo, começando por um caminhão-pipa que carrega uma passageira de volta para sua casa. Ela é Teresa (Barbara Colen), que retorna a Bacurau, um vilarejo no oeste de Pernambuco que tem muita historia, o motivo desse retorno é o enterro de sua avó.
Algo estranho vem acontecendo ali perto, pois assim que se entra no território próximo de Serra Verde (uma cidade pernambucana mais central e mais populosa que o vilarejo que dá nome ao filme), vê-se um caminhão que carregava caixões tombado, após um acidente com uma moto. Os caixões aliás, se repetem em alguns momentos no filme, como um autêntico signo do roteiro.
A historia se passa em um futuro próximo, e seus elementos são revelados gradativamente, como a procura das autoridades por um traficante local, além de uma representação bem estranha do apego aos bens materiais. O que se nota facilmente é que a região nordestina é quase como um Oásis do mundo louco e retrogrado em que o Brasil está inserido, apesar de não se elucubrar muito sobre os outros territórios fora Pernambuco, mas o pouco que se tem contato faz teorizar que este universo tem muito em comum com o de Divino Amor, filme mais recente de Gabriel Mascaro onde uma sociedade burocrata e conservadora via religião impera. Na localidade de Bacurau isso é bem diferente, como se houvesse ali um redoma ideológica que não permite o reacionarismo imperar.
A experiencia como diretor de arte que Dornelles emprega no filme (ele fez Aquarius e Som ao Redor) é vista em cenas belíssimas. Por mais simples que sejam os figurinos dos personagens e as pequenas casas há um cuidado muito grande para a atmosfera do lugarejo ser diferenciado. Um lugar tão pequeno, mas que carrega muitas historias, muitas particularidades e obviamente precisaria ter uma identidade própria.
A partir daqui pontos substanciais da trama serão discutidos, então se o leitor se incomoda com spoilers, está por conta própria a partir da aqui.
O povo de Bacurau é igualmente diferenciado, tal qual toda a arte que envolve o filme. Há um DJ de aspecto urso, que é literalmente um mestre de cerimônias da cidade, os vigias/ fogueteiros são transexuais, e o lar de Lunga, o personagem de Silvero Pereira é uma represa, que ninguém faz ideia de que há bandidos ali. Aliás, o modo como Lunga é mostrado é sui generis, sua composição é algo absurdo, e a cidade é tão diferenciada que uma figura que normalmente seria encarada como vilã, é ovacionada. O lugarejo evita a policia tradicional, seus cidadão são diferenciados e bem informados em sua maioria, e enxergar até autoridades como Tony Junior (Thardelly Lima), o prefeito de Serra Verde, como um oportunista terrível. O modo como eles demonstram sua rejeição a ele é engraçado, tal qual a arrogância e petulância com que eles tratam isso. Aparentemente, nessa comunidade, o comunismo funciona, o comércio basicamente só ocorre para os de fora, e mesmo assim os preços são muito baixos.
Um dos signos mais estranhos é o fato de as casas serem sempre cheias de moscas, em especial as que possuem idosos, como se os corpos dos mortos ainda habitassem o lugar. Paralelos com fantasmas e com a memoria comum ao homem sempre são feitos em filmes modernos, mas desse modo é um evento mais raro. Toda a contemplação típica dos filmes do Novo Cinema Pernambucano é ressignificada, tendo um crescente de agressividade com a aproximação do final, mas ainda mantendo o caráter mais lúdico por boa parte do filme.
O isolamento “forçado” de Bacurau só faz sentido para quem não entende a mística do lugar, para quem não sabe como aquelas pessoas e as gerações anteriores sobreviveram até chegar nessa época. O pensamento retrogrado dos opositores misteriosos, liderados pelo personagem de Udo Kier (Michael) os faz soar arrogantes, e faz eles subestimarem os mais simples, intuindo de maneira tola que são todos tolos e ingênuos. Mesmo pouco se sabendo sobre as origens desses antagonistas, se percebe traços de reacionarismo e barbárie ligadas a pensamentos de extrema direita, além de um discurso supremacista e racista.
As mortes são poéticas especialmente quando o filme se aproxima de seu fim. Os vilões perecendo sobre os olhares dos retratos dos que habitavam o passado de Bacurau tem um peso simbólico imenso, assim como o uso do sangue como objeto redentor e de limpeza de espírito, que passa perto de redimir o banditismo, em especial para os que defendem a aldeia dos bárbaros que se aproximam. Essa vida fora da lei aliás é abordada de forma que foge tanto do maniqueísmo que faz perguntar se a redenção deles é por conta dos crimes cometidos até então, ou do perdão liberado da cidade para os foras da lei, que finalmente podem retornar ao lugar que sempre amaram.
A miríade de influências é tão grande que, além de evocar os filmes de ação ultra violentos dos anos 80 e 90, também faz paralelos com os contos de Robert E. Howard, em especial os de Conan e Kull, onde as conquistas dos homens que estavam em desvantagem de condições era o moto narrativo. A modernização dessa perspectiva traz bons momentos, e a crueza de ambas obras ressoa como se uma fosse uma espécie de releitura moderna da outra, por mais que seus universos sejam bem diferentes entre si.
A sociedade de Bacurau é evoluída o suficiente para não encarar os homens armados do poder paralelo como inimigos, o maniqueísmo, ao menos naquele pequeno pedaço de chão não existe, homens, mulheres, crianças e idosos são todos iguais, inclusive no uso de uma droga que amplia seus sentidos, fazendo com que todos sejam entorpecidos pela fúria e pela fome por vingança, por justiça, mas não uma justiça de via fácil, e sim a legítima defesa dos que nada fizeram para sofrer esse infortúnio.
O filme que Mendonça e Dornelles propõe é forte, resgata um Brasil do interior, com uma identidade própria e capaz de revidar preconceitos, selvageria e intolerância. Suas cenas são belíssimas, há uma poesia muito forte na demonstração dos cenários naturais e o uso da luz faz com que a fotografia seja muito potente, é um filme quase irretocável do ponto de vista tecnico e com um apelo pop muito grande, agudo, violento e realista, mesmo com toda a suspensão de descrença a que ele apela.
Ao lado de Wes Craven, o diretor John Carpenter popularizou o Terror na década de 80, abusando de maníacos e personagens bizarros em histórias assustadoras. A cada geração, muitos filmes do gênero são produzidos mas poucos destacam-se no panteão do medo. A saga Jogos Mortais teve um bom início em uma trama policial dirigida por James Wan, depois exagerou na violência gore e repetiu a si mesma diversas vezes até o capítulo final. Neil Marshell foi considerado promissor com Abismo do Medo, mas ainda não realizou outra produção tão eficiente quanto sua primeira. Além destes, muitos filmes atuais são regravações do passado, repetindo as mesmas histórias, modificadas somente pelo estilo narrativo em vigor, com elementos nem sempre assustadores.
Em meio a este marasmo, o músico Rob Zombie compôs uma duologia cruel sobre uma família de assassinos. Compondo o grotesco com naturalidade, sem poupar sangue, A Casa dos 1000 Corpos e Rejeitados pelo Demônio destacavam que o roqueiro possuía talento e estilo ao filmar, diga-se, melhores produções do que alguns diretores atuais. Sucesso que lhe garantiu a possibilidade de readaptar uma das mais famosas histórias de Carpenter: Halloween: A Noite do Terror.
Utilizando o mesmo argumento do original, Zombie parte da infância do personagem para desenvolver e justificar sua crueldade. Insere a criança Michael Myers em um ambiente hostil, com uma mãe stripper, um padrasto inválido que o odeia, uma irmã adolescente que, como qualquer jovem, despreza tudo que não seja seu próprio umbigo, além de uma pequenina irmã, por quem Myers nutre um sentimento positivo. Este é primeiro ato que fundamenta as motivações do personagem.
Em um avanço de 30 anos, o curto segundo ato apresenta Myers preso, evento já previsto por seu psicólogo infantil, Dr. Loomis (Michael McDowell), que, desde a infância do garoto, acreditava que seu paciente romperia os laços do mundo exterior ao demonstrar uma psiquê corrompida e incapaz de absorver a problemática de seus próprios atos. O terceiro ato marca a fuga do personagem do manicômio em que está preso e a procura dos sobreviventes de sua família.
Ao introduzir o escopo psicológico da infância de Myers, Zombie produz uma temerosa figura real. Ao compreender suas motivações psicológicas, o público contempla uma sensação dúbia: reconhece a monstruosidade do personagem, mas se apieda por compreendê-lo dentro de um sistema analítico-psicológico. Uma análise que, no entanto, não retira a potência do medo causada pela figura aficionada em esconder-se atrás de máscaras, temerosa da própria aparência.
Dando uma nova visão da história sem perder os elementos clássicos, Zombie produz uma regravação sólida, diferentemente de outras obras adaptadas, como Sexta-Feira 13, Terror em Amityville e O Massacre da Serra Elétrica; tais produções, ao serem contextualizadas no estilo narrativo contemporâneo, não necessariamente souberam adaptar-se ao novo público, que não tem mais medo de monstros rasos da década de 80.
Atualizando o personagem, cria-se um monstro à espreita, dono de grande agressividade e um temor que parece mais sensível pela concepção da realidade. Uma versão que, ao aprofundar-se na composição humana de Myers, transforma-o em ainda mais insano.