Resenha | Sandman: Noites Sem Fim (2)
“Foi um inverno árduo. Os lobos se mostraram ousados, e se não protegêssemos nossos rebanhos, encontraríamos as ovelhas mortas.”
O mundo de Sandman é tão delirante, quanto irresistível. Há, na criação máxima de Neil Gaiman (Coraline, Deuses Americanos), um gosto perpétuo de fantasia e devaneio que dialoga, visual e substancialmente, com nossa visão meio pessimista e meio sombria, para alguns, da nossa própria realidade. Há, também, em tudo o que envolve os passos e as interferências mundanas de Morfeu, o Senhor dos Sonhos, e os de sua família, os sete Perpétuos, um tesão legítimo pelas experiências humanas mais terríveis e prazerosas, numa representação orgulhosamente surreal do puro êxtase e assombro que envolve nossa percepção e sanidade, diante dos eventos mais desafiantes, a elas. A vida é um sopro, e de tão rápida, pode às vezes parecer um longo sonho.
Ou um pesadelo. Sempre no limiar da questão, Gaiman nos conduz para dentro de uma criatividade na qual podemos nos perder em seus arranjos sensoriais sem restrições alguma, torcendo para que tudo não vá terminar na próxima página. Essa sedução tão típica do seu trabalho é uma constante artística que poucos autores de HQ’s podem ostentar, e Noites Sem Fim aloja em sete contos essa condição soberana de Gaiman, enquanto colaborador insubstituível para com a nona-arte. Sete histórias curtas e conectadas pela lógica tortuosa e imprevisível de uma dimensão guiada pela morte, pelo desejo, pela destruição, pelo desespero, pelo sonho, pelo delírio, e pelo destino… pelo o que cada um dos sete perpétuos representa neste universo que mais parece uma versão sobrenatural de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll.
Contos soltos, estes, cuja solenidade encanta e desperta nossa imaginação, uma vez que a sensação de estarem sendo observados por Morfeu e sua irmã, a própria e belíssima Morte, é latente ao longo de suas rápidas páginas. Em Noites Sem Fim, a racionalidade aqui presente permanece aquém dos limites ilimitados de histórias que jamais poderão ser definidas por um único assopro verbal. Fala-se sobre reis caídos, entidades celestiais e o papel (e a necessidade) de mudanças na vida de todo mundo sob uma égide reinante do faz de conta, de uma fantasia perturbadora acima do certo e errado – esporros de um subconsciente brilhante demais para não ser marcante, tal como se apresenta, na qual sua principal motivação de se mostrar é expandir as possibilidades de uma criação fabulesca ganhadora, já, de inúmeros prêmios, ao longo de mais de quarenta anos de publicações reverenciadas, no mundo todo.
Incrível como Gaiman nunca está sozinho, e sempre pode contar com grandes desenhistas para potencializar a maestria de suas ideias que, visualmente, são tão assombrosas quanto seus mistérios deliciosamente arrebatadores, e impossíveis de se explicar – cabe a cada leitor sentir o deleite desta experiência. Até mesmo Milo Manara aceitou o convite, aqui, no conto “Desejo”, o segundo desta coletânea. Cada história então ganha seu próprio traço, do mais formal ao mais expressionista, tal os retratos chocantes do conto “Desespero”, que mais parecem ter sido feitos por um paciente em estado grave de um manicômio, mas são apenas reflexos da genialidade de Barron Storey, um influente artista plástico, e Dave McKean, outro louco genial que adora colaborar com Gaiman – para a nossa sorte, é claro. Nesta publicação lançada no Brasil pela Editora Panini, noutro de seus primorosos trabalhos editoriais, tudo se converge em êxtase feito sob medida para nos tirar do razoável, e nos catapultar à zona do absurdo. Algo espantosamente similar a tudo aquilo que fingimos não conhecer, ou acreditar, mas quem sabe um dia, gostaríamos de provar. Eis a chance.
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