Crítica | Dumbo (1941)
No antigo VHS de Dumbo há um dizer que hoje soa engraçado, afirmando que aquela é uma pequena obra prima, e de fato, o filme de Ben Sharpstein é exatamente isso. Lançado de maneira despretensiosa, para ocupar o espaço entre o clássico Fantasia e o muito rentável Bambi – cujo custo beneficio foi absurdo, orçado em 858 mil dólares rendendo mais de 260 mil – a historia do elefantinho de circo com orelhas grandes é encantadora desde seu começo, em uma noite chuvosa, em que cegonhas sobrevoam a Florida, e jogam cestos com filhotes e paraquedas que caem sobre o circo.
O início mágico não é à toa, cada um dos filhotinhos parecem se encaixar perfeitamente em seus grupos familiares, e somente uma mãe fica insatisfeita, a elefanta. No caminho que o circo faz até sua próxima locação, de trem, finalmente chega a encomenda, um belo filhote de elefante, super afável com uma leve deficiência, que são suas orelhas grandes. É curioso como isso só aparece quando o roteiro julga conveniente, já que num primeiro momento, as elefantas o acham fofo, não demorando a praticar a segregação com o filhote.
O circo é quase uma entidade, assim como os outros objetos inanimados. A locomotiva a vapor que transporta homens e animais tem vida própria, e na música que os funcionários cantam, há uma reclamação, de que eles trabalham sem saber se irão receber ou não pelo seu esforço. Quase todos os homens que praticam tal esforço são negros, e possivelmente a ideia do roteiro de Joe Grant e Dick Huemer remete a escravidão, abolida nos Estados Unidos em 1863, 78 anos antes do filme. Fato é que alguns animais ajudam a armar as tendas, em dos muitos paralelos que o filme de Sharpsteen faz com a escravidão e trabalho forçado.
Apesar de ser um filme infantil e de comédia, há tons bastante dramáticos ao longo dos 63 minutos de duração, como quando a Senhora Jumbo tenta proteger o seu filhote de um menino humano que se excede, e tenta ferir Dumbo. O paquiderme é isolado, basicamente porque reagiu ao seu instinto materno, fato que não deveria ser condenável, obviamente. Não é estabelecida qualquer relação minima de camaradagem entre o dono do circo, adestradores ou qualquer humano e os animais, por mais que o mote do filme não seja exatamente esse problema, mas a megalomania do chefe do picadeiro faz ferir quase todos os elefantes, além de causar a separação do protagonista de sua mãe.
Dumbo é maltratado pelos seus iguais, e o quadro piora muito depois do numero que teria ele como centro das atenções. O herói é tratado como um pária pelos seus, e só encontra bondade no ratinho Timóteo (Thimoty Q. no original), um personagem que conversa com ele e faz um papel semelhante ao do Grilo Falante no filme do Pinóquio, ainda que não seja exatamente a consciência do elefantinho. Ele é basicamente o único simpático ao personagem-título, o mesmo que tenta reunir filho e mãe, aproximando Dumbo da jaula da senhora Jumbo, onde as trombas dos dois se tocam, em um dos momentos mais singelos do filme.
Após muita rejeição impensada, piorada pela questão de tentativas de integração em números circenses se mostrarem nulas, Dumbo é tornado um palhaço, uma classe considerada mais baixa na hierarquia do circo. Além disso, o juramento feito pelas senhoras demarca outra situação, de segregação de uma criança ainda, que é separada de sua mãe e é obrigada a trabalhar sem apoio algum daqueles que deveriam ser o seu povo e seus protetores.
Apesar da formula bem simples, o filme ousa em alguns pontos, como quando o filhote tem as visões psicodélicas, fruto do gole que ele e Timóteo deram na água contaminada por champanhe, cujos efeitos são bem diferente do tipico torpor do álcool, mais parecidos com os efeitos de drogas sintéticas. Fazer alusões como essas, em um filme infantil de 1941 é realmente algo corajoso, e a sequência é muito bonita visualmente, com um equilíbrio belo das imagens bem desenhadas com tonalidades bem gritantes , em uma sequência bem doida.
Dumbo consegue quebrar os paradigmas que seu enorme tamanho impõem a si, e consegue transformar um defeito em uma virtude, e por mais que não se livre das amarras que lhe são impostas pelo circo, ele ainda age feito um avião, mesmo sem o placebo da tal pena mágica que Timóteo e os corvos lhe arranjam. Sua performance é apoteótica, e o animal triunfa, tendo direito a privilégios que antes não tinha, como um vagão só para si e para sua mãe, alem de cantos de quem antes o tratava mal. Dumbo soa mágico, em especial em seu final, mas esconde um teor de tristeza e dramaticidade normalmente subestimados por parte do público, semelhante ao filme posterior de Walt Disney, Bambi, embora seja menos explícito no quesito de explorar a tristeza, escondendo ela atrás de uma figura mitológica e gigantesca que consegue planar pelo ar facilmente, com aerodinâmica tipica de um boeing. Os sessenta e quatro minutos de filme parecem até mais extensos, diante da mágica história apresentada e apesar de ser uma obra simples e sucinta levanta questionamentos a respeito de preconceito e intolerância de maneira bem palatável e não didática, em um função muito nobre por conseguir transmitir tais mensagens para uma plateia mais novas.