Crítica | Sempre Bela
Manoel de Oliveira está morto. Nada se leva, portanto resolveu deixar seus filmes para trás – para nossa sorte, claro. Sendo Aniki Bóbó meu primeiro filme do mestre (o cúmulo da doçura, uma ode irresistível à infância, e não somente a inocência, mas como um período encantador e transitório de seres ainda em evolução geral que o filme faz questão de enfatizar sem destilar), o secular Oliveira viu o mundo mudar, viu a inocência de Bóbó perder lugar para outras tangentes ao longo do tempo, tempo registrado pela câmera, seus inúmeros personagens e cenários que os abrigam e abrigaram o próprio artista por tantos, tantos anos. Anos que pesam agora, e sempre, em qualquer análise de qualquer testamento com seu selo de qualidade.
O cinema de Oliveira reconheceu vários expoentes, afinal só faltou registrar o mundo virando ao contrário. Dos anos 30 a 2014 (!), vários modelos de percepção, muitos exemplos da visão do artista para cada fase transitada sob estímulo e coragem naturais; a astúcia e a audácia de um principiante; e a experiência de um perito cavalgando cada filme tal qual o próximo desafio de sua vida. Vida de cineasta é assim, devoção, alma e dinheiro, então o que os motiva a dar o sangue? Na pintura, o surrealismo escrachava a importância do inconsciente na criatividade do artista. Na música, ritmos feito o funk sofrem várias adaptações culturais pra refletir cada grupo, fielmente. Mas percorrer o Eldorado é pavimentar uma carreira centenária. Uma missão olímpica de 62 filmes em míseros 106 anos.
Oliveira, de sobrenome tão comum e talento inaudito, é um caçador de fantasmas, entre tantos outros atributos, e Sempre Bela parece resumir o que isso significa num convite do futuro ao passado convidativo de uma relação. O que permite passar os sinais verde e vermelho que guiam os carros é o destino, um espectro de casaco negro, alheio à cidade que o rodeia em um ambiente frio por natureza – ou pela falta dela, curvo em direção de lugar algum na Paris noturna dos filmes romancistas. Mas a aparente distância sentimental do homem logo é quebrada por sua admiração ao feminino, manequins ou bonecas de carne, a chegar em sua amada nem tão são e nem tão salvo, mas agoniado por querer retomar agruras e falácias de idos remotos.
Um embate existencial onde o que prevalece é a luta de uma inteligência emocional frágil contra as tentações do destino que comanda os faróis da cidade – esqueça o monitoramento de trânsito, isso é poesia ou era pra ser. Sempre Bela não é o sensível guiado pelo intelecto, o retrato da não-coerção entre a paixão (talvez culpada por quem a tem) e a razão (talvez culpada por quem não a detém).
Do surrealismo espanhol de Luis Buñuel ao realismo transcendente do mestre português, Oliveira traduz o propósito de revitalizar o pós “felizes para sempre” do marido traído e sua esposa meretriz de A Bela da Tarde, em forma e nostalgia, nos convencendo de que uma segunda conclusão ao clássico filme de 1967 merece uma adaptação alternativa aos moldes de uma época diferente e moderna, o que nada afeta nenhum dos dois filmes e suas escavações pelo jardim do Éden afora. O que levou Eva e Adão às suas práticas é o gênese da exploração filmada em esmero, paciência e mãos de seda.
Sobretudo, ao filme não interessa os moldes do tempo – afinal aqui consta a busca atemporal a uma eterna beleza ex-conjugal –, e sim os porquês do velho Husson precisar ou simplesmente querer resgatar a atenção de Serizy, num jogo de gato e rato onde o detetive de seus passos na cidade luz é cultuado por uma câmera elegante e áudio espanhol para remeter à linguagem do cineasta. Mas nada aqui remete a continuidade: pura apropriação respeitosa, respeitável e criativa de uma ideia-prisma, cheia de observações possíveis (e diálogos de literatura europeia). Surrealismo? O quão surreal é a busca pelo amor não correspondido? Não mais que os feitos de Salvador Dalí, Ingmar Bergman, Alan Resnais, Luis Buñuel, ou do maior portuga do Cinema. Estamos pisando no salão das lendas, é bom saber. Elas estão mais vivas do que nunca.