Resenha | Casagrande e Seus Demônios – Casagrande e Gilvan Ribeiro
Para quem está acostumado a ver Walter Casagrande Júnior comentando as partidas da seleção ao lado de Galvão Bueno e Júnior (antes, Falcão), talvez não conheça a história por trás do gigante em estatura e, por vezes, lento cronista, que costuma dar pausas imensas entre uma máxima e outra proferida. Desde a época como jogador da histórica e áurea fase da Democracia Corinthiana, ele já demonstrava um algo a mais, seja por sua óbvia qualidade como atacante (em um time que tinha enorme qualidade antes mesmo de sua estreia), seja pela parceria e amizade com o Doutor Sócrates tanto nas quatro linhas quanto fora delas; ou por sua destacada personalidade forte e comportamento completamente diferente do estereótipo do jogador de futebol, normalmente associado à pouca inteligência e afeito ao samba. Casão era diferente: roqueiro e muitíssimo instruído, considerado esquerdista e representante de uma das poucas formas democráticas de governo em plena ditadura militar. Uma boa definição para ele foi feita por Washington Olivetto, um dos publicitários mais importantes do país e vice-presidente do departamento de marketing da Democracia Corinthiana do Parque São Jorge: “O Casagrande foi o jogador e é o comentarista mais rock’n’roll da história do futebol brasileiro.”
Logo na orelha do livro Gilvan Ribeiro começa citando o que haverá nas páginas seguintes, nesta ordem: “Drogas, futebol, política, rock’n’ roll”. A promessa é de que as palavras serão as mais sinceras possíveis, num tom de total confissão não dos pecados em si ou de arrependimentos por parte de Casão, mas dos tropeços e demônios que ele busca expulsar de sua própria vida até os dias atuais. O tom do início do escrito é tão docemente poético que dá para notar a simbiose entre Walter e Gilvan, ambos jornalistas, um ingressando por seu passado esportivo e outro por formação. A união dos dois traz à luz a primeira publicação de cunho literário de ambos. Curioso é que Casagrande, mesmo após o lançamento do livro, ainda não o havia lido por completo, ainda pesando se seria benéfico a ele revisitar tudo outra vez.
Há um contraste entre os relatos da vida do biografado e a ideia que seus amigos fazem de si e de sua luta contra o vício. Para Antonio Prata e Marcelo Rubens Paiva, existe uma enorme poesia na luta entre os antagonistas e o vencedor, contornos de uma narrativa épica. Casagrande humilha o adversário e até o rebaixa de divisão (utilizando um termo ligado ao esporte). No entanto, sem qualquer egocentrismo e sem subestimar a sua capacidade de autodestruição, Walter assume sua ponderabilidade diante do vício, e afirma que não se lembra de como era antes de provar a droga. Ela não o apequena, ao contrário, é homem o suficiente e tem tal coragem e ombridade para assumir que sempre perderá para o entorpecente. Sua luta diária é a de empatar com ele, não de ganhar. O ex-jogador não é um ex-adicto: viciado é a sua condição; a luta é para não lançar mão de seu vício. Ribeiro usa um paralelo com Salomão, que teve um embate com 71 demônios e que destes o único que sobreviveu era exatamente o mais forte, o qual retornaria. Casagrande também estudaria o caso e veria materializado o diabo em seu apartamento.
A escolha por iniciar a narrativa pelas tragédias é corajosa e pontual, mostrando uma das muitas crises de Casão, convencido de que um ser dos infernos invadirá a sua casa, até hoje sem a certeza absoluta de que aquilo foi causado somente pelo torpor da droga. A preparação da heroína que ele injetava é contada nos mínimos detalhes, inclusive expondo a espera pela solidão, quando sua mulher (atualmente ex-esposa) e filhos saíam de casa, apenas para fazer uso da substância. A excitação maximizava os efeitos e o uso era tão milimetricamente pensado que se assemelhava a um ritual dos mais metódicos. Os parágrafos são construídos entre fatos e falas de todos que cercam Casa, como na parte em que seu filho Leonardo diz ter notado algo estranho com o pai, escondido atrás da porta do banheiro e do fingimento do mesmo — o episódio se caracterizou como uma das overdoses mais recentes que sofreu, em 2006, um ano antes do incidente com o demônio e do acidente automobilístico que causou. A injeção foi de 1 ml de “speed”, uma dose para dois, devendo ser aplicada em dois momentos distintos, mas que foi ingerida em uma única vez. Tal desventura foi o fator principal para o seu divórcio com Mônica: ela sentia-se traída e Casagrande tinha dificuldade em aceitar o litígio. Segundo o autor, o ex-jogador se encontrava em queda livre e tinha uma atração irresistível pelo abismo.
Nem mesmo se apegar ao trabalho fez Casão ter força o suficiente para parar de se autoflagelar. A cobertura que realizou na Copa do Mundo da Alemanha, em 2010, foi em um período entressafra do vício, quando estava limpo – tal comissão só aconteceu graças a Galvão Bueno, que insistiu muito com a emissora para que o comentarista trabalhasse, a despeito de todo o receio do canal, deveras justificado, obviamente.
Uma vez, na clínica de reabilitação em Itapecerica da Serra, sofreu um forte choque com a rigidez do tratamento e do isolamento: “não sabia para que lado ficava São Paulo”. Lá ele era chamado somente de Walter. O intuito era livrá-lo da aura de fama que também colaborava para o descontrole de seu vício. Isso despertou nele a luz de alerta do quanto estava doente, fazendo-o passar a ser mais Walter e menos Casagrande. A ideia de morrer jovem sempre foi para si muito deliciosa, posta pela morte precoce de seus ídolos Jim Morrison e Jimi Hendrix, uma filosofia juvenil preconizada por Mick Jagger, que curiosamente envelheceu nos palcos mantendo sua energia. O esboçar da mudança aconteceu com um presente de amigo oculto organizado entre os pacientes da clínica: a autobiografia de Eric Clapton, seu ídolo, pessoa pública e, acima de tudo, um homem que enfrentou o vício nas drogas e que contou a sua própria história, assim como Casão faria junto a Gilvan.
A reinserção do comentarista na grade da Globo foi, aos poucos, milimetricamente pensada para chocar o mínimo possível de espectadores. A retomada começou em pequenas participações em programas de TV fechada como o Arena Sportv, e depois em uma longa entrevista a Fausto Silva e seu típico arquivo confidencial. No dominical ele abordou a questão da adrenalina perdida após a aposentadoria dos gramados e do grave erro de querer preencher um vazio com algo diferente, ao invés de tentar aceitar que certas coisas são finitas. Walter ainda viria a dizer que um dos efeitos da cocaína é o congelamento emocional decorrente do uso, que o torna um sujeito cínico, egoísta e insensível aos sentimentos alheios.
Para quebrar um pouco com a gravidade das situações, o biógrafo começa a falar da adolescência e juventude de Casão, desde a amizade com Wagner Magrão, com quem começou a usar maconha, passando pelo ativismo político, inclusive contando seu envolvimento numa arrecadação de fundos para a fundação do Partido dos Trabalhadores. A biografia não contempla todos os momentos da vida do ex-jogador, mas trabalha obviamente as partes mais lisérgicas e repletas de adrenalina de sua existência. Um ótimo escape dos problemas do homem Casagrande, elencados de acordo com seus próprios interesses.
O período histórico da Democracia Corinthiana foi um marco para o futebol e para a época, visto que dava voz aos atletas, além de ser um grito anti-repressão. O movimento sofreu tentativas de desmoralização ao ser associado a alguns episódios do clube, como o extensivo uso de cocaína por parte de Casagrande e outros escândalos que envolviam outros jogadores do Corinthians. Mais do que o poder de voto e de influência, para Walter o auge era dividir os vestiários e os gramados com os seus ídolos, além de vestir a camisa do seu time do coração, realizando finalmente um sonho de menino. Tudo na vida de Casão orbitava em volta de Democracia. A situação era de tamanha compreensão que ele ganhou a salvaguarda de poder beber sua cervejinha em um bar dentro do Parque São Jorge, regalia estranha até mesmo para os dias atuais. Tal conduta o faria se encontrar com Mônica, sua futura esposa e atleta de vôlei do clube, levando-o a pichar o muro das dependências do Parque pedindo-a em casamento.
A outra parceria matrimonial de Walter Casagrande foi com o Doutor Sócrates. A história pregressa do elegante meio-campista era belíssima, a começar pela decisão de só sair de Ribeirão Preto após sua formação no ensino superior, mesmo com propostas de cunho econômico elevadíssimo. “Isso foi do caralho! Qual jogador recusaria uma oportunidade dessas com o propósito de terminar os estudos? Hoje, por qualquer euro, o cara larga tudo e vai jogar na Ucrânia.” A admiração sempre foi grande. Em 1978, quando Sócrates passou a jogar no Timão, Casagrande estava nos juniores, e em 1981 os dois se encontraram, com Sócrates servindo a seleção em um amistoso contra a Caldense, onde o centro-avante estava emprestado. O mais experiente foi perguntar ao mais jovem como ia a sua carreira, pois lembrava dele nos juniores, e os olhos de Walter brilhavam ao saber da importância que ele lhe deu. Mesmo após o Magrão sair do Corinthians, dali pra frente eles se tornaram “unha e carne”, inclusive o Doutor foi convidado para ser padrinho do casamento de Casão. A relação esfriou após uma declaração de Sócrates de que Walter teria se vendido e ignorado seus ideais por começar a trabalhar na Rede Globo, como se ao aceitar o emprego ele abrisse mão de seu DNA transgressor. O divórcio aconteceu silenciosamente, nunca houve uma discussão pública entre os dois, somente um afastamento que os proibia até de se reconciliarem. Isso ocorreu até que Gilvan Ribeiro decidiu tornar público o desentendimento, fazendo com que o povo passasse a exigir a reconciliação, cuja oportunidade existiu em 2006, mas que não aconteceu graças a uma das muitas falhas de Sócrates. Pouco antes do Doutor falecer, entubado na cama do hospital, os dois deram as mãos e Casagrande desistiu do orgulho ferido, perdoando seu melhor amigo. Eles ainda gravariam uma reunião no ar no Arena Sportv, antes da derradeira internação. Walter Casagrande escreveu um belo texto sobre o amigo Magrão, declarando seu amor a ele e concluindo que não existia Casagrande sem Sócrates. A íntima relação tinha em comum a dependência — no caso de Sócrates, era ao álcool. No fim do texto ele desabafa: “Tínhamos uma estreita aliança… Vou jogar meu anel fora. Fazer o quê com um anel pela metade?”.
Casagrande já tinha um engajamento político antes de ser amigo de Sócrates, desde muito cedo. Com o tempo, passaria a ser voz ativa contra o militarismo dos anos 70 e começo dos 80, divergindo inclusive das ideologias de alguns outros jogadores, como a do goleiro Emerson Leão. Estas desavenças se enfraqueceram com o tempo, e apesar de ter sido acusado de amolecer, Casão acredita que conviver com as diferenças é a base da democracia. O ex-atacante foi totalmente contra a contratação do goleiro pelo Corinthians, quando perguntado sobre o assunto na época em que os membros do plantel davam opiniões sobre as admissões de outros jogadores. Casagrande seria afastado por 40 dias por contestar publicamente a decisão da maioria; seu receio era que a democracia ruísse graças ao forte temperamento de Emerson. A rivalidade aumentaria, passando por alfinetadas mútuas e brigas no elenco, cujo fim do estado democrático supostamente teria findado graças ao arqueiro. Mas seriam águas passadas, pois ambos atualmente se admiram muito graças às profissões que ambos seguiram após aposentarem as chuteiras.
A saída de Walter do Corinthians foi traumática. Tudo começou com uma desavença com o técnico Jorge Vieira e depois com a diluição do que ele entendia ser a essência da Democracia. Com a nova diretoria, acostumada a velhos hábitos da cartolagem brasileira, ele também não teve uma boa relação, sofrendo uma crise com a torcida – após desperdiçar um pênalti contra o Atlético-MG, foi retirado aos cinco minutos do segundo tempo somente para sair vaiado pela torcida. Através do empresário Juan Figer, ele foi transferido para o Porto, numa época em que o aporte de brasileiros no futebol europeu não era tão comum. Depois ele ainda teria uma passagem vitoriosa pelo futebol italiano, sendo artilheiro e ídolo no Ascoli e no Torino.
A sinceridade de Casagrande é uma característica apreciada e elogiada por todos que o cercam, inclusive por admiradores ilustres, como Washington Olivetto e Galvão Bueno. Até em suas rusgas o ex-jogador é absolutamente preso à verdade, mesmo quando isto não é totalmente conveniente. Isso acontecia nos seus comentários in loco durante os jogos, porém essa característica se mostra ainda mais intensa ao comentar seu temível drama do vício. O que antes poderia ser encarado como algo possivelmente ruim, tornou-se uma indiscutível demonstração sentimental de autenticidade, quando, em lágrimas, comemorava a vitória do Corinthians sobre o Chelsea, em 2012, no Mundial Interclubes. A louca gangorra que era a vida de Casagrande é completamente diferente de sua rotina atual, morando sozinho e saindo pouco de casa, apenas para não cair na tentação de re-experimentar as sensações das bad trips proporcionadas pelo uso recreativo da droga. Dedica-se somente ao trabalho e ao hobby cinéfilo, explorando Lars Von Trier e Quentin Tarantino. As últimas páginas são voltadas ao capítulo com a alcunha, dada por Casagrande, de Ele Mesmo, onde o ex-artilheiro esmiúça as mais recentes experiências e traça prospectos sobre como será seu futuro. Tal posfácio acrescenta ainda mais honestidade ao seu relato, que no geral se preconiza e se caracteriza pela quase completa ausência de arrependimento, mesmo em meio a muitos erros. Além disso, a obra apresenta suprema honestidade nas palavras, numa das poucas biografias autorizadas sem uma linha sequer de caráter chapa branca ou apologia a uma vida sem desvios morais. Casagrande e Seus Demônios é um enorme esforço de pesquisa por Gilvan Ribeiro, e de desabafo por Walter Casagrande Júnior.