Resenha | Cinco Mil Quilômetros por Segundo
As comédias românticas e os romances de folhetim nos condicionaram, ao longo dos anos, a esperar pelos coloridos e retumbantes “felizes para sempre” em suas tramas românticas. Contudo, essa expectativa esbarra na dura e cruel realidade de que nem sempre as coisas dão certo e muitas vezes pessoas que se amam seguem caminhos diferentes, sem que haja nada que possa ser feito para evitar o fim. É desse lado triste das relações que a narrativa gráfica em questão trata. Em Cinco Mil Quilômetros por Segundo, o italiano Manuele Fior versa sobre relacionamentos frustrados e a natureza caótica das conexões que estabelecemos ao longo da vida.
Atravessando diferentes períodos das vidas de Piero e Lucia, a narrativa fragmentária e dispersiva de Fior conduz o leitor pela trajetória dos personagens, passando pela infância, pelos desencontros da juventude e pela enfadonha vida adulta. Os protagonistas têm sua vida destrinchada através das páginas, em um jogo de expectativas acalentadas e subitamente frustradas pelo autor, que trafega por passado e presente na narrativa com maestria, se utilizando da paleta de cores para transmitir a sensação que aquelas memórias evocam.
Quando trabalha com o passado idealizado no qual os jovens vizinhos se conheceram, Fior faz uso de tons ensolarados, em sua pintura aquarelada, da mesma forma que a paleta azulada é empregada quando a intenção é transmitir a sensação de tristeza e frustração de Lucia, após se mudar para a Noruega, em busca de refúgio depois do término da relação com Piero. Ao mostrar que Lucia enxerga em Sven uma chance de esquecer o ex e seguir sua vida, o autor pincela as páginas azuladas com crescentes tons de amarelo, principalmente quando a amável e futura sogra Hilde aparece em cena.
Com Piero, a paleta de cores quentes se confunde com a apatia dos tons pastéis, em uma representação da fuga do jovem em busca da realização profissional no Egito, após a frustração da relação com Lucia, o grande amor de sua vida.
A abordagem do autor logra êxito ao se empenhar em mostrar seus personagens, humanos e falhos, se reinventando a partir das frustrações e revezes que a vida lhes impõe. A decisão de Lucia pelo regresso à Itália, divorciada e mãe solo, ansiando por mais um recomeço, a motiva a ligar para o ex, em busca da memória de seu antigo amor, perdido pelo tempo. Piero, já em uma nova etapa da vida e também com uma família constituída, atende a ligação e ambos trocam figurinhas sobre suas vidas até aquele momento, após anos de afastamento.
Ao se contatarem, ela de Oslo e ele de Assuão, a cinco mil quilômetros de distância um do outro, mesmo em rumos diferentes da vida, ambos restabelecem conexão com uma parte tão decisiva de suas trajetórias.
Após uma passagem de tempo de oito anos, Fior retoma os tons tristes e azulados para representar o clima melancólico no qual Lucia se encontra, envelhecida e frustrada com o rumo que sua vida tomou após o fracasso de seus relacionamentos e de sua carreira profissional. Piero, ainda casado e com filho, encontra-se bem sucedido na carreira e em sua relação conjugal, mas tendo em Lucia seu eterno amor de juventude e ponto de fuga de uma vida que muitos julgariam como perfeita.
Esse capítulo final, dedicado a mostrar o jantar dos dois ex-namorados em um breve retorno de Piero à Itália, demonstra em seus diálogos um grau de verossimilhança impar dentro das histórias em quadrinhos, ao trabalhar as perspectivas de ambos os personagens após tantos anos terem se passado desde o fim de sua relação.
A melancolia inerente ao encontro dos dois encontra seu auge na frustrada tentativa dos dois em transarem no banheiro do restaurante. O constrangimento de ambos é quebrado por uma derradeira conversa sobre pertencimento e frustrações, em uma análise franca dos personagens sobre os rumos que suas vidas tomaram e em como são, de diferentes formas, infelizes com o caminho que seguiram, encontrando um no outro a nostalgia de tempos passados, mais simples e idealizados, diante do inexorável peso do tempo e das intrincadas conexões que compõem as relações humanas.
Cinco Mil Quilômetros por Segundo se trata, dessa forma, de uma análise contundente sobre resiliência e amadurecimento pelas quais todos nós passamos em algum momento da vida, ao termos o coração partido.
Em termos técnicos, podemos tecer alguns comentários. O traço minimalista e, por vezes simplório, de Manuele Fior, é potencializado por seu deslumbrante trabalho em aquarela, criando uma ambientação confortável para sua trama. Vale também ser discutida a inventiva representação do caos linguístico na comunicação dos personagens em diferentes línguas, na qual a manutenção do idioma original de cada língua estrangeira ali falada dentro dos balões tanto gera um impacto estético interessante dentro da proposta narrativa, quanto quebra o ritmo de leitura, ao forçar o leitor a fugir o olhar dos limites do quadro para ler a tradução do que está sendo falado em cada balão.
A narrativa gráfica, premiada em Angoulême no ano de 2011, foi publicada em 2018 aqui no Brasil pela editora Devir, em capa dura, lombada arredondada e papel off-set, em 144 páginas.
Compre: Cinco Mil Quilômetros por Segundo.
Facebook – Página e Grupo | Twitter | Instagram | Spotify.