Tag: Documentário

  • Crítica | O Samba

    Crítica | O Samba

    O Samba 1

    Documentário que registra a visão do cineasta francês Georges Gachot sobre o ritmo brasileiro, O Samba é uma viagem ao ambiente tão conhecido pelo público nativo, investigando em detalhes o processo de ensaios referentes ao carnaval, bem como todo o enfeite que o envolve, como a produção das fantasias, coreografias e carros alegóricos na festa popular ocorrida tradicionalmente no Rio de Janeiro.

    A primeira parada é na Vila Isabel, recôndito de Martinho da Vila e de tantos outros operários da escola de samba. Desde os funcionários que operam a rotina das agremiações, como motoristas e faxineiros, até os musicistas e dançarinos, todos são explorados pelas lentes de Gachot, e em seus discursos há o mesmo orgulho no patrimônio cultural que é a música e seu entorno, quadro bastante diferente da marginalização que ocorria em décadas passadas, fruto especialmente das origens africanas e do racismo que permeia o país, e que era ainda mais gritante nos tempos de recente saída da escravidão.

    A centralização do roteiro em Martinho serve para aprofundar o tema, não tornando este o único objeto de análise, tampouco redundando a investigação, mas a decisão se mostra acertada, uma vez que a figura do cantor e compositor é unânime não só no cenário mainstream fonográfico como também dentro da comunidade, que de acordo com o filme é a força motriz do ritmo, aliado claro à simplicidade de um povo que apesar de não ter tanto acesso a informação secularmente, consegue produzir uma boa parcela de cultura, consumida por si e apreciada por quem não vive naquele ambiente.

    Martinho faz questão de declarar a inconformidade de sua música com as dificuldades inerentes à vida, o que abarca o descaso das autoridades com seu povo e sua gente. Canta Canta Minha Gente,  sua obra mais conhecida, é comumente gravada e traduzida na Europa, mas para ele as versões só seriam espiritualmente semelhantes da criação original quando tivessem em suas traduções o mesmo otimismo galopante que habita a letra.

    Os depoimentos de ilustres como Leci Brandão e Martnália assinalam a questão da africanidade do conteúdo de contestação das letras, tantas das de Martinho quanto nos enredos da Unidos de Vila Isabel, o que vai de encontro a tradição de perseguição da polícia aos sambistas, que associava a música a malandragem, criminalizando a manifestação do negro tanto na música quanto na religião, uma vez que eram os terreiros de candomblé e umbanda o refúgio de foragidos, além é claro de servir de localidade de culto.

    Apesar de não apresentar nenhum ineditismo ou maneirismo incomum no modo de filmar, é na simplicidade sistemática que O Samba se diferencia, usando o modo normativo de gravação para emular o quadro comum e humilde dos sambistas da velha guarda em compor suas canções e em expressar suas emoções. O roteiro, mesmo com estes destaques, segue analisando pontos-chaves, valorizando a cultura brasileira de um modo bastante tocante e reverencial.

  • Crítica | Rita Cadillac: A Lady do Povo

    Crítica | Rita Cadillac: A Lady do Povo

    Rita Cadillac - A Lady Do Povo - capa - blu ray

    Famosa na década de 80 ao se tornar uma das dançarinas do programa Chacrinha, Rita Cadillac se tornou um ícone por suas curvas que a transformaram em símbolo nacional. Destacou-se como cantora de um único hit, É Bom Para o Moral e, na década seguinte, seguiu sua trajetória como Rainha dos Detentos, realizando show em presídios. Mesmo quem desconhece sua carreira, reconhece Rita pelos seus atributos e seu pomposo nome artístico.

    Dirigido por Toni Venturi, Rita Cadillac – A Lady do Povo revisita uma das grandes figuras populares da década de 80. A história de Rita de Cássia é narrada sem nenhuma ficção, apoiando-se na sinceridade e no carisma da dançarina para desmitificar a figura popular e engradecer a mulher que a sustentou.

    Recontando sua trajetória enquanto retorna ao bairro da infância, Rita relembra momentos bons e difíceis da juventude e a guinada de sua vida devido a sua beleza. A honestidade em identificar seu sucesso é impressionante. Não nega a beleza e a força de seu derrière, responsável pela projeção nacional. Se hoje o apelo erótico é comum, a exposição da sensualidade na época era uma válvula de escape devido a uma sociedade opressora, um misto de apelo sexual a uma inocência potencializada pelas jovens dançarinas.

    Os depoimentos apresentados são de fãs, personagens e amigos que passaram por sua carreira, como o doutor Drauzio Varella, um dos médicos da prisão carcerária do Carandiru a qual assistiu in loco a força de Cadillac ao se apresentar sem medo para os prisioneiros que a viam como uma musa inspiradora. A fama e o carisma são traduzidos como um hipnotismo característico, aponta Varella, de uma grande figura.

    Como sua autora, não há pudor nesta história nem mesmo assuntos deixados de lado. Reinventando-se a cada década para se sustentar, a figura trabalhadora emerge e discute a velhice, os percalços da fama e a motivação para a breve carreira de filmes adultos.

    Formal em sua composição seguindo uma linha cronológica com depoimentos, imagens e registros da época, o documentário se destaca pela força desta trajetória representando bem a força de renovação de uma personalidade simples mas, acima de tudo, carismática e batalhadora.

  • Crítica | Homem Comum

    Crítica | Homem Comum

    Homem Comum 1

    Baseado em uma proposta que se modificou com o tempo, Homem Comum era para ser um documentário de Carlos Nader sobre o sentido da vida iniciado nos anos 1990, quando o diretor visitou homens simples, caminhoneiros, e faria junto a eles algumas perguntas filosóficas a respeito da inevitabilidade da morte, fruto de uma obsessão que o realizador tinha em relação ao filme A Palavra (ou Ordet), do cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer.

    Nader inseriu pedaços inteiros do filme dos anos 1950, resumindo-o e contando grande partes de seus segredos e mostrando-o como objeto de análise de seu documentário. A mudança no projeto de longa-metragem se deu logo no início, com uma troca de caráter completa, ocasionada pela paixão que Nader teve pela trajetória de Nilson de Paula, um caminhoneiro paranaense, que tinha em sua base familiar o maior motivo de seguir vivendo, como era comum para milhares de brasileiros.

    A intimidade do homem passa a discutir as perguntas planejadas primariamente, simplificando as questões. Simultaneamente há um agravamento do questionário, já que a rotina de Nilson e dos seus passa longe de ser fácil de lidar, com dramas familiares que se avolumam, refletindo a condição de perdas contínuas, inexoráveis na vivência humana.

    A necessidade do diretor em injetar metafísica era comum na época, e segue viva nos idos dos anos 2000, ainda que este aspecto esteja mais velado na década atual. A narração de Nader, que deveria elucidar as questões difíceis, acaba por tornar óbvias as demandas levantadas, sem permitir ao público que haja alguma conclusão que não seja dada pelo próprio realizador. O aspecto, que deveria ser negativo, acaba sendo uma surpresa positiva, já que fomenta uma questão fundamental da vida, que é o incômodo com algumas situações cotidianas, que fazem eco na difícil relação de Nilson com sua filha, sendo esta um dos poucos resquícios de sua vida anterior, daquela outra praxe do primeiro ato.

    Nilson tem certezas que só a simplicidade é capaz de garantir ao homem, e a escolha por levar todo o script para esta vertente é um acerto em cheio do cineasta. O filme invade a vida e a vida se passa na frente da câmera, de modo literal, em um comentário mais metalinguístico do que qualquer pretensão alternativa e arrogante da premissa original. Homem Comum consegue de modo comovente flagrar a sensibilidade do cotidiano e a dificuldade que o sujeito médio tem em equilibrar suas próprias emoções, sensações e sua existência, sem grandes mensagens de aprendizado e sem apelar para fórmulas fáceis.

  • Crítica | Cobain: Montage of Heck

    Crítica | Cobain: Montage of Heck

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    Durante os últimos anos, fomos bombardeados com diversos documentários sobre Kurt Cobain; a maioria, tentativas frustradas de “desvendar” o suicídio do lendário vocalista do Nirvana. Não é o caso de Cobain – Montage of Heck, documentário dirigido por Brett Morgen, que deixa Kurt falar, nos levando a uma viagem por sua mente e sua alma.

    Cento e trinta e dois minutos se passam antes de vermos em tela: “No dia 5 de julho de 1994, Kurt Cobain pôs fim a sua vida”. A sensação de estar na pele do vocalista nas últimas horas é tanta que a pequena frase volta a ter os mesmos efeitos que teve em seu tempo.

    Os filmes, as fotos e os vídeos presentes no longa deixam claras as intenções de Morgen ao produzir o documentário da forma mais completa e sincera possível. Temos um retrato biográfico completo de Kurt, começando em seus primeiros passos, passando pelo “boom” do Nirvana, até chegar aos seus últimos dias. A atmosfera criada, cheia de relatos, fotos e até sequências de animação, demonstra que o intuito principal aqui é deixar Kurt falar por si, contar suas histórias e, talvez, explicar seu estilo de vida.

    Trechos de entrevista, capas de revista e notícias em jornais, são elementos utilizados na formação de um “quadro” muito maior, ao lado de todos os poemas incompletos, das listas bizarras e dos traços perturbadores de seus desenhos, visando um olhar mais aprofundado e inquietante da vida pelos olhos de Kurt.

    Ao passo em que nos aproximamos do fim, somos aprofundados na relação Cobain-Love, com uma atmosfera densa, melancólica e pesada. É desconcertante ver Kurt Cobain aos beijos com Courtney Love. Ambos parecem ter tido toda a vitalidade consumida, seja pela fama ou até pela união. Aliás, ter um vislumbre da relação, independentemente do momento, já é desconcertante por si só. É como se o chocante fosse comum para eles, a ponto de vermos Courtney Love injetando heroína durante sua gravidez.

    Porém, o maior choque existente em Cobain: Montage of Heck é a entrada brusca na vida de Kurt, feita de forma repentina, singular, até mesmo crua. Antes da figura lendária, o símbolo da rebeldia que pouco se importava com as críticas e opiniões, vemos um homem. Um homem frágil que não suportava humilhação e abominava invasão particular.

    E quanto a isso, ao fim, resta apenas uma dúvida: o que Cobain pensaria se visse sua vida exposta de maneira tão crua e intensa, como realmente foi?

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    Texto de autoria de Matheus Mota.

  • Crítica | Nós Somos a Legião: A História dos Hacktivistas

    Crítica | Nós Somos a Legião: A História dos Hacktivistas

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    A ingrata missão que Brian Knappenberger assume é a de catalogar um movimento que tem em sua essência o anonimato e uma origem não facilmente encontrada – quando muito – o estudo sobre o grupo de hacktivistas Anonymous começa por meio da única posição facilmente rastreável relacionado ao modus operandi do grupo: a opinião pública, confabulando desde falas de pessoas  mais conservadoras, que os associam naturalmente a terroristas, hooligans e outros grupos intolerantes, até a quem os vê como heróis em uma era de informação livre.

    Uma breve discussão sobre o termo “hacktivismo” é aberta, inclusive revelando-se a sua origem em um discreto fórum internético, da época onde tais grupos de discussão não estavam ainda abertos ao grande público. A essência do comportamento tem desenlaces com ativismo político e compartilhamento irrestrito de informação, para que daí, não haja mais barreiras ou fronteiras a se transpassar, especialmente para o homem comum que quer se informar por fontes não oficiais.

    O começo modesto, via 4chan, em uma plataforma que garante o completo anonimato de seus participantes, mudaria de paradigma ao adentrar as redes sociais, em especial o facebook. Parte da cultura por trás da figura do troll é descortinada, focando em ações bastante politicamente incorretas, ao mesmo passo que em momentos depois destaca o ataque a Hal Turner, um fundamentalista branco, estadunidense dono de um podcast que faz apologia ao neo-nazismo. Os hackers que tinham sua base de relações pelo 4chan organizavam desde denúncias em massa por e-mail até comentários mil, todos de conteúdo vexatório, execrando a atitude e a fala excludente do racista formador de opinião.

    Os imbróglios com os advogados relacionados aos fiéis e praticantes da cientologia fizeram com que grande parte dos usuários de fóruns, que tinham simpatia a causa da liberdade de expressão se juntassem, virando a hostilidade de lado e plantando uma semente de inconformidade que provavelmente não ocorreria sem essa interferência. Os Anonymous seriam nomeados e passariam a agira de modo “oficial” a partir dali, segundo os entrevistados por  Knappenberger.

    Pouco antes de completar uma hora de duração, o documentário passa a analisar o fenômeno do wikileaks, mostrando que o vazamento de informações oficiais dos governos dos EUA, assim como as contas detalhadas de grandes empresas de crédito era algo de suma importância, entre outros fatores, por mostrar a face rude do capitalismo para quem teimava em negá-la. A contrapartida a isso logo veio, por meio monitoramento e vigilância da parte do governo aos ativistas identificados, tendo toda a sua liberdade invadida unicamente por pratica a própria opinião e posição política.

    Os últimos momentos do filme tentam fechar o certame de modo otimista, apresentando uma mensagem positiva, apesar de toda a repressão que o grupo focado sofria. Esse desfecho, assim como boas partes da extensão do filme parecem demasiado irreais, especialmente após toda a escrutinação da repressão das autoridades. O estudo sobre o modo de vida do grupo de hackers é pouco efetivo, pela enorme quantidade de informação desencontrada, além da óbvia falta de fontes totalmente confiáveis.

  • Crítica | Fahrenheit: 11 de Setembro

    Crítica | Fahrenheit: 11 de Setembro

    Fahrenheit 11 de Setembro 1

    Mergulhando ainda mais no estilo documental que emula o jornalismo gonzo de Hunther Thompson, após dois anos do recolhimento de louros por Tiros em Columbine, Michael Moore apresenta uma faceta muitíssimo cômica da vida política estadunidense, começando a esmiuçar a controversa e duvidosa subida ao poder no ano de 2000 por parte de George W. Bush, uma questão mal explicada – ou nada explicada – até a atualidade, com toda a polêmica posterior que envolveria também a posição de Al Gore como vice-presidente do país. A alegação de que toda aquela movimentação seria um sonho fazia da fantasia uma boa medida de escape, ante uma realidade insana o suficiente para ser desacreditada.

    A cena ocorrida dentro da casa da lei, onde os senadores afro-americanos falam e tentam o apoio dos seus colegas, sem sucesso, é tão inapelável que mais parece um ato encenado, dada a completa ignorância que todos os opositores sofrem, mesmo com a clara manipulação de assinaturas. O desconforto ganharia as ruas, W. Bush não conseguiria sequer fazer a caminhada pela posse até a Casa Branca, dada a presença do povo na rua protestando contra ele. Toda esta movimentação ocorrendo após a declaração da Fox News, contestabilíssima, de que ele havia vencido na Califórnia, conquistando então a maioria dos colégios eleitorais.

    O retrato de cowboy, descerebrado, é arquitetado nos primeiros 12 minutos do longa de Moore, tudo para fazer crer que o político era na verdade um fantoche, parte de todo o circo midiático que fazia do público massa de manobra, acreditando que seu presidente não teria muitas diferenças entre eles. Um autêntico boi de piranha para interesses de mandatários mais poderosos. O encerramento da construção deste arquétipo é pontuado por um ensaio em frente a tela, onde Bush e outros parlamentares se maquiam frente às câmeras, emulando a falsidade de suas feições e expressões, igualando-as de seus discursos falaciosos e vazios.

    O artifício usado pelo realizador para desmascarar ainda mais a possibilidade de farsa do republicano foi um evento em uma escola, após o atentado de 11 de setembro, onde Bush teve imposto, por si e pelos assessores um ensurdecedor silêncio de sete minutos, diante de câmeras inclusive, possivelmente refletindo sobre a quantidade de acordos comerciais que ele, pessoa física e sua família, incluindo George Sênior, também ex-presidente, tinham com o clã dos Bin Laden, que tinha em Osama um dos seus principais suspeitos, sendo amputado a culpa quase automaticamente.

    O destaque que o documentarista dá a multiplicidade de discursos midiáticos – da faceta mais podre e manipulatória possível – é ímpar, pois destaca a alienação que a população tem ao ingerir palavras oficiais tão ambíguas, de que os inimigos existem e querem o sangue inocente, e de que deve o cidadão comum curtir suas férias sem maiores preocupações. O tratamento a base de sofismas é exibido de modo categórico, e no qual Moore acaba por destacar a maior isenção possível dentro da fita, não narrando as falas mais desavergonhadas, de pura manipulação midiática exercida sobre o povo.

    A ironia nada fina de Moore chega a ser rude, ao comparar a paranoia do cidadão médio americano a um comportamento baixo e egoísta, capaz de denunciar um vizinho pelo simples fato dele discordar da postura presidencial de avanço rumo à exploração do petróleo do Oriente Médio, além de tratar grupos de discussão, desde os mais simples, como potenciais terroristas. As táticas esdrúxulas de cerceamento de liberdade também são flagradas, como a proibição de viajar com leite materno, mas com isqueiros e caixas de fósforos liberados, mesmo em voo. A contradição não é perdoada pela fala ferina do cineasta.

    Mas não há somente cinismo na fala do realizador, há também uma profunda compaixão aos moradores de cidades menos abastada de dinheiro, que veem no ingresso ao exército a possibilidade de ascensão social. A investigação dentro do corpo de alistados é municiada por argumentos e falas completamente soltas, onde os alistados falam livremente, deixando ao público claro o nível de desinformação geral e claro, levando o espectador a possivelmente aderir à ideia do idealizador de Fahrenheit.

    Cada meandro, cada detalhe e cada close que Moore flagra serve para provar o seu ponto, gritando aos quatro cantos do mundo a quantidade de injustiças e contradições do modo belicoso como os republicanos governam seu país e o quão prejudicial é sua política externa. O modo como ele aborda o causo é bem menos sensacionalista do que em Tiros de Columbine, mais moderada e amadurecida, mas prossegue tenaz e inconspícua, sem medo de reabrir feridas ou de sofrer perseguição, sem receio de parecer exagerado sequer nas cenas em que apresenta os mutilados; claro, em cenas de forte cunho visual, que visavam aterrorizar a audiência, tanto quanto a política atormenta os concidadãos norte-americanos.

    No final apelativo, Moore se dedica a entregar panfletos aos congressistas, para que eles possam alistar os próprios filhos. O argumento comumente usado – e achincalhado – dito por bocas direitistas é como um mergulho ao mundo dos conservadores, que tem o intuito de resgatar os corações e mentes daqueles que não conseguem ver na política expansionista de Bush e companhia um problema tão grave e real quanto o é, e ao menos nesse ponto o documentarista acerta exatamente na verve, sem chance alguma de argumento contrário, utilizando as armas de seus rivais para fazer valer seus próprios pontos de vista. Em uma perversão que acalenta a vergonha do político-alvo, destacando o modo grotesco como tudo foi arquitetado.

  • Crítica | 20 Centavos

    Crítica | 20 Centavos

    20centavos 1

    Tiago Tambelli tenta dar um viés de maior inserção ao redor das manifestações contra o aumento da tarifa , evento que ocorreu na maioria das metrópoles brasileiras Filmado a partir das câmeras que registravam o que ocorria no entorno dos tumultos, a métrica e edição se assemelha bastante com o que foi visto no documentário Praça Tahrir, narrando os acontecimentos a partir das sensações que o jovens militantes tiveram ao viver na pele o enfrentamento com as autoridades.

    A câmera flagra a expressão atônita dos policiais, algumas vezes reagindo hostis ou completamente acuados na frente das filmagens, quando não, em uma amálgama dos dois comportamentos. A luta do povo contra o povo parece comprimir o cidadão comum, o homem que vive a rotina de trabalhador explorado perseguido quando finalmente reage aos séculos de compressão que sempre sofreu.

    O conteúdo registrado contém uma veracidade ímpar, reunindo pessoas comuns em torno de ideais díspares. A parcela populacional inconformada era multifacetada, formada por jovens, velhos, brancos e pretos, alguns a favor de baderna, mascarados, depredando propriedade pública para chamar a atenção a sua causa e outros tantos pacifistas. Ambos os lados eram respondidos com sprays de pimenta, borrachadas e bombas de gás de efeito moral, além de infelizes disparos a queima roupa.

    A lama e o caos presente nas cenas de arrombamento remetem a momentos de guerra, diferentes das recentes manifestações falsamente pacíficas pela mídia com cenas bem distintas de fotos de policiais abraçando crianças. O que se vê pelas ruas de São Paulo é  a perseguição de militares agindo violentamente contra os manifestantes, ao som do irônico hino nacional, fruto dos versos que diziam: “verás que o filho teu não foge a luta”, lamentando que não há mais aqueles que se deitam eternamente em berço esplêndido.

    Tambelli não se incomoda em mostrar o espancamento que alguns militantes realizam contra os policiais, fazendo valer a resposta igualmente violenta que sofreram no começo. A truculência ocorre entre manifestantes, motivado pelos militantes que agridem os que tomam atitudes partidárias. Setores mais reacionários queimam bandeiras do PT, CUT e qualquer referência vermelha da foice e martelo. A visceralidade é parte do caráter da edição, nem um pouco complacente com os alvos biografados, exibindo fogo, sangue e revolta, nem sempre pensada.

    Não há  qualquer alívio para nenhum dos dois lados também pela dificuldade em distinguir quais os gritos são mais elevados ao lado esquerdo ou direito do quadro político brasileiro. O fato do país não ter qualquer tradição popular em manifestações faz com que a demonização destes gritos seja comum por parte do povo mais conservador e especialmente pela parcela midiática que se vale da manutenção do status quo para manter sua audiência intacta.

    A simbologia presente no ato de queimar uma roleta de ônibus resume o motivo de estopim, iniciado pelo conhecido Movimento do Passe Livre. O desfecho do documentário não passa uma mensagem final, sendo difuso como foram a maioria das tardes e noites onde se ocuparam as principais avenidas de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e outros, o qual o foco era em uma revolta, formado na maioria por jovens, pobres, que não aguentavam mais a exploração calada, destacando que o respeito só deve ser entregue a quem o pratica.

  • Crítica  | Depois que o Pornô Acaba

    Crítica | Depois que o Pornô Acaba

    Depois q o Pornô Acabe 1

    A primeira cena do documentário apresenta uma família normativa, com uma mãe amorosa respondendo os anseios da filha, ajudando-a com um computador cor de rosa, que remete a uma infância feliz e idealizada, livre de qualquer controvérsia maior do que o escopo conservador do americano médio pode ter. A rotina vivida pela mulher focada pela câmera é a mesma de muitos dos que se aposentaram da indústria de filmes adultos, de pessoas que serviram de inspiração para muitas fantasias voluptuosas de pessoas comuns, cujos gostos variam absurdamente.

    A ascensão destes profissionais ao “mundo real” quase sempre é traumática, uma vez que os mesmos que consumiam seus produtos, refutam a presença das pessoas dentro do mainstream, sofrendo a dura repressão do conservadorismo exacerbado, que normalmente esconde a hipocrisia latente. A escada emocional que a trajetória destes exibe é uma fama efêmera, em um momento em que são os artistas tratados como deuses, correspondendo a cada pulsão e tensão sexual do homem, para logo depois ser lançado a um limbo existencial, que ou os exclui ou os trata como lixo. Todo esse ideário é exibido com menos de um quarto de hora.

    Uma faceta assustadora se demonstra nos contos de fãs dos filmes hardcore, com revelações de tentativas de estupro e demonstrações de violência física ou ameaça destas, impingidas principalmente sobre as atrizes mais famosas. A cultura do estupro se manifesta também no pensamento do estadunidense, fortificada pelo uso contínuo da deseducação geral, acompanhada ou não de drogas, que facilitam o pior da alma e mentalidade a aflorar, claro, somente revelando o que já habita suas combalidas e torpes consciências.

    O mundo normativo costuma excluir aqueles que por motivos mil não se enquadram no padrão de moralismo, especialmente os que tem a vida sexual ativa desde cedo. A indústria pornô serve como um norte para muitas dessas pessoas, e a conclusão é tirada após falas das celebridades do meio, como Amber Lynn, Mary Carey, Asia Carrera e tantos outros. A origem em clubes de strippers e de gravidez indesejada são terrenos profícuos para uma pré-vida pornográfica, sem falar da óbvia fonte vinda da prostituição. A tendência de uma rotina de exageros e uso contínuo de drogas é fortificada por alguns dos entrevistados, que até destacam que em muitas outras profissões isto é comum, mas que nesse gênero, é quase uma regra, dada a rejeição extrema que estas pessoas sofrem, além do desesperador conceito de ter sua intimidade exposta, para uso alheio, tendo como retribuição a pecha de que o que elas praticam é na verdade um crime, aos olhos dos pregadores da moralidade.

    Em determinado ponto, até por condições financeiras paupérrimas, datado do avanço da internet, muitos dos atores veteranos precisaram sair, por perder espaço e por ter dificuldades em equilibrar as contas, uma vez que o cachê passaria a cair em consideração ao número de horas em que estariam expostos. A fuga era quase sempre malfadada, encontrando a maioria refúgio em ambientes religiosos, que aparentavam ser sensíveis às suas necessidades monetárias e emocionais.

    Assim que se retiram do ambiente fechado dos filmes XXX, os atores são massacrados pelos mesmos que se masturbavam com eles, em uma vingança puramente invejosa e falsamente ideológica, de quem tem dificuldades até em se aceitar, por isso, persegue aqueles que um dia lhe propiciaram prazer. A equação proposta pelo diretor Bryce Wagoner mira em múltiplos possíveis culpados, sem decidir enfim qual é pior, o trabalho pornográfico ou os consumidores, elevando a vítima somente os profissionais que tem sua carne e ideias expostas, pois suas imagens invariavelmente estarão associadas a uma prática que prossegue vista de modo satânico.

    Aos entrevistados, o que resta são as famílias que construíram, quando muito, já que a pele deles é tão falha e sujeita a doenças mortais, desde as DSTs até câncer. Incrivelmente, após tantas lágrimas, a maioria dos depoentes exibe vidas corriqueiras inspiradoras, com herdeiros que a abraça, ao contrário do que os progenitores fizeram. O paradigma apresentado ao final da montanha russa emocional presente em After Porn Ends é até otimista, ante todas as desgraças mostradas em tela, fechando de modo agridoce a fita polêmica, que discute o quanto o sexismo é prejudicial ao espírito humano, em um retrato de uma faceta comumente ignorada na pós-modernidade.

  • Crítica | A Fotografia Oculta de Vivian Maier

    Crítica | A Fotografia Oculta de Vivian Maier

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    A Fotografia Oculta de Vivian Maier (Finding Vivian Maier, EUA, 2013, Dir: John Maloof & Charlie Siskel) apresenta uma personagem peculiar e até então desconhecida do público: uma babá e empregada doméstica que está redefinindo todo o conceito de fotografia urbana do século XX.

    John Maloof acabou descobrindo o trabalho fotográfico de Vivian Maier por acaso em um leilão e passou a promover um resgate artístico, por meio de galerias e museus, e pessoal, através de depoimentos de uma amiga e dos adultos que eram as crianças que ela cuidou.

    A narrativa do filme escolheu apresentar o resgate do diretor pelas suas fotos: desde os negativos não revelados no leilão, disponibilizá-las na internet, contactar museus e galerias, até começar a vendê-las em mostras. Isso dá a chance ao espectador entender o impacto que o trabalho de Vivian Maier teve no final dos anos 2000. Porém, ao ser o narrador e apresentador do filme, e enfatizar a sua importância no processo, John Maloof cai no erro de tentar virar um personagem tão relevante quanto o seu objeto de pesquisa.

    Uma das partes mais interessantes é quando outros fotógrafos de renome começam a analisar as fotografias, e a partir daí que vemos a importância do trabalho de Vivian Maier como registro urbano do séc XX. A fotógrafa é praticamente uma jornalista de imagens, em especial das classes média e média baixa e principalmente dos mais pobres. É ali que vemos a moda, os costumes, o jeito de agir das pessoas durante as décadas que se passavam.

    Outro acerto do filme é quando o diretor passa a procurar pela pessoa. Quem é Vivian Maier? Como ela conseguiu tirar essas fotos? Como uma babá e empregada doméstica conseguia tirar fotos na sua Rolleiflex, a máquina fotográfica alemã que não precisava ficar na altura dos olhos. Com isso, Vivian teve a possibilidade de registrar as pessoas e situações urbanas sem que estas percebessem.

    No entanto, a maior falha do documentário é não informar ao espectador como as fotografias se tornaram um objeto complexo, e que esta questão está gerando um processo de direitos autorais dos mais complexos dentro dos Estados Unidos. O filme narra a ida do diretor até uma cidade francesa para encontrar o parente mais próximo de Maier, mas não é suficiente. Um advogado e fotógrafo amador de Chicago entrou com um processo contra o diretor justamente para impedi-lo de lucrar com os direitos autorais de outra pessoa e rebate a sua versão; ele acabou encontrando outro parente próximo de Vivian em outra cidade francesa.

    A Fotografia Oculta de Vivian Maier é um filme com alguns problemas em sua concepção, mas merece ser visto por quem se interessa pela fotografia não só como registro de época, mas também como obra de arte.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | A Vida Privada dos Hipopótamos

    Crítica | A Vida Privada dos Hipopótamos

    A Vida Privada Dos Hipopotamos 1

    Através de uma proposta pouco usual para um documentário, Mariana Bühler e Matias Mariani dirigem a sua versão para a biografia do prisioneiro norte-americano Christopher Kirk em terras brasileiras, através de uma louca história de amor. Kirk estava recluso e somente aceitou a proposta para “posar” em A Vida Privada dos Hipopótamos após os diretores aceitarem sua condição, a de contar, ele mesmo, a história, emprestando arquivos pessoais de vídeo para incrementar a versão final.

    Kirk era um ótimo contador de história, e do seu modo ele poetiza a própria jornada que protagonizou. A origem do nome do longa sugere um dos seus muitos causos sobre os animais marítimos que Pablo Escobar cuidava, e que teriam sido o único legado que sobrou após a morte do empresário da droga. Os tais hipopótamos só não eram mais curiosos que a história da tal colombiana meio asiática que capturou sua atenção. A moça, chamada V., conheceu Kirk pela internet, no início do advento dos chats de conversas particulares, e sua rotina seria tão irreal que justificaria toda a comparação do entrevistado ao boneco de madeira Pinóquio.

    Há um cuidado genuíno por parte dos cineastas em não referenciar tão diretamente o que o levou a ser indiciado pela lei. Outro aspecto interessante, e que somente foi acrescido após a pós-produção, foi o acesso ao HD de Christopher, investigando sem restrições a origem das ideias por trás do objeto de análise. Não há pudores da parte do prisioneiro em detalhar o seu processo de paixão e rendição, tampouco vergonha em declarar como era usado, apelando a um coitadismo resignado, que não usa de todos os adjetivos para se declarar vítima, mas que ainda assim se põe em constrangedoras situações.

    Os amigos de Christopher oferecem um bom parecer sobre todos os relatos. Chamado de “Goose”, revela-se uma intimidade bastante diferente das facetas vistas nos inúmeros documentários lançados anualmente pela indústria. A sucessão de fatos descritos permitem uma interpretação do sentido da vida, como as opções de enganação que o homem escolhe, seja pelo comércio do mercado de trabalho, que suga a vida dos seres até sua aposentadoria, ou pelas curvas de uma mulher fatal, que entorpecem a mente, coração e um conjunto de sensações.

    O contato com Chris é interrompido, e a edição do filme compreende a apropriação de vídeos filmados pelo próprio em um audacioso ato de fuga. Buehler e Mariani trazem à luz uma persona engraçada e fajuta, rica em cada detalhe de sua intimidade e intrigante e carismática presença, tão magnética que é capaz de reunir toda atenção possível em volta de si, fazendo valer cada esforço executado na produção do diferenciado documentário.

  • Crítica | Zapata Vive

    Crítica | Zapata Vive

    Zapata Vive 3

    Investigando a origem dos movimentos que levaram à revolução mexicana ao seu apogeu, Matias Gueilburt põe à prova toda a sua experiência em registrar eventos populares pela América Latina. Zapata Vive é um pequeno retrato do México do fim do século XIX, retratando o quanto a classe rica e dominante controlava, por meio de uma escravidão velada, o mercado de trabalho no país, com seus valores irrisórios de salários e a falsa impressão de que o proletário se autossustentada.

    Com delicadeza, o realizador argentino registra o começo da vida do principal biografado, Emiliano Zapata, desde seu nascimento no bairro pobre de Morelos até a ascensão política, que o levaria a se destacar contra a ditadura de Porfirio Diaz. Os relatos de pensadores e cidadãos comuns do país reforçam o ideário de herói histórico e libertador de cativos, comum ao ativista que buscou a todo momento a luta contra a escravização de seus convivas.

    O modo como são conduzidos os relatos é diferente do modo normalmente utilizado nos documentários estadunidenses. Gueilburt não perde tempo em destacar seu lado pelo óbvio viés de sua carreira, pródiga em destacar movimentos de protesto anti-imperialista pela América Latina, como foi antes com Democracia e A Revolução Mexicana, sendo este Zapata Vive semelhante ao último citado, servindo como continuação do assunto.

    O resgate não é só ao ícone histórico, mas também à intimidade do homem e a desconstrução do mito heroico, exibindo facetas humanas e sentimentos do ativista, com declarações de seus descendentes diretos. Em suma, as entrevistas retratam a exacerbada humanidade de Zapata atribuindo a imortalidade não à condição de figura inquestionável, mas sim à capacidade de um homem de carne e osso conseguir atingir os feitos libertários e humanitários sem abrir mão do fator homem, resumindo em si todo o conteúdo que deveria estar presente no cerne do ideal da revolução.

    O intuito do diretor é focar o histórico de revoluções dentro do imaginário popular do México, diferentemente da realidade brasileira, para se ater a um exemplo próximo. Zapata tem em seu maior mérito – segundo a fita – a semeadura da luta por direitos por meio das ações da própria plebe, fazendo com que o comportamento de tomar as ruas através de protestos não seja visto como tentativas vândalas de tomadas de poder, e sim como representação legítima do cidadão. Assim, essa classificação não se dá somente quando os vieses são abraçados pela mídia popular, até porque a realidade do México é bastante diferente.

    Historiadores e religiosos convergem em opinião sobre como funciona a sociedade mexicana, que não tem tantas diferenças ou rixas entre si, entre outros motivos, por Zapata e Pancho Villa lutarem por sua pátria, ou sobre os ecos das ações do Exército Libertador nos anos 1920. A vida após a morte de Emiliano é narrada e recontada pelo emocionado documentário, que cumpre bem a função de memória afetiva e de introdução à biografia do líder político e libertário.

  • Crítica | Tarja Branca: A Revolução que Faltava

    Crítica | Tarja Branca: A Revolução que Faltava

    Tarja Branca 2

    Tarja Branca usa a lucidez humana para aludir o exercício  simplista de brincar, incorporando em ações a ingenuidade típica da infância, para libertar a sensação de nada ter a fazer além do próprio desejo. Os entrevistados do documentarista Cacau Rhoden tem profissões diversas, tendo em comum a volúpia pelo ato de brincar, que filosoficamente, se iguala a um ato científico, explicado como uma necessidade humana empiricamente, comumente ignorado pela vida adulta.

    A definição prematura dos seres simples é de que brincar é sinônimo de alegria espontânea, a manifestação da alma, a mais pura essência do ser humano sendo plenamente humano. Após as falas práticas, especialistas teóricos, entre psicólogos e filósofos confirmam as palavras das pessoas simplórias, que a priori, nada têm a oferecer a não ser suas vidas e sentimentos. O “deixar viver” faz parte da matemática inexata que rege a existência, como condição natura, irremediável e prazerosa do que forma o ideário do sujeito comum.

    A criança vive pelo impulso, sua tensão e tesão está na pesquisa do mundo, o olhar criativo tem a ver com o ato de brincar, da unidade do homem com a natureza, perdido logo após a puberdade, na maioria das vezes. Sentir, querer, viver além das necessidades puramente obrigatórias. A criança viver sem qualquer discurso recalcante, que tende a driblar os aspectos comerciais, claro, quando se consegue evitar ser alvo da publicidade, com o capitalismo predatório sendo implantado desde cedo, que entre outros aspectos, visa matar o nível elementar da criação feito pelos infantes.

    O costume educacional de cercear as brincadeiras naturais restringe a criatividade e até a felicidade futura do pequeno ser humano, ao menos de acordo com os depoentes, que visam com suas palavras e testemunhos, valorizar mais esse exercício, permitindo aos pequenos ter contato com a natureza de ser quem ela é, constituindo uma revolução comportamental, que ajudaria a formar uma sociedade um pouco mais otimista, em uma dimensão humana que não deixa de ser realista por jamais ter perdido contato com a veracidade do que é existir.

    A vida adulta é comumente associado ao cativeiro, já que o brincar partia também do comum ato dos negros brasileiros, escravizados pelos brancos europeus. O ato de não dar vazão a pulsão da infância faz limitar a imaginação, o senso artístico e a vontade ser e fazer.

    O retrato pintado por Cacau Rhoden é acima de tudo uma ode ao galhofar, aos gracejos que têm a sua base na fase inicial da vida, um milagre vivo, que deveria ser, segundo o documentarista e seus mentores – entrevistados – exemplo para todo o restante da vida e existência, onde as preocupações não sufocam o livre existir. Tarja Branca é um conjunto

  • Crítica | Supermensch: The Legend of Shep Gordon

    Crítica | Supermensch: The Legend of Shep Gordon

    Supermensch 1

    A investigação sobre o  sucesso de Shep Gordon é bastante aventuresca, em Supermensch. A persona do empresário, um dos mestres da indústria norte-americana de entretenimento, tem um cartel de clientes (e amigos) dos mais influentes do showbusiness, como Alice Cooper, Michael Douglas e Mike Myers, o qual assina a direção do documentário. Logo de início, são feitos grandes elogios a sua figura, da parte de artistas que têm presença constante, pessoal e profissionalmente, em sua vida.

    Myers escolhe imagens relacionadas às falas de Gordon e filmes populares para preencher as lacunas, quando não há imagens ou fotografias próprias, fazendo com que o biografado seja retratado de forma ainda mais interessante, referindo-se a diversas áreas do imaginário popular. O modo errático como Shep se tornou empresário é revelado sem qualquer receio, e faz relembrar os primeiros e malfadados espetáculos de Alice Cooper, que na verdade eram pretexto para o protagonista vender seu estoque de drogas. Seguindo seus instintos, o futuro empresário trabalhava de forma que o diferenciasse dos managers comuns, apresentando uma interação com o público bastante diversa.

    A quantidade de aventuras bizarras em que o agente e Cooper se enfiavam, e dos mais variados tipos e gostos, era vasta. A rotina bizarra de um rockstar era também vivida por ele, sendo o entrevistado o catalisador da maioria dos fatos tresloucados lidos ante a câmera, desde a morte de uma galinha em pleno palco, até transgressões comerciais nos discos de vinil vendidos nos anos 1970 e 1980, sendo fonte de inspiração para alguns dos casos mostrados no filme Quase Famosos, de Cameron Crowe.

    A persona de Shep é demasiado dionisíaca, peculiar e divertida. Toda a abordagem criativa idealizada por Myers torna a fita um objeto caro e terno, com um ritmo que bastante se diferencia de seus primos do gênero. Uma obra divertida, colorida e cujo entretenimento se equipara ao montante de informações dadas em pouco tempo de tela. O formato consegue adequar-se ao roteiro, além de emular perfeitamente a trajetória trôpega moralmente e cheia de destruição de tabus e auges comerciais da carreira de Gordon. O filme também se faz perfeitamente como o retrato de uma época, onde a autodestruição com entorpecentes e boemia não era tão mal vista.

    Shep era conhecido por realizar festas extravagantes, gerando crossovers interessantes entre celebridades, com amizades improváveis iniciando-se através de seu estilo de vida. Sua relação com causas nobres caracterizava-se por muitas realizações, desde a idealização de eventos beneficentes, que ajudavam os infectados pelo vírus HIV, até causas pessoais que envolviam famílias próximas de sua casa na praia, financiando estudos de uma família inteira e atuando como pai e patrono.

    A figura de nice guy, relacionada ao comportamento e modus operandi de Shep Gordon, é flagrada de modo quase poético, tal é a paixão de todos os que falam do personagem central: uma pessoa dionisíaca, mas essencialmente terna, amada por todos que o cercam. Supermensch é um retrato agridoce de uma biografia nada chapa branca, que consegue exalar a mesma simpatia de sua figura de análise, sem soar forçada ou panfletária.

  • Crítica | Woody Allen: Um Documentário

    Crítica | Woody Allen: Um Documentário

    A evolução de um artista se mede pelo catálogo conjurado ao longo de tantos anos. De lá pra cá, uma lista que atesta o gênio de um comediante não pode ser menos que homérica, ou mais digna de ser debatida, filme por filme, num documentário feito sob medida a fãs, estudantes e curiosos sobre a vida (e obra) de Woody Allen, o criador dos monólogos, diálogos e de toda a comédia mais textual que visual de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (seu melhor filme), Memórias e Meia-Noite em Paris. Uma mente a serviço de um gênero que dedicou sua vida a aprimorar, muito além do estilo de comedia americana, das lições de Buster Keaton, Charles Chaplin e os lendários irmãos Marx, a trindade que ainda tanto espira Allen em sua máquina de escrever, de onde saíram seus mais de 50 roteiros, sem exceção ou afetações tecnológicas. Ao costurar a vida de um artista, o jornalista Robert B. Weide, fã do humorista, não escapa do humor leve e afiado de seu ídolo no ritmo de seu filme, e tampouco esquece que ninguém é perfeito.

    A tarefa de mistificar Woody Allen e ser justo, ao mesmo tempo, com os altos e baixos da carreira de quem faz praticamente um filme por ano, há quase oito décadas, nunca seria fácil. Reunindo velhos amigos como Diane Keaton e Mia Farrow, as duas musas do judeu inseguro e inquieto, tal qual Penélope Cruz e Scarlett Johansson, um pouco de sangue novo, entrevistas inspiradas pretendem mais revelar que comentar, expondo a arte mais nobre dos documentários a favor da reflexão: levar o fato ao público e deixá-lo ruminar, sem condicionar o rebanho a uma única opinião. E igual nossa relação de amor e ódio com os loucos e normais personagens criados pelo artista, aos poucos vamos descobrindo segredos e resgatando fatos, interessantes o bastante para merecer o registro, de uma vida tão polêmica quanto produtiva, ainda que parcial aos talentos e desejos de Woody. O próprio Martin Scorsese, colega desde os anos 70 (Taxi Driver e Noivo Neurótico, Noiva Nervosa são clássicos da mesma época), admite que poucos têm tanto a dizer quanto a mente por trás de A Rosa Púrpura do Cairo, Zelig e A Era do Rádio.

    Das mãos de onde saíram tantas reinvenções de um gênero que não se limita mais, também pela contribuição inteligente do cineasta, a provocar apenas aquela risada fácil, Woody Allen: Um Documentário nos remete a lições extraídas dos filmes, dos livros e da carreira que postula e converge numa vida curiosa, voltada à análise das emoções humanas, das traições entre casais, dos laços familiares, das fugas ao passado, do desejo pelas mulheres, das paranoias de viver em sociedade, universos inevitáveis nas histórias do autor. Elevar ao hall das lendas esses aspectos é tarefa de fã, o que certamente torna mais doce o desafio, ainda que incompleto, de emoldurar carreiras tão prolíficas numa obra que vai do jazz à psicologia, sendo divertido e deliciosamente previsível, como pede o figurino. Imagine um documentário sobre Scorsese (o que já está na hora de acontecer): o culto a diversidade cultural e a violência qualificada seriam omitidas? Resposta óbvia.

    Seria loucura afirmar que o documentário de Robert Weide não tem lugar entre os livros sobre o artista, em especial o hilário e amplamente pessoal Conversas com Woody Allen, da editora Cosac Naify, livro-chave para conhecer mais a fundo o que move e mantém na ativa a ostra octogenária que, com suas pérolas, nunca subestimou a inteligência do público. Um documentário quase à altura das fases do ídolo, se não a falta de precisão entre a arte da pessoa, e a pessoa da arte. Se o homem vale mais que o mito, ou vice-versa, o filme não se dá o direito de concluir essa questão, à margem de nosso juízo a partir dessa pendência, dessa falta de postura e coerência. Destaque, mesmo, ao equilíbrio entre o que é lendário na carreira de Allen e o simplório, tal seu platônico amor por sua eterna parceira: uma clarineta.

  • Crítica | Mr. Untouchable

    Crítica | Mr. Untouchable

    Mr Untouchable 1

    O documentarista especialista em cultura afro-americana Marc Levin se mune de sua experiência anterior em Slam, Gang War: Bangin’ in Little Rock e Uma História de Amor ao Brooklyn, além é claro de sua obsessão por histórias do gueto estadunidense. Sua análise é focada em Leroy “Hypnosis” Nicky Barnes, uma poderosa figura no Harlem, responsável principal pelo tráfico e consequente mania e comércio de heroína entre os usuários de Nova York. Chamado de O Poderoso Chefão Negro, Barnes era considerado Intocável, como foi chamado um dia Al Capone.

    O modo de operar de Hypnosis era mais selvagem do que os de seus colegas de conglomerados anteriores do crime. Os métodos mais violentos garantiam a si uma aura de ser imperdoável. Sua colocação enquanto chefe do crime o distanciava de seus semelhantes, dando ainda mais ambiguidade a alcunha de intocável. Através de um número encenado, Barnes é mostrado falando direto a câmera, citando possíveis dúvidas morais do contraventor, especialmente no que tange ser ele ou não um instrumento dos homens brancos que fortificaria a idéia de que os negros eram menos evoluídos e inferiores.

    A violência das ruas é muito bem flagrada, mostrando fortes cenas de corpos dilacerados, cadáveres que habitam com um vermelho predominante os cinzas das ruas nova-iorquinas, efeitos de uma guerra por poder, que normalmente vitima os cidadãos de cor americanos. A ostentação de poderio financeiro e de influência de Barnes aproxima-se de uma afronta considerando a quantidade de pessoas que tombam ao seu redor, membros da mesma classe social e racial dele, e que mesmo perdendo muitos em suas fileiras, ainda é capaz de idolatrá-lo.

    O fato de ser capa de revistas, normalmente palco para as peripécias dos cidadãos brancos, o elevava a um patamar de fama não antes visto, pondo em um hall de fama que continha tantos outros negros ilustres, fazendo dele uma figura tão conhecida quanto heróis e ativistas da causa racial. A prisão dele, em virtude dos exageros de sua gestão, deram a ele uma aura de mártir, ainda que completamente imerecido.

    Marc Levin se esforça grandemente para não vitimar o analisado, até por este jamais ter se visto deste modo. Os crimes de Hypnosis não são ignorados ou aplacados, tampouco seus defeitos. A trilha sonora, repleta de soul, rap e jazz proporciona uma imersão no black world onde Barnes se inseria, mas não o glamouriza, tampouco o isenta de seus crescentes atos de vinganças, fazendo dele algo entre o anti-herói americano e o típico herói falido, protagonista de uma tragicomédia que tem no não riso seu maior trunfo com o público.

    A gravação exibida ao final, com a voz de Nicky Barnes declarando sua culpa, não tentando em momento nenhum se desculpar pela delação, é toda contemplada por uma mensagem de tentativa de redenção, igualando a sua trajetória a dos injustos, ignorando completamente os que sempre estiveram com ele. De certa forma, exibe uma faceta egoísta, mesmo que em seu discurso haja um apelo para que a juventude não cometa os mesmos erros que ele. Ainda assim, Levin não o trata como um crápula ou como um bandido simplesmente, destacando toda a intimidade, degradação e meios tons de sua biografia.

  • Crítica | Brava Gente Brasileira

    Crítica | Brava Gente Brasileira

    Brava Gente 1

    Distribuído no ano 2000, às vésperas de um novo milênio, a realizadora Lúcia Murat entrega um drama, que retrata a relação conflituosa entre os índios nativos brasileiros e os portugueses colonizadores, nos idos do século XVIII. O começo mostra uma tribo quase toda formada por mulheres, que falam em um idioma indistinguível para os europeus, os quais erroneamente associavam as falas a balbucios sem sentido, uma falha de compreensão que se repetiria na relação com os habitantes que eram julgados como selvagens.

    O retrato pintado ao redor do índio é de um guerreiro poderoso, semelhante ao visto na literatura de José de Alencar, especialmente em O Guarani, que retratava o nativo como uma espécie de cópia dos heróis dos romances europeus de cavalaria. No entanto, a visão idealizada do povo nativo é logo quebrada com as intensas batalhas entre os asseclas do governador e os membros da tribo, com cenas que resumem bem a prática nefasta dos poderosos, explicitando crimes como estupro e assassinato a sangue frio, por meio de armas de fogo, normalmente sobre figuras que sequer possuíam armas brancas.

    A interação sexual se dá por meio de seções sem mútuo consentimento, banalizando questões básicas sentimentais e morais. O roteiro desenvolve-se livre de medos, e não faz qualquer cerimônia em problematizar o modus operandi dos exploradores portugueses e tecer críticas ferrenhas aos brasileiros nascidos já sobre a influência branco-europeia, que não veem qualquer semelhança com os índios, ao contrário, defendem os desejos dos mesmos poderosos que os escravizam de modo nada velado a troco de poucos privilégios dentro das províncias.

    A questão do apartheid é fortificada pelo personagem que não consegue esconder visualmente o fato de ser mestiço. O jagunço Capitão Pedro é racista e tem orgulho disso. A barba proeminente de seu intérprete, Floriano Peixoto, busca esconder uma pele mais escurecida, mas a mentira não se sustenta ao se verificarem os cabelos encaracolados, normalmente cobertos por bonés e chapéus. Há inclusive o cuidado de mostrar o Capitão agindo de modo terno, com um rapaz branco que ele resgata, mostrando que a capacidade do capitão se humanizar só é evocada quando está em companhia de seus iguais, um artifício bastante comum em meio aos que segregam.

    No entanto, a compreensão e comportamento dócil somente são mantidos enquanto o rapaz age de modo submisso, diante de qualquer mostra de rebeldia ou discordância, a truculência retornar, como eco típico da barbárie que é capaz de fazer decepar as mãos dos “inimigos” indefesos.

    O contraponto ao comportamento de Pedro, dentro da aldeia branca, é visto na interação do lusitano Diogo Castro e Albuquerque (Diogo Infante) com a capturada Ánote (Luciana Rigueira). Mesmo os relacionamentos entre as raças, vistos no início como uniões sentimentais e amorosas, logo revelam sua real identidade de exploração sexual, vinculada quase necessariamente a dogmas religiosos, que, por sua vez, remetem à catequização imposta pelos colonos no Brasil e em toda a América Latina. O roteiro de Murat não tem pudor em mostrar a hipocrisia latente no ethos dos preconceituosos homens brancos, que tinham no discurso um acintoso ódio aos Guaicuru, mas que na intimidade, lançavam sua força para cometer abusos contra as moças da tribo.

    O revide, mostrado em detalhes no final, serve de alento aos Kadiwéu, os únicos sobreviventes após o tratado de paz e que atualmente habitam uma reserva no Mato Grosso do Sul dedicada à memória dos muitos que sofreram nas mãos dos portugueses. O movimento é uma ode à luta para subsistência da tribo, que até hoje sofre reprimendas e arduamente briga para manter sua cultura própria, pontuada de modo bastante interessante em Brava Gente Brasileira.

  • Crítica | A Nação Que Não Esperou Por Deus

    Crítica | A Nação Que Não Esperou Por Deus

    A Nação Que Não Esperou por Deus 1

    Retornando ao cenário de Brava Gente Brasileira, a diretora Lúcia Murat, acompanhada de Rodrigo Hinchsen, registra a rotina dos membros da tribo Kadiwéus, começando por uma fala sobre a intervenção do Divino na criação dos homens e na distinção de poder ocorrida entre os brancos europeus e as tribos indígenas brasileiras, que insistem em viver suas vidas ao modo de sua própria cultura, amalgamada com alguns costumes e ditames modernos. A Nação Que Não Esperou por Deus esmiúça os rastros do sincretismo religioso que predominou no Brasil colonial e que ainda hoje encontra resquícios na população.

    Lúcia narra alguns pedaços da fita, relembrando as experiências da feitoria do filme de 2000, comparando suas sensações com as descritas por Levi Strauss ao também encontrar os Kadiwéus, por ver que a obra superou quaisquer expectativas prévias suas, emocionando-a ao ponto de faze-la voltar ao lugar que antes usou como base para seu longa ficcional, fato não tão comum em meio a sua filmografia.

    O mote de A Nação Que Não Esperou por Deus é a discussão sobre a posse das terras, onde habitam os descendentes dos antigos Kadiwéus. O espaço no Mato Grosso do Sul foi cedido há muito tempo ao povo, e as terras sofrem atualmente questões complicadas de litígios, graças a fazendeiros que tentam legalmente ganhar os direitos de residência no local, via disputas judiciais desiguais, uma vez que eles têm um poderia financeiro bem maior o dos nativos.

    O escopo utilizado na investigação fílmica inclui momentos de amenidade também, não só flagrando momentos difíceis das tribos, até para emular a realidade e rotina dos descendentes dos nativos. É curioso notar como é a relação entre os atores que fizeram parte do elenco de apoio de Brava Gente Brasileira, analisando como é a vida privada destes.

    As câmeras registram um acordo feito entre as lideranças das tribos e os pecuaristas, que buscam um armistício, que num primeiro momento é respeitado, mas com o tempo, passa a ser desrespeitado, em alguns momentos agindo até com desfaçatez, sem esconder os rastros de ilegalidade, manuseando arrendamentos e apropriações por parte dos agentes da pecuária sem qualquer receio de ter a justiça contra si, uma vez que seriam eles bem mais ligados aos barões da lei, mesmo que as lideranças indígenas fosse bastante versadas na cultura e direito brasileiros.

    O viés escolhido por Murat em A Nação Que Não Esperou por Deus é o de não concluir os temas, e apesar de obviamente pender para a defesa dos Kadiwéus, não há uma demonização dos homens brancos, tampouco há qualquer resquício de maniqueísmo tolo ao tratar das condições de vida dos remanescentes da antiga cultura, que até por não se vitimizarem, não são dignos de qualquer coitadismo. A cena que encerra o documentário e mostra os créditos é prodigiosa em remontar a modernização pelo qual sofreu aquele povo, sem deixar seus costumes de lado, mantendo viva e acesa identidade cultural dos mesmos.

  • Crítica | Sem Dentes: Banguela Records e a Turma de 94

    Crítica | Sem Dentes: Banguela Records e a Turma de 94

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    Você se lembra de que, quando numa conversa, o assunto caía em música brasileira dos anos 90? Provavelmente vai pensar em Tchakabum, É o Tchan, Leandro e Leonardo, Daniela Mercury, Mamonas Assassinas, entre tantos outros grandes hits que passavam na TV e tocavam no rádio.

    Sou de 92. E isso não ia dizer nada, a não ser pelo fato de que sou uma toupeira quando o assunto é música nacional. Do pouquíssimo que conheço, não está nem longe de ser relacionado a rock. Então, qual foi o aproveitamento em ver algo como Sem Dentes: Banguela Records e a Turma de 94? É difícil dizer que não foi 100%.

    O documentário, dirigido e roteirizado pelo jornalista Ricardo Alexandre e por Alexadre Petillo, inicia sua primeira tomada trazendo exatamente os grandes chavões que fizeram a década de 90: axé, sertanejo, o presidente Collor e a banheira do Gugu. Tudo isso para nos dizer, ao longo das próximas duas horas, que o todo realmente é muito maior que o buraco musical que muitas vezes é vendido pelos principais veículos de comunicação do Brasil, como a TV e o rádio, principalmente com o rock, que é o protagonista dessa história. Sem Dentes na verdade vem para comemorar e registrar 20 anos da Banguela Records, selo independente da Warner Music do Brasil, chefiado pela banda Os Titãs e com direção artística do jornalista e produtor musical Carlos Eduardo Miranda. Esse último especialmente fornece muitos depoimentos, não só muito bem humorados, mas ricos em detalhes, e que nos ajudam a construir uma linha do tempo clara que contextualiza a sua participação evidente no cenário musical da época.

    Não somente Miranda mas como o próprio Charles Gavin e Nando Reis dão seus depoimentos inúmeras vezes. Temos muitos comentários e considerações das próprias bandas que foram representadas pelo selo, como Raimundos, Little Quail and The MadBirds, Maskavo Roots, Mundo Livre S/A, além de trazer declarações de jornalistas como André Forastieri, a banda Pato Fu, o vocalista Samuel Rosa (Skank), entre muitos outros. É muito visível, pela quantidade de depoimentos, recortes musicais e a naturalidade com que são feitos, a intenção que o diretor Ricardo Alexandre tem em contar um episódio muito importante da história da música brasileira. Mas mais importante, antes de tudo, é reunir um leque de lembranças que traçam um capítulo da vida de uma geração que está presente até hoje e que precisava registrar dessa maneira o que passou, deixando de lado qualquer possível sentimento saudosista ou certa maneira didática de contar aquela história.

    A importância de criar uma produção cultural independente é um ponto essencial que é passado durante o filme. É de certa forma simples dizer que hoje isso é mais do que óbvio, porém não faz muito tempo que essa dependência de um intermediário em todo tipo de mercado cultural era existente – e não somente aqui no Brasil, como é rapidamente exemplificado na iniciativa da Image Comics nos EUA (também fruto dos anos 90).

    Eu poderia fazer vários comentários sobre todos os detalhes exibidos nas duas horas de vídeo do documentário. Mas, como dito anteriormente, sou uma toupeira nesse assunto. A real importância de Sem Dentes, antes de tudo, foi abrir minha mente para conhecer um pouco mais sobre todo esse universo musical nacional, que é muito rico e para o qual eu nunca olhei realmente. O documentário é fluido, divertido e principalmente instigante sobre os assuntos que ele aborda, e fecha com uma bela homenagem à música Tempestade da banda Maskavo Roots. Espero que seja a porta de entrada de muitas pessoas que, como eu, não fizeram parte de nada disso. Não é difícil encontrar nada hoje em dia.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Crítica | Mad Dog: Inside the Secret World of Muammar Gaddafi

    Crítica | Mad Dog: Inside the Secret World of Muammar Gaddafi

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    Apesar de iniciar-se exibindo os pontos altos e positivos da história do antigo soberano libanês Muammar Gaddafi, o documentário televisivo Mad Dog: Inside the Secret World of Muammar Gaddafi exerce basicamente a função de crítica nada velada a um constante inimigo do Estado americano, tomando por base a opinião pública geral, que praticamente exclui as controvérsias que garantiriam ao “Cachorro Louco” aspectos tipicamente humanos.

    Gaddafi é tratado basicamente como um terrorista. Seu desígnio seria indicar quem passaria pela lâmina estatal, quem tombaria ante sua sabedoria e sapiência. Os relatos dos que foram aprisionados e fugiram para contar suas histórias são simplesmente aterradores, sob uma trilha sonora incidental que martela uma culpa maniqueísta sobre a persona vilanesca de Muammar, reprisando o arquétipo de mal governante persa propagada pelo ocidente, desconsiderando qualquer nuance em seu comportamento ou modus operandi, modo idêntico ao que tantos outros líderes  do Oriente Médio foram retratados.

    O roteiro analisa a quantidade exorbitante de mortes ordenadas pelo líder político, com discursos inflamados da parte dos que sofreram nas suas mãos do cruel regime. O viés de desdém prossegue cada vez maior. O crescimento do nível de críticas ao modo de lidar com seus cidadãos é desmedido e foca na “obsessão” do ditador em providenciar a sua bomba atômica, dita no documentário como uma prática comum e quase obrigatória por parte dos países islâmicos, discurso que associa a estes países a única causa para os conflitos bélicos das últimas duas décadas.

    O panfletarismo não é nada velado: o discurso parece propagandista. Um depoimento totalmente parcial que piora ainda mais ao analisar o desejo de expandir que fez Gaddafi viajar pela África, unindo um sem número de falas pejorativas, dessa vez de seus primos continentais.

    Morte e tortura não são práticas banalizáveis. O discurso político dentro de qualquer contexto interfere demais no ideal, visto que, para que qualquer sistema político e econômico funcione, são necessárias ações e atividades humanas, mesmo nos regimes que exploram trabalho escravo. No entanto, a intenção de Mad Dog: Inside the Secret World of Muammar Gaddafi em invalidar cada um desses comportamentos nefastos acaba se assemelhando mais a uma novela de cunho sensacionalista do que o retrato de um homem cruel. Algo que, em outras palavras, serve para confortar o cada vez mais presente pensamento do americano médio, que apóia a todo custo as ações expansionistas de seus mandatários, ação que na prática pouco diferencia-se do modo de operar do “Cachorro Louco”.

    Um dos poucos adjetivos positivos lançados em tela é a capacidade que o biografado tinha em manter os cidadãos do seu país pensando junto a ele, e que apoiavam até as ordens mais esdrúxulas e fascistas. Tudo graças ao carisma que ele exalava, o que trouxe uma boa razão para Gaddafi ter chegado tão alto e permanecido no poder por tanto tempo.

    Dedica-se muito tempo para fazer um retrato amargo de uma figura controversa, não mostrando qualquer momento de sua humanidade. O intuito do documentário é pintar uma figura maniqueísta de alguém indigno de pena, compaixão ou remorso alheio. Um sujeito de olhos negros, cuja janela da alma só exprime a maldade infinita. Na prática, é o grito popular desmedido e violento; o mesmo discurso de uma multidão ensandecida que busca espancar os que a oprimiam; dos mesmo hipócritas que, até então, não percebiam os próprios erros e que louvavam a figura do Estado maior.

  • Crítica | Os Últimos Cangaceiros

    Crítica | Os Últimos Cangaceiros

    cartaz

    Em 1973, Orson Welles, de Cidadão Kane e Tudo é Brasil, lançou Verdades e Mentiras, filme-documentário onde o real e a ficção se confundem, culminando numa linguagem famosa no Cinema, a metalinguagem, que é quando a arte fala consiga mesma. Brinca, abraça e repudia seus próprios traços. Um exemplo explicado disso está num dos depoimentos de Peões, clássico de Eduardo Coutinho, onde um dos funcionários da Volkswagen, discursando sobre a empresa, aponta que quanto mais antiga a história é, mais fácil é pra convencer o outro, podendo até projetar contornos épicos, afinal, quem conta um conto aumenta um ponto. Se é malandragem ou esquizofrenia, esse papo de misturar mentira com verdade, quem garantia até 2011 que o bando de Lampião ainda tem descendentes vivos? É isso que foram investigar – e filmar.

    Hoje, falar de Lampião é falar de um mito, de Caipora e Boitatá. Sua história virou símbolo e hoje não passa disso, ícone imortal do nordeste brasileiro, lenda nessa e noutras bandas. A saber que quem fazia as estrelas de seu mítico chapéu, em forma de pastel de flango, era o próprio, e que o perfume que cheirava vinha de sua parceira, unida ao cabra por opção e fiel até a morte, Maria Bonita, são duas das curiosidades divertidas de Os Últimos Cangaceiros, a versão documentada e não encenada do clássico O Cangaceiro, filme-fantasia do mesmo cangaço lendário e aventureiro, palco de amores e horrores, cuja essência e registros reais do grupo de Lampião, sempre com sua protegida, o filme de Wolney Oliveira impõe com orgulho e satisfação, tratando quem a fama é reconhecida do Oiapoque ao Chuí, como grande figura nacional. O que acaba sendo, deveras.

    Assistir as reinações da “geração Lampião”, hoje um bando de idosos, é como ouvir no tapete da sala os contos da avó sobre uma vida inteira, vida regada a bala, correria e triunfo para poucos sortudos. Naquela aridez toda, somos convidados a andar com os filhos daquela miséria de Ariano Suassuna, Graciliano Ramos e letra de cordel, carência combatida a ferro e revolta no sangue quente da região. Nas graças do comentário é que Lampião e seus seguidores são reconstruídos, em forma e atitude, com base nos relatos que não encontram contradição, construindo um mural sobre um passado representado, que fez e faz parte de um Brasil ainda recente, de Rocha, Candeias e Nelson Pereira dos Santos, sendo jamais esquecido ou posto de lado. Difícil mesmo é não se emocionar com certas cenas, como o reencontro na velhice de duas sortudas, sobreviventes do sertão, com o tempo marcado na pele de algodão, de rugas. “Tô tão magrinha… cadê aquele bração que eu tinha? Acabou.”

    Lampião era cheiroso, sim sinhô, tanto quanto descendente. Filho do país das hipocrisias, fez da sua história rastro dos fins que justificam os meios. Ainda de acordo com um pesquisador, presente em seu discurso na obra, não há grupo social cujo traje rivaliza com o do cangaceiro, dono das veredas que inspiram seu bem-viver, mas cuja vilania não condiz com a fama, e sim sua resistência. Cangaceiro era resistente, vaso que trinca mas não quebra, enfim suportado, em especial, pelo instinto de sobreviver e o olho do urubu que à maioria fez comida, e os que não fez, se reúnem na tela e tornam Os Últimos Cangaceiros um dos manifestos sobre um período do estado brasileiro (a lenda tem contexto histórico) e sobre o mito. Símbolos do Brasil, mais que heróis e mais que vilões, e tão reais quanto a seca, seus feitos, no pesar das verdades trazidas à tona com grande consciência, sem antônimos, afinal, para atingir a essência da realidade que não mudou tanto, de lá para cá.

  • Crítica | I Shot JFK: The Shocking Truth

    Crítica | I Shot JFK: The Shocking Truth

    Movido por dois sentimentos, I Shot JFK é um documentário que se inicia de forma bifurcada: primeiro pela comoção geral da nação dos Estados Unidos da América ao ver seu político de marca maior ser brutalmente assassinado no alvorecer de seu mandato; e, claro, pela paranoia a respeito da autoria de sua execução. Robert Kiviat foi até a prisão para entrevistar James Earl Files, o acusado de lançar o tiro ao ar. Uma movimentação repleta de mistérios, mesmo na época da produção do filme.

    O sotaque “White trash”, típico do Alabama, dá à narração dos fatos um cinismo atroz, involuntário ante a vontade do personagem investigado. James, de cabelos longos, apesar da notável calvície anunciada em sua fronte, permanece lúcido na prisão, falando de modo enérgico e prolixo, não temendo as câmeras ou seu inquiridos. A coleção de fatos que discursa é incrivelmente rica em detalhes, desde a estranha declaração sobre sua certidão de nascimento, que declarava que ele era morto ao nascer – em seu entender, uma represália do governo –, até o envolvimento do detetive Joe West.

    As declarações de que Files já tinha total fundamento sobre a rotina e trajeto de John Kennedy vem de encontro à óbvia sensação do povo de que tudo foi orquestrado e planejado há tempos, por um grupo maior do que apenas um atirador. Logo, Files declara a participação de Lee Harvey Oswald, negando que o conhecia anteriormente, mas declarando que a rotina pré-assassinato tinha sido tratada por ele, inclusive, em conjunto com Oswald, visitando as locações e medindo as possibilidades de sucesso no tiro que viria de tão longe.

    O envolvimento da máfia com as personas do mandatário Jack Ruby e do operador de campo Johnny Roselli, é dito sem qualquer reprimenda ou receio por parte do assassino confesso. O homem encarcerado conta tudo com uma riqueza de detalhes atroz, sem expressar qualquer arrependimento, já notado à época e agravado em frieza com o tempo. A única nuance é, ao declarar os seus próprios erros, pisar em restos de cigarros quando saiu dos locais suspeitos, fazendo dele um alvo fácil para a investigação.

    O mérito principal de Kiviat não é como cineasta, uma vez que sua câmera pouco se move. Porém, seu talento como entrevistador e sua humildade em deixar seu personagem conduzir a fita possuem méritos, já que I Shot JFK só é digno de nota graças à visceralidade dos contos de James Files. A escolha das cenas de arquivo, que pontuariam cada um dos eventos históricos, oferece essência ao relato, que normalmente seria enfadonho, mas que, na realidade, prende completamente a atenção do espectador  nos noventa minutos de duração.

    A lucidez e certeza de que estava certo fazem de Files um personagem ainda mais intrigante, já que seu forte código moral não o impediu de cometer a atrocidade que fez, e seu conservadorismo exacerbado também não o fez se arrepender, em seu relato. Na mentalidade do acusado, fazia o que era certo, levado – supostamente – por ordens superiores, sendo apenas um peão dentro do jogo que lhe foi proposto, tendo a si a única incumbência de cumprir uma difícil missão, que não poderia ser feita por mais ninguém. No seu entender, ele e Lee Oswald eram patriotas, servindo a sua nação do melhor modo que poderiam.

    Ao comentar suas breves saídas da prisão, o entrevistado destaca a perseguição e algumas tentativas de assassinato que sofria dos policiais, até que uma delas o fez voltar a prisão, em sua opinião, só tendo a culpa amputada a si pelo fracasso da operação. James lamenta não poder conviver com seus filhos, e esse é o único remorso que sente por ter apertado o gatilho em JFK, já que a partir dali sua vida mudaria para sempre. A noção de que John era um mau homem não pertence ao seu pensamento, mas a dúvida não o atrapalha em nada no prosseguimento de sua vida prisional. O resultado final da fita exibe uma persona que se sente injustiçada e não gratificada pelos serviços que prestou. Files é parte da história estadunidense inegavelmente, e uma faceta pouquíssima explorada diante de toda a controvérsia que gerou. O formato do filme permite uma análise aprofundada e mais um capítulo da estranha relação entre forças armadas e governo dos EUA.