Crítica | Dogman
Dogman, filme mais recente de Matteo Garrone, é exaustivo. Dividindo o mesmo cinismo relativo à derrocada moral da população suburbana da Itália com Gomorra, a obra que catapultou seu nome ao co-protagonismo do cinema europeu, trata-se de uma epopeia massacrante sobre o crime e a cultura de intimidação que o cerca – bem como sobre as chances nulas, quase além da compreensão, de dignidade e serenidade por parte de quem abraça esta vida dura a despeito das circunstâncias.
Acompanhando a vida de Marcello (vivido por Marcello Fonte, premiado como Melhor Ator em Cannes por esta interpretação), um fragilizado e simplório tratador de cães em uma decadente cidade costeira não-especificada, Dogman nos insere no contexto quase idílico dos seus dias (cuidar atenciosamente de cães, jogar futebol com amigos, fazer nada na companhia de amigos, entreter a filha pequena, Sofia, que teve com uma mulher com a qual não há mais reparação) mas logo revela a faceta sombria inescapável de alguém detido em um lugar tão impróprio para um cotidiano saudável: por baixo dos panos, Marcello é um traficante. E esta atividade paralela, embora pague por uma convivência mais agradável do que seria esperado para alguém de possibilidades tão ínfimas, acarreta também problemas que excedem a ginga do protagonista para resolvê-los, exemplificados na figura de Simone (Edoardo Pesce, também em grande atuação), um violento e insuportável ex-boxeador absolutamente entregue à cocaína, mais parasita do que cliente, e que Marcello a muito custo consegue manter a uma distância nada segura, tentando evitar ocasionais explosões de implicância e ignorância. Obviamente Simone não tem meios de manter seu vício cada vez mais glutão, mas assim como faz com todos ao redor, ele prensa Marcello com brutidão a esticar a paciência com seus calotes e não tarda a fazer com que o mesmo participe de alguns de seus crimes.
Ao contrário do que consegue fazer com paciência e gentileza com os cães dos quais cuida, Marcello não consegue estabelecer algo além de uma relação de submissão com Simone; a dinâmica entre ambos é a mais sufocante possível, e tanto a integridade física quanto a resolução civil de Marcello parecem sempre a um passo (dado por Simone, logicamente) da implosão completa. Marcello, afinal, é incapaz de se desvencilhar do magnetismo maldito de Simone, conservado através do mais puro bullying – e não somos surpreendidos, conforme a trama avança, quando atitudes mais e mais tóxicas e violentas produzem ocorrências mais e mais arriscadas e danosas, enquanto Marcello é tragado pelo vórtice de destruição que o indiferente Simone deixa como rastro.
Garrone exerce uma precisão absurda pra construir atmosferas e estabelecer personas em seus mergulhos no submundo do crime de baixo clero; dispensando sutilezas mas compensando esta exposição com imensa naturalidade de diálogos (o roteiro é assinado pelo próprio Garrone, junto a Ugi Chiti e Massimo Gaudioso) e situações (méritos de Garrone como diretor, em especial de atores, e dos próprios atores, incrivelmente à vontade em seus papéis), o realizador incrementa vários desdobramentos do longa, que poderiam soar melodramáticos demais, como incidentes adequados dentro da escalada súbita (mas nada imprevisível) das inconsequentes incursões de Marcello nos golpes e roubos de Simone — desfechos coerentes com os crescentes riscos e sanguinolência. À medida em que Marcello começa a ser encurralado pela estupidez que segue Simone onde quer que ele vá, e seus atos desencadeiam reações onde até mesmo a morte de Simone por seus amigos é discutida, Garrone conduz a claustrofóbica narrativa dando pequenos sinais de que Marcello zarpou em direção a um destino nada alentador, e que a passividade covarde diante de Simone provavelmente só será rompida quando as consequências forem graves demais para serem ignoradas.
Através de um desfecho duro e violento (e não seria de outra forma), porém sensato pro realismo desumano da saga de Marcello e Simone, Dogman reserva uma clareza total para as pretensões de Garrone: assim como acontecia nos núcleos de Gomorra, há uma colisão inevitável entre o que as personagens pretendem e o que de fato são capazes de empreender diante das próprias maquinações do mundo do crime e dos excessos que invariavelmente alcançam quem dança rente ao precipício. Que Marcello esperasse domar e acalentar Simone como a um cão descontrolado, em nome da própria estima, já seria insolência suficiente naquela realidade avilanada; que como resultado disso ele se torne apto (e adepto) a detonar o que lhe sobra de humanidade e civilidade, é o cerne do mundo que o longa apresenta, onde o crepúsculo da sociedade eventualmente devora a todos.
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Texto de Henrique Rodrigues.
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