Tag: Ficção Científica

  • Crítica | Matrix Revolutions

    Crítica | Matrix Revolutions

    Crítica Matrix Revolutions

    Matrix Revolutions é o terceiro filme da saga idealizada pelas irmãs Wachowski, e carrega muitas expectativas, em especial, ter que fechar as pontas soltas de Matrix Reloaded, dar sequência aos conceitos filosóficos primordiais de Matrix e pincelar questões ligadas a aceitação de gênero. Todas essas resoluções teriam de ocorrer em pouco mais de duas horas. Se perder em meio a essas demandas é fácil.

    Filmado em conjunto com Reloaded, o longa se inicia em um cenário de limbo, com o Neo (Keanu Reeves) aguardando seu destino enquanto seus amigos tentam resgatá-lo, num conceito bem mais filosófico que as brigas envolvendo Trinity nos dois primeiros. Este trecho é obviamente um paralelo com o purgatório, lugar onde as almas se preparam para o julgamento de danação ou paraíso segundo a fé cristã católica. Este momento serve para lidar com a obsolescência dos programas, e para ratificar o sentimentalismo e “humanidade” desses seres.

    Se a Matrix é programada para domar os homens e precisa se alimentar das emoções deles em um esquema de vida falso, mas que necessita ser congruente para quem nela vive, pode-se dizer que é preciso sensibilidade para equilibrar tudo. Se as máquinas têm anseios e sentimentos, seria natural que os programas do simulacro também fossem igualmente sentimentais, que tivessem desejos e inseguranças. O conceito de um casal de programas, querer que sua filha (Sati) viva apesar da programação de destino fatal relegado a eles faz sentido, e conversa bem com o segmento O Segundo Renascer, do compilado de animações Animatrix, lançado em 2003. Se conceitos relacionados ao potencial de Merovingio e Persephone são abandonadas nesta parte, essa questão é um ponto positivo, e conversa bem com a condição do Agente Smith (Hugo Weaving), já que após sua derrota ele se reinventa, e age como um vírus predatório. Esses programas buscam viver a todo custo, assim como Roy Batty em Blade Runner, buscam se adaptar e seguir vivos, mesmo que essa condição comprometa o funcionamento básico da matrix.

    O subtexto mais rico certamente tem a ver com a transição de gênero. A jornada de Neo não é só um paralelo com Cristo, há a percepção que sua identidade no mundo real também não é “verdadeira” quanto deveria ser. Para muitos, o fato dele ter poderes fora da Matrix é incongruente ou é a demonstração cabal de que Zion era outra camada de simulação, hoje faz  mais sentido comparar isso com a descoberta da identidade, no caso de Neo sua relação com os poderes, enquanto para as diretoras têm toda a conotação de gênero. A Matrix não permite que Neo tenha poderes não por ele estar acima do código-fonte, mas por conta das habilidades que ele sequer tem consciência. Para acessar essa condição, Neo precisou se entender, descobrir quem ele era, assim como ocorreu com as cineastas anos depois.

    Da parte da ação houve um salto de qualidade. Os confrontos melhoraram muito entre Reloaded e Revolutions, inclusive no que toca o agente Smith. Foram utilizados mais dublês e efeitos práticos, além de mais cenas noturnas que disfarçam melhor as fragilidades dos efeitos em computação gráfica. Outro bom ponto são as batalhas em Zion, que lembram animes de mechas e robôs gigantes, tais como Gundam. Aqui também se dribla a máxima de batalha em várias frentes carente de emoção, diferente de outros filmes, é fácil ter empatia pelos humanos nessas lutas.

    Essa terceira parte também faz justiça a Niobe (Jada Pinkett Smith). Sua jornada é bem pontuada e mesmo com pouco tempo de tela se percebe a difícil decisão que ela teve que tomar. Trinity também é valorizada, sua relação com Neo é mostrada como um grande pilar na franquia, e Carrie-Anne Moss está de novo muito bem.

    Matrix Revolutions não é um fechamento ideal, mas a decisão de Neo em estabelecer a paz entre os dois povos guerreiros é sábia, mostra que seus poderes enquanto paralelo de Cristo não são só de onipotência, mas também de conhecimento e sabedoria, finalizando bem seu papel de sacrifício. Ao menos nesse ponto o roteiro seguiu tão inspirado quanto o filme original, e certamente essas continuações seriam melhor construídas caso houvesse um espaço de intervalo maior entre elas.

  • Crítica | Matrix Reloaded

    Crítica | Matrix Reloaded

    Crítica Matrix Reloaded

    Matrix foi um sucesso estrondoso e mudou os paradigmas do cinema de ação. Natural que continuações surgissem, e em 2003 Matrix Reloaded foi anunciado em conjunto com sua continuação, Matrix Revolutions, ambos gravados simultaneamente. Segundo as irmãs Wachowski, a história sempre foi pensada para ser uma trilogia, embora o primeiro filme tenha um fechamento satisfatório.

    O início desse remete ao primeiro, com uma cena de ação com Trinity (Carrie-Anne Moss) em um momento de perigo iminente, com uma possibilidade de fracasso ligeiramente provável. Essa sequência é breve, e serve para mostrar que as lutas com arame seguem bem feitas e, em contrapartida, também prevê o uso de computação gráfica mais extensivo nessa parte da saga, quase sempre com problemas.

    No primeiro filme, a cidade dos humanos, Zion, é apenas citada. Já aqui é um cenário grande, belo à sua maneira, mesmo que seja paupérrimo, com famílias amontoadas em pequenas baías que se assemelham ao cenário favelizado dos morros cariocas e em diversos outros lugares suburbanos nas metrópoles do mundo. A liberdade de escolha tem um preço.

    Muito se reclama a respeito dos roteiros das sequências, mas a realidade é que os paralelos com as mitologias e religiões segue sendo um ponto bem explorado. Entre eles está na adulação que boa parte dos habitantes de Zion fazem a Neo, tratado realmente como uma figura divina, inclusive com sacrifícios e oferendas. A reação que Keanu Reeves tem a esses momentos de agradecimento surpreende pelo desempenho do intérprete, conhecido por não ter dotes dramáticos tão valorosos, a exemplo de Drácula de Bram Stoker, mas o destaque maior está obviamente na referência ao culto a personalidade, denunciado por Cristo, mas tão presentes nas religiões.

    Outro fator é a figura de Morpheus como o profeta que prepara a vinda do Messias. Laurence Fishburne ratifica e evolui sua variação de João Batista. Tal qual era o primo carnal de Cristo que anunciava a vinda do Escolhido à Terra, ele segue auxiliando o Salvador. Batista vivia no deserto se alimentando de gafanhotos e mel, enquanto Morpheus no primeiro Matrix se alimenta sem luxos, de forma precária e ainda arrasta os seus seguidores da Nabucodonosor a fazer o mesmo. Aqui outro sacrifício também é mostrado, já que ele abriu mão da relação com Niobe (Jada Pinkett Smith), cortando os vínculos carnais.

    Há muitos bons conceitos, como a expansão dos programas, representados de forma complexa, com anseios humanos, como também os novos personagens introduzidos que ajudam a expandir a mitologia da série de filmes, ainda que muitos deles não tenha nenhum aprofundamento. Outro destaque fica para as cenas de ação, em especial a de perseguição na auto-estrada, certamente o ápice emocional do filme. O segmento põe à prova toda a extensa preparação do elenco que durou oito meses, e isso é visto nos momentos de luta, como nos choques de carros e perseguições que resgatam os clássicos Bullit e Operação França, em um circuito de cinco quilômetros, feito exclusivamente para a produção.

    Há muitas fragilidades no filme, em especial o primeiro embate de Neo com a nova versão do Senhor Smith. Um produto que foi tão bem cuidado não merecia uma computação gráfica tão artificial quanto esta, e isto resume os problemas de Matrix Reloaded, um produto mal-acabado tecnicamente, imaturo enquanto história solo e pouca dramaticidade. Tudo parece mecânico e presunçoso, e essa é uma história de homens, não de máquinas.

     

  • Crítica | Animatrix

    Crítica | Animatrix

    Crítica Animatrix

    Após o sucesso de Matrix muito se produziu a respeito desse universo. O longa cooperativo Animatrix certamente foi a mais acertada dessas empreitadas e gerou uma certa unanimidade entre os aficionados pela obra das irmãs Wachowski. A produção reúne nove histórias curtas conduzidas por mestres da animação japonesa, segmento que inspirou demais o roteiro e abordagem visual vista do filme de 1999.

    O Voo Final de Osíris, começa com uma batalha de espadas simulada entre um casal que tripulam a nave Osíris. O segmento eleva o conceito da Mulher de Vermelho para algo além. Se no filme das Wachowski o personagem Mouse fantasiava com sua criação, aqui há um paralelo com o sexo já na introdução, com os personagens usando suas lâminas para simular um combate, mas também para tirar a roupa um do outro, mostrando que a liberação da libido é um elemento fundamental nessa saga.

    A ação  não demora a ocorrer, com um ataque de Sentinelas a Zion e a animação em 3D funciona à perfeição, ao contrário de Matrix Reloaded, méritos claros a Andrew R. Jones que trouxe a equipe responsável pelo filme  Final Fantasy, e conseguiu mostrar suas qualidades — anos depois ele ganharia o Oscar de efeitos visuais por Avatar e Mogli: O Menino Lobo.

    As acrobacias, violência e a ideia da rivalidade entre homem e máquina ganham muito sentido aqui, e esse é sem dúvida o modo ideal de explorar o universo de Matrix. As histórias curtas e com personagens que não estão nos filmes dá a dimensão de como esse mundo é único.

    Outro bom segmento é O Segundo Renascer. Seu início é psicodélico, abusando de cores gritantes para mostrar o começo dos conflitos dos autômatos com a humanidade. Retirado dos arquivos de Zion, se nota que a revolta dos mecânicos se deu por conta da escravidão. Questões como segregação são levantadas e mostradas de maneira simples e sem rodeios.

    O curta, dirigido por Mahiro Maeda, conhecido por Blue Submarine Nº. 6 tem bons elementos de ficção científica, fazendo alusões a conceitos de Isaac Asimov, ainda que referencie a revolta das máquinas, algo que o autor de Fundação não gostava de abordar, mas aqui além de ser palatável ao grande público, ainda evita arquétipos bobos ou maniqueístas.

    Há elementos de temática samurai no segmento Era Uma Vez um Garoto, de Shinichiro Watanabe, e O Robô Sensível, de Peter Chung. Cada um deles se dedica a desmistificar o universo de Matrix, tornando-o menos pueril, mostrando que na briga entre humanidade e máquinas, não há apenas um lado certo, e sim uma complexa e intensa relação problemática.

    Animatrix expande o universo e gera boas discussões. Um bom exercício imaginativo e especulativo, e poderia ser repetido mais vezes, de maneira estendida como há muitos anos se promete.

  • Crítica | Matrix Ressurrections

    Crítica | Matrix Ressurrections

    Crítica Matrix Ressurrections

    Matrix Ressurrections é o quarto filme da saga iniciada em Matrix, lançada 18 anos após o terceiro volume da saga, Matrix Revolutions. Todo seu material de divulgação dava conta da possibilidade de um reboot, com elementos que ressuscitariam os conceitos da trilogia original.

    É bem difícil falar a respeito da obra dirigida por Lana Wachowski — Lilly não quis retornar por motivos pessoais — sem falar a respeito dos rumos narrativos da história. Contudo, há uma ideia que beira o genial na história e que faz um bom comentário metalinguístico, especialmente no que envolve o personagem de Keanu Reeves. Associar os eventos da trilogia a outro tipo de simulação é bastante válido, e gera momentos verdadeiramente hilários.

    Fora isso, os novos personagens são em sua maioria muito divertidos e icônicos, e até melhor aproveitados do que na versão de 1999, onde a maioria da trupe comandada pelo Morpheus de Laurence Fishburne são apenas estilosos, e não tem muita importância ou tempo de desenvolvimento.

    Outra questão bastante positiva é a fotografia, assinada por Daniele Massaccesi, que já vinha trabalhando como operador de câmera em filmes com as Wachowsky e com o diretor Ridley Scott, além do veterano John Toll de Coração Valente, Além da Linha Vermelha e também A Viagem, O Destino de Júpiter e Sense8, produções das diretoras que criaram Matrix. A mudança nas cores da simulação, saindo o verde dos códigos para o azul semelhante a pílula também serve bem como um comentário a respeito da mudança de abordagem desta parte da saga.

    Jessica Henwick, Yahya Abdul-Mateen II e Jonathan Groff estão muito bens em seus papéis, até Pryanka Chopra Jones, introduzida em segundo momento, é bem utilizada. Carrie-Anne Moss e Jada Pinkett Smith também acrescentam bastante em seu retorno, o ponto negativo na atuação recai sobre Neil Patrick Harris, que varia entre o personagem discreto e o canastrão sem nuances, e nem a desculpa de programação salva esse desempenho.

    Após Neo fazer um acordo com as máquinas para que deixasse a humanidade de Zion em paz no final do último filme da trilogia acompanhamos o desenrolar desse ato. Esse armistício tem um bom desenvolvimento, e ver como o quadro evoluiu é uma boa surpresa, tanto visualmente quanto em conceito, dado que boa parte da política mostrada aqui foi plantada nos filmes anteriores. O problema mesmo é a função de Neo na simulação.

    O personagem de Reeves era o escolhido, como Jesus Cristo que se entregou em sacrifício para derrotar um vírus. No entanto, nesta versão o personagem estar na posição em que inicia o filme, com tanto acesso a questões que lembram o funcionamento de um simulacro, não faz nenhum sentido. Se é preciso que se mantenha um inimigo por perto, não faz sentido dar-lhe recursos que podem ser encarados como armas.

    Importante lembrar que na gênese do projeto Matrix, as irmãs Wachowski queriam que os humanos fossem como computadores. Em conversa com os estúdios se decidiu que seriam baterias. A opção deste novo filme de aludir a isso, mesmo que de forma não literal é ótima, pois além de remeter a ideia original, ainda traz novas camadas para a discussão. Visto que a mente humana tem maior capacidade criativa que uma máquina, faz todo sentido utilizar no simulacro a força e esforço criativo a favor da simulação, ao invés de apenas consumir a energia oriunda dela.

    O filme reforça o subtexto sobre assumir a real identidade de maneira ainda mais certeira, com todo o roteiro sendo menos sutil que na trilogia original. Isso poderia ser encarado como algo ruim, mas já que boa parte do público julgou mal alguns dos conceitos de Matrix Reloaded e Revolutions, é bom que esteja aqui para não haver dúvidas.

    A solução final de Matrix Ressurrections é apressada, e parece ser uma sina em tudo que envolve a série pós-1999, mas as atuações, atmosfera cyberpunk e as cenas de ação lembram os momentos áureos do cinema das Wachowsky, e trazem um bom fôlego ao filme.

  • Resenha | Hulk: Futuro Imperfeito

    Resenha | Hulk: Futuro Imperfeito

    A cultura pop está repleta de histórias ambientadas em futuros pós-apocalípticos, seja na literatura, no cinema ou nos quadrinhos em geral. Em que pese as características basilares do gênero, algumas obras se destacaram ao longo dos anos, por diferentes fatores.

    Nos anos noventa, o prolífico artista George Pérez procurou Peter David para trabalharem juntos em algum projeto. Sendo David o maior escritor da história d’O Incrível Hulk, nada mais natural do que a parceria entre esses dois talentosos profissionais resultar em uma aventura do Golias Esmeralda.

    Assim nasceu Futuro Imperfeito, minissérie publicada originalmente em duas partes pela Marvel Comics nos últimos meses de 1992. Na HQ, David e Pérez concebem a cidade de Dystopia, um lugar superpovoado, cercado por desertos e erigido a partir de ruínas do que outrora foi uma metrópole civilizada.

    Nesse lugar em que vozes se confundem e pessoas vestidas em trapos fazem de tudo para sobreviver, rebeldes se camuflam no meio da multidão, enquanto organizam a resistência ao sombrio e monstruoso Maestro, tirânico líder da região. Nesse lugar em que o futuro parece se encontrar com um passado remoto, a esperança surge no verde da pele do Hulk, que é trazido de seu tempo até esse futuro absurdo para descobrir questões inconvenientes de sua vida e então se provar em batalha, pelo bem do que restou da humanidade.

    Elogiar a qualidade de escrita de David é chover no molhado. Tecer elogios à narrativa visual de Pérez seria igualmente redundante. Fenomenal, a dupla construiu de forma conjunta uma história tão simples quanto memorável para um dos personagens mais complicados de se compreender no Universo Marvel.

    Por ser o escritor da série mensal do Hulk à época, David possuía amplo domínio do background do personagem. Desse modo, o herói surge em Futuro Imperfeito da mesma forma com que vinha sendo representado em sua série solo daquele tempo: a consciência de Banner no corpo do Hulk, o que fazia do herói tão genial quanto poderoso, ao mesmo tempo.

    Assim, o maior inimigo possível para o Hulk debuta no Universo Marvel. O Maestro é tudo o que o Hulk pode vir a ser, e tal sombra paira a todo instante na HQ, que não perde tempo nem apresenta nenhuma barriga na execução de seu dinâmico enredo.

    Diálogos poderosos se intercalam entre cenas de ação ágeis e impactantes, que reafirmam a escala de poder na qual se inserem os protagonistas desse embate de iguais, tão desiguais quanto o tempo poderia tornar. Recheada de referências, a HQ entrega uma aventura distópica de primeira grandeza e se configura como uma das histórias mais emblemáticas do Gigante Verde.

    Complementando o encadernado publicado pela Panini Comics, a história O Último Titã é escrita também por David, mas ilustrada por outro parceiro seu dos tempos da série mensal: Dale Keown. Ambientada em um futuro ainda mais longevo, no qual somente o Hulk sobreviveu na Terra, vemos o dilema existencial entre Banner e Hulk novamente trabalhado, de forma diferente da vista em Futuro Imperfeito, já que agora as duas personas lutam por espaço e possuem desejos completamente diferentes para encararem o fim dos tempos.

    Com tradução de Jotapê Martins, Fernando Lopes e Marcelo Soares, o encadernado Hulk: Futuro Imperfeito aquece aquele coração marvete com sucesso e preenche a lacuna existente no mercado com a ausência inexplicável dessa HQ durante tantos anos, após uma republicação lá do comecinho dos anos 2000.

  • Resenha | Duna – Frank Herbert

    Resenha | Duna – Frank Herbert

    “Deus criou Arrakis para treinar os fiéis.” – ditado fremen, o povo da areia.

    Eis o destino cármico para a humanidade, ou pelo menos, para os destemidos que fazem de tudo pelo poder. Arrakis é o planeta Duna, lugarejo impróprio a vida humana e que carrega consigo um fatalismo inevitável – não só por suas terríveis condições naturais, mas pelos vermes de areia gigantescos que lá residem. Um inferno planetário, árido e hostil, com tempestades cujos ventos retiram até a carne dos ossos de alguém, e que esconde sob as infinitas dunas desta Terra desértica, a valiosa ménange. Uma especiaria que dá poderes a quem a consome, e se vicia, e que só é encontrada na desolação e nos perigos de Arrakis. Dispensável dizer que muitos poderosos a ambicionam, numa guerra cada vez mais oficializada pelo controle da droga, custe o que custar, a menos que as lendas e profecias dos fremen sejam reais, e um salvador, o tão esperado Kwisatz Haderach, venha de fato unir os povos dentro e fora de Duna e trazer consciência (e limites) a ganância dos homens.

    No gênero de fantasia, o clichê nunca some ao apontar O Senhor dos Anéis como seu expoente máximo, tal qual Duna, clássico de Frank Herbert, como a magnum opus literária da ficção-científica. É porque, às vezes, todo clichê é inevitável quando este é real. Há um pedaço vital de Duna em todo e qualquer produto extremamente popular do gênero pós-1965, incluindo Star Wars, Harry Potter, Jogos Vorazes, Game of Thrones, ou ainda na maravilhosa série Arquivo-X dos anos 90. O que Frank Herbert conseguiu em Duna, antes de mais nada, foi revitalizar a essência questionadora, e utópica das obras basilares de Aldous Huxley e Philip K. Dick, os titãs da ficção- científica do início do século XX (autores obrigatórios), e inserir doses explícitas de política na idealização de um planeta com um sistema e religião próprias, mitos e temores particulares, e tecnologias que visam a sobrevivência da espécie, mas que pode resultar no extermínio de um ecossistema inteiro. Duna consegue ser utópico e distópico ao mesmo tempo, estruturando tudo num contexto engenhosamente político, sob um realismo fantástico profundo, e impecável.

    O livro poderia também se chamar Onde os Fracos Não Têm Vez, uma vez que o duque Leto Atreides, ótimo pai e marido, homem de bom coração, aceitou se mudar para Arrakis a fim de administrar toda a extração do ménange, se achando astuto o suficiente para evitar traidores – nada maquiavélico ele, no uso original do termo. Quando a família Atreides sai de seu planeta Caladan e vão todos enfrentar, diretamente, a realidade que esconde os temidos vermes gigantes, um misterioso povo guerreiro cuja água é o mais inestimável bem, inexistente sob um sol vermelho escaldante, e muitos outros segredos além do horizonte, tudo começa a mudar, como se o destino exclamasse: “Vocês não deveriam estar aqui”. Não demora muito para o plano de poder dos Atreides dar errado, e assim, Lady Jessica e o filho de Leto, o jovem Paul Atreides, têm suas vidas mudadas por um jogo de interesses interplanetários enraizado em Arrakis, num amplo esquema de corrupção política que não poupa ninguém – Duna é o Brasil e ninguém percebeu isso?

    Presos numa armadilha que Leto sem saber os colocou, esposa e filho lutam por suas vidas, entregues a sorte e ao azar, enquanto o asqueroso barão Vladimir Harkonnen (a grande inspiração para Darth Vader, entre muitas outras que George Lucas usou em Star Wars) trama diabolicamente esquemas e intrigas para controlar Arrakis e o seu “petróleo”, a substância que aumenta a força psíquica, e mediúnica, do ser-humano. Mas os altos escalões sempre subestimam a força popular, e na sua jornada contra a morte, Jéssica e Paul descobrem que há futuro e salvação entre os “rebeldes” fremen, uma espécie de cangaceiros do deserto e que não se curvam as forças militares do barão Harkonnen! Diante de tantas subtramas assim, e uma miscelânea de personagens que ao final não queremos nos afastar, a narrativa em terceira pessoa de Frank Herbert é quase sempre sublime, deixando algumas passagens ser tão célebres quanto poderiam ser, de fato – vide sua habilidade em organizar tramas paralelas (e fazer isso parecer que é simples).

    Herbert fez de Duna o romance da sua vida, a viagem inesquecível, seu pomo de ouro, pelo menos neste primeiro volume. Mestre com seus diálogos e suas frases de efeito, sendo a mais famosa “Não terei medo, o medo mata a mente.”, dita por Paul, o escritor construiu em pouco mais de 600 páginas um monumento dificílimo de adaptar para o cinema ou TV, devido a força e aos detalhes de suas palavras; a magnitude definitiva de sua grande alegoria política, quase que impossível de ser superada em filme ou série, apenas copiada. Por ser a obra de ficção-científica mais vendida (e uma das mais inspiradoras) da história, desde 1965, e publicada com grande apreço e carinho no Brasil pela Editora Aleph, Duna justifica sua popularidade universal a cada um dos seus capítulos, os quais possuem trechos iniciais retirados de uma espécie de bíblia do sábio e nômade povo de Arrakis. Este, sempre à espera de um salvador, de um guia, ou de uma força extra, como preferir. E quem não está?


  • Os Personagens em CGI Mais Realistas do Cinema

    Os Personagens em CGI Mais Realistas do Cinema

    Desde que um dinossauro apareceu rugindo na chuva, em Jurassic Park, a porteira nunca mais se fechou. De 1993 pra cá, tudo ficou possível numa tela de cinema, e o velho lema de Stanley Kubrick (“se você imagina, você pode filmar”) virou, finalmente uma verdade, forjada por muitas horas de trabalho, pesquisa e experimentações técnicas. A busca por realismo segue incessante, com Christopher Nolan liderando o grupo de cineastas que evitam a computação gráfica e apostam pesado nos efeitos práticos, que costumam não envelhecer. Mesmo assim, maravilhas já foram criadas numa tela de computador, e seguem impactantes como sempre. Abaixo, uma lista dos dez efeitos de computação gráfica mais realistas de todos os tempos.

    10. Thanos, de Vingadores: Guerra Infinita e Vingadores: Ultimato (2018 e 2019)

    A Marvel humanizou o tirano Thanos com uma figura totalmente gráfica, em Vingadores: Guerra Infinita, pautada em realismo para que o vilão fosse crível, quase que palpável nas suas rugas e expressões hiper-naturalistas. Um feito extraordinário, também ajudada pelo trabalho de voz e postura do ator Josh Brolin.

    9. Simba, de O Rei Leão (2019)

    Se o filme foi fraco, a savana e seus habitantes criados em computador em O Rei Leão, em 2019, é tão impressionante que lembra um documentário da Discovery Channel. Cada músculo, cada pelo… Simba saiu do desenho e virou um leãozinho tangível, talvez mais real até que o do zoológico.

    8. Ava, de Ex-Machina: Instinto Artificial (2014)

    Ava é a androide mais realista da história do cinema, e perturbadoramente humana em seus trejeitos. Numa combinação perfeita de efeitos práticos, e CGI, a robô de Ex-Machina interage com atores reais, e a excelência da iluminação da textura do metal que substitui boa parte da sua pele não será superada, por muito tempo.

    7. Homem de Ferro (2008)

    Quando o Homem de Ferro chegou nos cinemas, foi difícil acreditar que sua armadura, colorida ou prata, não fosse de verdade. É possível quase que sentir a temperatura do material, a dureza, o som de cada parte que se encaixam… feito esse não repetido com o mesmo realismo nos outros filmes com o herói, desde 2008.

    6. O Urso, de O Regresso (2015)

    Leonardo DiCaprio foi atacado por um urso em O Regresso, e nada me diz que isso é mentira. O nível de veracidade nas imagens é tamanho, que jamais duvidamos que há uma fera bestial em cima do homem, rasgando a sua pele enquanto baba, e ofegante, cheira a sua presa. Pobre DiCaprio. Ele era bonito.

    5. T-1000, de O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (1991)

    O T-1000 de O Exterminador do Futuro 2 é uma força da natureza tecnológica, e até hoje, desde 1992, os efeitos criados em computador pelo genial James Cameron seguem acachapantes. O robô assassino que vira líquido, explode no nitrogênio, que perde suas partes e se recompõe por nanotecnologia, marcou uma geração.

    4. Alienígenas, de Distrito 9 (2009)

    Os alienígenas “camarão” de Distrito 9 naufragaram na África do Sul, e lá, fizeram suas favelas. O diretor Neil Blomkamp conseguiu a proeza de colocar um alien e um humano lado a lado, e em suas diferentes formas físicas, fazer parecer que a imagem do homem é mais falsa que a do extraterrestre. Um uso de efeitos fenomenal.

    3. Richard Parker, de As Aventuras de Pi (2012)

    Se o urso de O Regresso era de verdade, e Simba também (quase…), o que falar do tigre de As Aventuras de Pi? Richard Parker é o animal mais realista da história do cinema, desde que aparece naquela jaula na Índia. Uma pena que a empresa de efeitos especiais que o fez, a Rhythm & Hues, faliu em 2013, mas seu legado é eterno.

    2. Caesar, de Planeta dos Macacos: A Guerra (2017)

    Desde o Senhor dos Anéis, o ator Andy Serkins se especializou em interpretar criaturas na técnica de ‘captura de movimento’, e todo mundo achou que o seu Gollum nunca seria igualado, quiçá superado. Mesmo assim, Cesar, o macaco inteligente de Planeta dos Macacos: Guerra, acabou sendo a criatura mais realista já criada em computador. A segunda, na verdade.

    1. Rachel, de Blade Runner 2049 (2017)

    Um rosto. 100% digital, e 101% real. A Rachel de Blade Runner 2049 não existe, mas ninguém pode confirmar isso antes de ver o making-of do filme. Nele, vemos como foi a construção de sua face, pixel por pixel, cheia de calor, drama, falas, lágrimas, cabelos, e que faz Thanos, o urso e até o T-1000 parecem personagens do Playstation 2. Eis o grande triunfo do CGI. Superá-lo será reinventar a roda. Pago pra ver. #IWantToBelieve

  • Resenha | Snow Crash (Nevasca) – Neal Stephenson

    Resenha | Snow Crash (Nevasca) – Neal Stephenson

    A visão da informática nos anos 80 e 90 não poderia ser melhor representada, popularmente, do que foi em Matrix bem na virada do milênio. Não só através de cenas de ação inesquecíveis, mas no próprio uso dramático do seu principal tema tecnológico: o mundo online é uma extensão da nossa realidade. Logo no começo da revolução digital, autores de ficção científica e fantasia piravam nas possibilidades infinitas de um novo cenário, onipotente e fadado as ambições e loucuras do homem. Mas, se no épico das irmãs Wachowski ou em inúmeros animes japoneses futuristas, tudo pendeu mais ao surreal e ao barulho para garantir a adrenalina da plateia, e a ela apresentar pela ótica da ficção uma rede mundial de computadores, foi no campo literário que o cyberspace foi e continua a ser bem mais sofisticado, ou seja: melhor especulado nas suas inúmeras questões extrafísicas, polêmicas e regulatórias, debatidas em sociedade desde os primórdios da invenção coletiva da internet.

    Em 1992, Neal Stephenson veio com o seu Snow Crash, publicado inicialmente como Nevasca no Brasil pela editora Aleph, um dos cem melhores romances dos anos 90 segundo a revista Times. Exageros à parte, eis um livro-chave para os amantes mais modernos de aventura, e que as vezes podem se indagar: e se o Indiana Jones caísse numa dimensão cibernética, cheia de tecnologias delirantes e muita paranoia? Bom, foi mais ou menos isso que Neal imaginou ao acompanhar a história de Hiro Protagonist. Para todo mundo, ele é só um ex-entregador de pizza, já que na verdade (e para poucos) ele é o último hacker freelancer dos Estados Unidos. Co-criador do Metaverso, uma enorme realidade aumentada aonde se pode andar pelas ruas, e entrar nas lojas que os melhores programadores da Terra criaram no início do Metaverso, Hiro ajudou a criar o bar Black Sun. É lá onde os avatares mais renomados do Metaverso adoram passar um tempo ostentando suas vaidades, e é também onde uma poderosíssima droga (um vírus) chamado “Nevasca” aparece, pela primeira vez.

    Aparentemente inofensiva, a droga (“Snow Crash”, em inglês, um termo para quando o computador trava, e a imagem do monitor fica embaralhada igual uma Nevasca) é comercializada no Metaverso cada vez mais, feito o Covid-19 a se propagar na China. Infectando todo mundo nessa realidade virtual, Hiro começa a entender que ela pode ir muito além de um reles vírus online. Tendo implicações no mundo real, e servindo de ameaça iminente a Hiro, que sabe demais justamente por ser um hacker, a droga precisará ser combatida nas camadas mais ocultas do da deep web, ou poderá ser tarde demais inclusive no mundo real. O livro emblema com total dinamismo a falta de privacidade do cidadão quando inserido na internet, e o peso da liberdade quando esta é ameaçada. Assim, o autor reflete sobre a paranoia do homem diante do desconhecido, e principalmente quando o desconhecido é autônomo e faz parte daquilo que o próprio homem criou. É o velho drama do “Criamos um monstro e ele fugiu do controle, e agora?”, muito bem tratado aqui.

    Mesmo sendo mais longo do que precisava ser, e previsível quanto aos arcos de personagens coadjuvantes, Snow Crash ou Nevasca é um amplo conto futurista e cheio de influências dos anos 80 lançado bem no ano da morte de Isaac Asimov, o genial escritor russo de ficção-científica que revolucionou a maneira a qual o ser-humano enxerga a inteligência artificial – para sempre. O que impressiona, de fato, é a maestria de Stephenson junto a uma narrativa que flui feito um rio, a serpentear. O cara nos conduz por um jogo de palavras realmente cativante e que, com certeza, seduziu a revista Times no seu ranking da década de 90. Um tanto cansativo no final, mas irresistível no começo, Snow Crash é feito sob medida para quem não tem paciência para toda a filosofia de um O Tempo Desconjuntado, e prefere uma cientologia e uma filosofia bem embaladas na adrenalina, e no suspense que existe aqui. Achou que só Matrix era assim? Achou errado.

    Compre: Snow Crash – Neal Stephenson.

  • Resenha | Doctor Who: Shada – Gareth Roberts

    Resenha | Doctor Who: Shada – Gareth Roberts

    Um dos maiores atrativos iniciais ao me deparar com a capa de Doctor Who: Shada, publicado pela Suma de Letras e novelizado por Gareth Roberts, foram duas palavras, em letras não tão garrafais: Douglas Adams. O livro se apresenta como uma aventura perdida da série em que o autor d’O Guia do Mochileiro das Galáxias trabalhava como editor de roteiros em 1979, ano que a história foi escrita. E é exatamente isso que você deve esperar dele, um episódio da série clássica de Doctor Who.

    Para os não familiarizados com o universo de uma série de TV que começou em 1963 e dura até hoje, ela narra as aventuras do Doutor, um alienígena com uma nave em formato de cabine telefônica capaz de viajar no tempo e espaço. Uma das características mais importantes da espécie do personagem, os Senhores do Tempo, é a capacidade de se “regenerar”, uma maneira de enganar a morte e voltar com um outro corpo, permitindo não só a troca de atores para o papel, mas também leves mudanças justificadas no comportamento do personagem.

    Nessa história, acompanhamos a quarta encarnação do Doutor, interpretado na TV por Tom Baker e reconhecido pelo icônico cachecol colorido e gigantesco, tentando impedir que Skagra, um alienígena extremamente inteligente e apático tome posse de um livro que o permita encontrar Shada, um planeta utilizado como prisão para os Senhores do Tempo.

    O tom variado da série consegue ser muito bem encaixado na novelização, com mudanças entre o humor, drama e suspense muito bem encaixados e distribuídos. É uma história leve de se acompanhar e divertida, já que as viradas de roteiro, bem como os momentos de apresentação de peças-chaves do mesmo são feitas a nos deixar empolgado de continuar a leitura. Uma das estruturas que ajudam nisso é da utilização dos capítulos como cenas, provável resquício da organização do roteiro, que faz com que haja agilidade na troca dos núcleos e faz com que seja possível manter um bom equilíbrio entre informações presentes em cada um deles de como a trama se desenrola.

    Para além da organização dos capítulos em cenas, uma divisão de partes no livro também lembra como eram organizados os episódios antigos da série: um conjunto de quatro episódios para a formação de um arco da história. A diferença é que no lugar de quatro, temos o que seriam seis episódios aqui. A edição do livro ajuda no processo de devorá-lo, com fonte e papel bem escolhidos, permitindo manter a leitura no ritmo agitado e frenético típico da série.

    Apesar de apresentar conceitos simples dentro de tudo o que aparece nas décadas de Doctor Who, eu creio que Shada esteja mais próximo dos iniciados que daqueles que nunca tiveram contato com esse universo. Por não ter sido inicialmente pensado como um material introdutório, diversos conceitos que fãs da série já tenham firmados podem ficar perdidos para o leitor de primeira viagem, fazendo com que a leitura não emplaque e você se sinta perdido em diversos momentos. E, como um arco de episódios feito para uma série que, apesar de tratar de ficção científica, tinha um foco no público infantil, e iria ao ar no final da década de 1970, não se deve esperar um roteiro tão bem trabalhado e carregado de humor que às vezes beira o macabro como seria o posterior trabalho de Adams. Portanto, se você teve contato com outros trabalhos do autor e quer experimentar o que ele escreveu em outro universo, é bom saber onde pisa.

    Texto de autoria de Caio Amorim.

    Compre: Doctor Who – Shada.

  • Resenha | Astronauta: Singularidade

    Resenha | Astronauta: Singularidade

    O Astronauta (Pereira), também conhecido apenas como Astro, é um dos personagens mais famosos de Maurício de Souza, junto do Chico Bento, Penadinho e outros ícones dos gibis brasileiros. Por isso, uma releitura da figura azul e laranja que ama explorar o universo e seus limites deveria estar à altura de suas clássicas aventuras, repletas de imaginação, senso de questionamento e desejo de exploração. Tal qual um Indiana Jones intergaláctico, Astro é sozinho para o Brasil o que a destemida turma de Interestelar foi para os Estados Unidos, no filme de Christopher Nolan. Um grande motivo de orgulho e admiração para o seu povo à espera do seu retorno, numa missão fantástica rumo ao centro de um buraco-negro que, desta vez, o eterno apaixonado pela Ritinha do bairro do Limoeiro vai ter que contar com uma ajuda inesperada.

    Ao regressar dos confins do espaço, ferido e doente após os eventos da ótima história Magnetar, Astro é resgatado por uma equipe estrangeira que ajuda o homem a se recuperar, física e psicologicamente (a história nunca revela qual é essa nação). Para agradecer e mostrar diplomacia pela assistência amistosa ao maior astronauta do Brasil, a BRASA (agência secreta com os mesmos fins da NASA americana) decide enviar o seu principal cientista junto de um misterioso agente militar deste país, o Major, e de quebra ainda obrigam o Astronauta a alojar em sua nave uma sensível psiquiatra para analisar de perto as condições psicológicas do nosso herói, ainda cheio de obstinação para dar e vender. Nunca a nave redonda e dourada transportou tanta gente (“Isso está parecendo um ônibus!”), mas tudo é válido em prol da ciência. Tudo, mesmo?

    Singularidade pode enganar quem acha que a história é apenas um conto didático sobre um dos maiores enigmas do universo: buracos-negros, um fenômeno que desafia a física ao sugar tudo ao redor de si, desde meteoros até planetas inteiros, logo após a explosão de uma gigantesca estrela que o forma em uma constante expansão destruidora. Nada escapa de sua fome, e o que parece ser apenas uma exploração científica rapidamente torna-se uma exploração sobre a natureza tão imprevisível do homem, quanto a do próprio universo e o seu caos gigantesco, sempre reordenando o vazio, as estrelas e a vida. Em certo momento, a Doutora e o Astronauta entendem que a missão não será tão fácil assim, uma vez que a ambição e a ignorância humana não têm fim e podem botar tudo a perder, ainda mais quando uma nave (ou seria uma sonda?) alienígena aparece para atrapalhar tudo.

    O roteiro e as ilustrações delirantes de Danilo Beyruth são sob medida para orgulhar não apenas Maurício de Souza, mas o público que sempre seguiu as peripécias do Astronauta e, agora, ganha a oportunidade de se deleitar com uma abordagem mais dramática e espetacular, porque não, deste verdadeiro símbolo da ficção-científica brasileira. A editora Panini continua com um impecável trabalho gráfico em Singularidade, ofertando a história um tratamento estético de cores e texturas digno de se rasgar elogios. Beyruth se supera em comparação a Magnetar, e prova aqui ter um talento especial de revitalizar e expandir o nosso encantamento para personagens já solidificados no imaginário popular do Brasil. O Astronauta aqui segue em boas mãos, caso ele consiga (de fato) escapar de onde nem mesmo a luz consegue fugir.

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  • Resenha | Astronauta: Magnetar (2)

    Resenha | Astronauta: Magnetar (2)

    Dos confins do espaço, um astronauta bem famoso está isolado, sem viva alma para ajudá-lo a voltar para casa – tampouco sem computador, pifado. Parece que o Astronauta, um dos mais icônicos personagens de Mauricio de Sousa, realmente foi longe demais desta vez, em toda a sua fome de conhecimento. Agora, nosso Cabral das estrelas foi aonde nenhum outro homem ousou atingir: a órbita de uma misteriosa estrela que dá nome a este livro, uma Magnetar. Um corpo celeste altamente magnético, mais brilhante que o sol, e mais perigosa que todos os eventos da Terra, reunidos em um único ponto. Seus estudos ainda seguem incompletos, mas se alguém pode coletar informações presenciais dessa estrela para entendê-la melhor, há muitos anos-luz do nosso pequeno planeta azul, é o nosso amigo intergaláctico, criado em 1963 junto das tirinhas de jornal da Turma da Mônica.

    Mas ele não esperava que o universo, indiferente as ambições humanas, sabotasse sua expedição repleta de coragem, motivada (no começo) por pura curiosidade científica. Logo ao pousar num dos asteroides que gravitam um Magnetar, sua nave é danificada e ele fica sem oxigênio, ao usar todo o ar que tinha em seu traje espacial para sobreviver, e conseguir numa quase missão-suicida voltar a sua nave redonda. Sozinho, e sem a tecnologia de sempre para lhe ajudar nessa missão, como nosso amigo sairá dessa? Em 2012, para comemorar os quase 50 anos de personagens como o Astronauta, Bidu, Louco e Chico Bento, entre tantos outros da espetacular mitologia da Turma da Mônica, a mais popular série de quadrinhos de todos os tempos no Brasil, Maurício de Sousa escolheu artistas que pudessem empregar a seus clássicos ícones novos traços, e novas perspectivas, muito além daquela simplicidade que tanto nos habituamos a ler, nos gibis originais.

    Assim, a aventura de Astronauta pode ser algo chocante para os leitores mais nostálgicos, pois os temas aqui narrados com grande dinamismo e paixão são profundos a ponto de nos inspirar, e talvez, criar nossas próprias histórias imaginárias para esse aventureiro das galáxias. Desamparado, o Astronauta combate o isolamento enquanto tenta consertar em vão a sua nave. Um confinamento que começa a mudar o homem enjaulado e cada vez mais paranoico, enquanto o tempo passa e a beleza e o mistério de um Magnetar tornam-se desprezíveis para o animal pensante preso num cockpit, assombrado pelos fantasmas do passado. Pela culpa de estar tão longe da família… Na trama, o quadrinista Danilo Beyruth, responsável pelo premiado Bando de Dois, ao lado da colorista Cris Peter, comanda um exercício criativo ao testar os limites físicos e psicológicos de uma pessoa, lembrando-nos que nunca estamos no controle de nada, mas a escolha de reagir ao caos vem de nós, seja no fundo do mar, ou no mais distante asteroide que temos alcançado desde o final dos anos 60.

    Tal qual o filhote de dinossauro Horácio e sua perspicaz filosofia, o Astronauta é a personificação irreverente do lado científico de Maurício de Sousa, como ele bem nos informa na introdução que abre essa publicação da editora Panini, que destaca a exuberância do traço e a narrativa gráfica de Beyruth, que assim como a trama que reflete a graça das primeiras histórias do Astronauta, mantém e ainda expande a identidade visual do personagem, em painéis inventivos e surreais, abusando perfeitamente das cores e do silêncio, em algumas situações. Como nos tempos das caravelas, os homens das estrelas também se jogam em seus “abismos” de imprevisão em nome do fim da ignorância, arriscando a vida pelo amor ao desbravamento. Eis uma ode hipnótica ao que rege não só a profissão, mas à nobreza similar das criações de Maurício. Magnetar é pura invenção e renovação, homenagem e deslumbramento, inclusive, a quem nunca leu um gibi sequer da Turma da Mônica e encontra, aqui, a oportunidade perfeita em desbravar (ou reverenciar) o seu encanto, sem igual.

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  • Crítica | AI: Inteligência Artificial

    Crítica | AI: Inteligência Artificial

    O começo de AI:- Inteligencia Artificial dá conta de um planeta Terra em colapso, por conta de exploração severa. As calotas polares derreteram e boa parte das grandes cidades estão submersas e para que a humanidade sobreviva, uma empresa, a Cybertronics de Nova Jersey faz experimentos com máquinas super avançadas, que detém intelecto e capacidade de raciocínio, embora o conceito de livre arbítrio não seja pleno nestas primeiras amostras.

    A obra de Steven Spielberg tem esse pontapé, mas também de desdobra por outras questões bastante importantes, como as necessidades pequenas e básicas, como a necessidade de ter alguém para amar, se apegar e que retribua esses bons sentimentos. O roteiro de Spielberg, com argumento de Ian Watson, baseado por sua vez no conto Supertoys Last All Summer Long – and Other Stories of Future Time de Brian Aldiss, lançado em 1969 trata disso, e após um prólogo, que demonstra a capacidade da empresa, com um protótipo que resulta em uma mulher linda, se fala então em fazer copias de crianças. É ai que entra o menino David, de Haley Joel Osment, que viria a ser adotado pelos Swinton.

    Em um espaço de vinte meses as pesquisas avançam tanto que seria possível fazer um autômato de aparência juvenil, que não adoece, que é cheio de ternura e de maneira incondicional, dócil e belo. No entanto, se pensar de maneira fria é cruel também com Mônica (Frances O’Connor), a mãe, que sequer teve como lidar com a morte de seu filho, já que está em fase terminal aparentemente. O futuro não é capaz de salvar todas as pessoas, dada a fragilidade do corpo e da alma dos homens.

    É curioso que David, ao ser apresentado, tem uma silhueta estranha, tal qual a dos Grey, um grupo alienígena que normalmente é mostrado como a raça que adentra o espaço terráqueo em filmes, séries e livros, possivelmente aludindo as partes da filmografia de Spielberg como realizador de filmes no espaço, mas também mostrando visualmente e até antes dele ser introduzido como personagem, que ele é um ser de fora daquele cenário. O menininho, mesmo tendo uma origem robótica causa simpatia e pena, por ser sempre solicito, o hóspede perfeito, o olhar perdido de alguém que quer sempre atenção. A forma como ele se posta em alguns momentos, quando chega por exemplo o momento em que ele come espinafre, ou quando atende telefonemas. Suas reações causam desconforto, ao passo que dão a chance a Osment de brilhar.

    A primeira vez que ele ri é assustador, primeiro pelo susto que se dá quando ele interrompe o silencio, e segundo por ele fazer isso com uma artificialidade tão grotesca que dá receio. Todo o comportamento servil dele faz perguntar se seria aceito por alguma pessoa que não estivesse fragilizada como está Monica e sua família. Mais até do que o mito envolvendo o boneco Pinóquio, o que se vê aqui é um método protocolar de manipulação de um ser inteligente e capaz de pensar. É totalmente natural que as máquinas viessem a se rebelar como ocorre em tantas outras histórias de ficção científica como Matrix ou O Exterminador do Futuro, pois aqui os homens são completamente egoístas e com pensamento centrado exclusivamente em si, ao ponto de usar as máquinas como suplementos de seus sentimentos. Essa definitivamente é a parte mais kubrickiana da obra, comentário esse que complementa a ajuda a entender boa parte das motivações de Hal 9000 em 2001 Uma Odisseia no Espaço.

    A historia é  desenrolada de maneira tão fluída que os primeiros trinta minutos fazem parecer uma eternidade. A quantidade informações, a vivência e a rotina da família tudo é entendido facilmente, a forma como Martin age, sendo o garoto mimado e impertinente, incapaz de dividir seus privilégios com alguém mais ingênuo e carente de amor que ele faz causar raiva em quem assiste, embora ele só esteja sendo humano, uma criança normal, geniosa e inconveniente como qualquer outra. O comportamento humano parece irritante e mesquinho se visto de longe, por terceiros, mas os ciúmes e o maquiavelismo comuns na disputa entre irmãos são amplificados em uma obra como essa que desde cedo antecipa por quem o público deve torcer.

    AI é dividido em dois tomos, sendo o primeiro a gênese da ativação de David, com adaptação e os traumas que o fazem ser quem ele é, e depois a vida fora da redoma de proteção, onde ele e seu amigo Teddy – o ursinho eletrônico chamado de Supertoy em atenção ao nome do conto original e que tem a voz de Jack Angel– andam.

    Entre os Mecas (termo utilizado de maneira pejorativa para referir aos seres mecânicos), há trabalhadores braçais, gigolôs e demais profissionais do sexo. Logo é introduzido Joe (Jude Law), um Meca especializado em prazer, que tenta se auto preservar após armarem para ele parecer culpado pelo assassinato de uma mulher. Em comum com David, Teddy e demais seres mecânicos, há o DAS, que é o sistema de amparo a dor, o literal, que  faz a máquina se defender da dor e o não literal, resultado da perseguição e injusta imputação de culpa a si, a vontade de sobreviver os faz correr, e a ingenuidade e pureza acaba protegendo de certa forma o menino artificial.

    Os perigos que os “robôs” sofrem variam, entre milícias, sucateiros e gangues, que nesse momento fazem lembrar clássicos do cinema de décadas antes, como Easy Riders, Tron e fitas de horror. Incrivelmente, por mais que seja cruel a descrição, de gente interessada em perseguir seres pensantes, entre eles um garotinho, não há nestas partes nem um terço do amargor e melancolia da pouco menos de uma hora inicial de filme.

    É da parte dos humanos que a intolerância e malignidade é apresentada, seja nos shows de pão e circo que desviam a atenção do povo em geral, ou na mesquinha demonstração perene do Complexo de Frankenstein, no Flesh Fair. O profano prostituto e a criança inocente se embrenham pelo mundo, como uma união sagrada e que faz sentido, apesar das claras diferenças, já que tem aparentemente o mesmo desejo, de voltar aos braços de suas amadas, passando então, a perseguir uma nova amada, a Fada Azul.

    Toda a questão da descoberta de sua origem, de quem o criou e quem o fez, todos os preâmbulos lógicos e científicos não são nada perto da obsessão do garoto em ser quem ele não era. David é uma versão mais nova e menos desenvolvida de Data, bem mais sentimental que o Comandante de Jornada nas Estrelas: A Nova Geração, mas os dois compartilham muito mais que apenas o cérebro possivelmente positrônico.

    O final, onde o rapaz encontra a versão futura do seu próprio povo esbarra na sensação nostálgica, no desejo infantil dele de viver mais um único dia, ao lado de sua mãe de carne  e osso. Por mais conveniente que seja essa curva do roteiro, de apenas um dia dessa convivência, cai como uma luva no que seria o único desejo de qualquer recém órfão, de poder uma ultima vez passar 24 horas com a pessoa mais importante da sua vida, com a perda mais significativa que ele teve. David cumpre esse sonho, consegue saciar sua fome e sua sede, que não são nem de comida e nem de água, e sim da presença a quem ele desde sempre dedicou amor incondicional, e é na ilusão que ele sente contemplado. A pouca alegria que ele viveu em toda sua milenar existência é recompensada, em uma medida pequena, mas suficiente para aquecer seu coração mecânico, suficiente para fechar os olhos e se entregar ao lugar onde os sonhos nascem, sempre vigiado pelo seu amigo Teddy, o mesmo que sofreu tudo com ele e que o ajudou a ter esse último momento.

  • Resenha | O Problema dos Três Corpos – Cixin Liu

    Resenha | O Problema dos Três Corpos – Cixin Liu

    Certo dia, escrevi numa popular rede social que meu cérebro adoraria conhecer um ser alienígena, mas meu coração sentiria o contrário diante dessa experiência. Qual foi minha surpresa, então, quando todos adoraram esta publicação e a compartilharam, semeando esta mesma opinião tão inerente a curiosidade existencial do homem perante um universo profundo, e oco de vida. Afinal de contas, após termos a certeza de que Deus existe, e de onde viemos e para onde vamos, conhecer nossos irmãos de outras Terras é o nosso maior desejo, e paradoxalmente, um dos maiores medos que nos assola. Tal como um mistério irresistível, até mesmo delirante, ainda que grande demais para ser desvendado por meros mortais. Uma dúvida que faz nos sentir órfãos de um pai que talvez nem exista, numa sopa de letrinhas sem sentido algum além de nós, e apenas nós mesmos. Eis aqui um sentimento de desolação que pode unir a humanidade dentre tantos conflitos que criamos contra nossa evolução – tanto individual, quanto coletiva –, ou desuni-la, ainda mais, na iminência de não sermos filhos únicos.

    Por mais inquietante que isso seja, são essas dúvidas que regem a espinha dorsal da trama de O Problema dos Três Corpos, obra chinesa de ficção-científica que não se entrega em momento algum a fantasia, mantendo-se na gravidade das possibilidades tangíveis da ciência ao invés das loucuras de um faz-de-conta sonhador. O livro de Cixin Liu, um dos mais premiados autores chineses contemporâneos, é perfeito aos amantes de Star Trek e de outros produtos da mídia que se devotam ao caráter altruísta das maravilhas da ciência moderna, indo longe em seus avanços, e modelando a história das civilizações através de seus triunfos reais, e programados por grandes mentes a favor do Todo. Não à toa, Liu coleciona honrarias ao redor do mundo ao esquematizar tramas que desafiam o intelecto dos seus leitores, combinando tecnologia com ambição, e no melhor estilo dos mestres do gênero, tais como Arthur C. Clarke (2001: Uma Odisseia no Espaço), e Philip K. Dick (O Tempo Desconjuntado). Numa época em que a ciência é atacada por boa parte de um sociopolítico doente, e crente a teorias de Terra plana, e outras ilusões dignas de internação psiquiátrica, publicações como essa da editora Suma de Letras são uma dose cavalar de bem-estar garantido. Ainda há muita inteligência neste mundo, e operando para as causas certas.

    Ao descobrir o jogo de videogame “Três Corpos”, uma experiência imersiva que depende de um traje para que o jogador sinta as sensações que o jogo transmite ao entrar num mundo de ficção extremamente caótico a quem nele se aventura, o respeitado professor Wang Miao já tinha se envolvido num projeto ultrassecreto do ditatorial governo chinês para impedir que satélites de governos imperialistas de outros países (Estados Unidos e Rússia) vasculhem o gigantesco país asiático. Sem perceber por muito tempo o que o jogo poderia ter a ver com a segurança nacional da China, Miao começa a desconfiar de conspirações que podem mudar o curso da Terra, chegando até mesmo a duvidar de sua sanidade. Entrando em contato com agentes do governo já aposentados, e amigos que trabalham para os mais altos escalões de uma mentalidade política e militar absolutamente rígida, cujo nacionalismo é fatal e pode vir a restringir inúmeros direitos dos seus cidadãos, Miao se depara com uma contagem regressiva misteriosa a indicar algo tão inacreditável, quanto desesperador, envolvendo exploradores alienígenas e a nossa confiança (ou a falta dela) de que a nossa evolução científica, das cavernas até a era dos computadores, pode ajudar a China a se proteger contra uma provável (e sigilosa) ameaça a caminho, entre as estrelas.

    Ao desmembrar da forma mais simples e sedutora possível boa parte do encanto que as diversas questões universais da Física despertam aos seus fãs apaixonados, professores e cientistas da área, sempre em função de novos experimentos, novas descobertas e futuros rumos para suas carreiras de grande esforço, o autor faz de O Problema dos Três Corpos mais que uma ode à ciência e suas viabilidades, mas um propósito forte o bastante (proteger a nação, o mundo, as pessoas e tudo o mais que amamos) para que ela exista, resista e possa fazer toda a diferença na vida das pessoas, e das coisas em geral. A obra se desdobra num ritmo elegante no acompanhamento das tensões e reviravoltas inerentes a uma trama repleta de camadas, e que usa de flashbacks e capítulos por vezes bem curtos para traçar com precisão um elaborado labirinto de informações imprescindível a compreensão do grande final. Cada vez mais pessoas tomam conhecimento de que extraterrestres realmente fizeram as malas, atraídos pelas condições perfeitas à vida deste mundo azul, e estão a todo vapor voando para cá. E mesmo se o abismo tecnológico entre nós e eles de fato seja maior do que o que existe entre humanos e gafanhotos, o que fazer, diante de uma invasão predatória (ou não), além de confiar em nós mesmos? O conselho então é claro: vamos torcer pelo melhor, enquanto produzimos os nossos próprios milagres. Nada mais sensato.

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  • Resenha | O Tempo Desconjuntado – Philip K. Dick

    Resenha | O Tempo Desconjuntado – Philip K. Dick

    “E se eu tivesse caído no chão, através do ônibus? Com medo, ele pensou: e se eu também tivesse deixado de existir?”

    A bem da verdade, tudo começou (a se manifestar) dentro de um ônibus. A partir dali, da tentativa pueril de fechar os olhos, com toda a força do mundo, e tentar fazer com que tudo sumisse ao seu redor, forçando a realidade a obedecê-lo, Ragle Gumm não parou mais. Sua vida virou um grande ‘E se?’, tal uma folha de papel com inúmeras possibilidades origâmicas. E se ele pudesse manipular o real? E se esse real, cuja existência é indiscutível para as ‘pessoas normais’, for uma simulação, uma fachada, uma farsa elástica como uma massinha de modelar? E a pior das ideias: e se esse homem, o mais comum de todos, na família e na cidadezinha americana mais comum de todas, e que ganha a vida acertando concursos do jornal local por seguir um padrão matemático nas suas respostas, e se ele tiver descoberto, através de experimentos e confusões psicológicas, que existe algo acessível além do nosso espaço, e tempo?

    Publicado no Brasil pela editora Suma de Letras, numa belíssima tradução de Bráulio Tavares e capa dura original, O Tempo Desconjuntado, um dos clássicos de Philip K. Dick, o criador do ultra cultuado Blade Runner e da espetacular coletânea Sonhos Elétricos, adaptada recentemente pela série da Amazon, não nega as inspirações mais essenciais e fundamentais do escritor americano, um dos autores mais roteirizados de Hollywood até hoje. Isso porque, através dos seus livros, geralmente curtos e repletos de idealizações típicas da ficção-científica, seu viés puramente especulativo, inventivo e sempre indo além do real, e do presente, explode e atrai e estimula a nossa criatividade individual a níveis hecatômbicos. As proporções de seus contos são gigantescas graças ao olhar aguçado de Dick para o limiar entre a verdade, nua e crua dos fatos, e as possibilidades que podem surgir dela.

    Assim, o bom gosto e o bom senso do escritor nos guiam, e sempre dão o tom de suas tramas adoráveis e intrigantes, ou apenas esquisitas para muitos, particularmente situadas no limite dos questionamentos que a realidade guarda para si. Aqui, esses elementos que o destacam entre as outras mentes criativas do seu tempo estão ainda mais interessantes, além de desafiantes para qualquer escritor, já que transpor uma paranoia existencial na forma de uma narrativa tradicional e repleta de reviravoltas não é uma tarefa fácil. O ano é 1959, e nada parecia ser o que era para ninguém. Muito menos para Ragle, homem bom e honesto que passa a duvidar da verdade geral das coisas e ter um objetivo só: escapar de onde mora, e dos eventos bizarros e surreais que parecem persegui-lo.

    Estaria ele ficando louco, ou tudo não passa de uma grande coincidência encenada pelo destino para desprendê-lo das normalidades? Cada vez mais convencido de que essa realidade é falsa, muito falsa, Ragle aspira e cobiça então pelo real, nem que esse ‘real’ seja apenas a sua consciência e nada, nem ninguém mais. Nessa falta de sentidos quase dostoievskiana, ele desenvolve para si uma alienação que o transporta para uma desconfiança total, muito aquém do bem estar mental que um cidadão pode ter, e que muitos apresentam (normalmente) na adolescência. É nesse período que tudo parece mudar, contra a nossa vontade, alterando nossas noções num processo doloroso para todos os envolvidos, e o que antes era sólido se fragmenta e nos assusta sem nenhum aviso prévio.

    Nessa experiência literária nada menos que elucubradora, e que requer atenção e imersão total dos seus leitores corajosos, fato é que essa auto perturbação de Ragle reflete os idos da Guerra Fria que os Estados Unidos passaram, quando o medo de uma invasão soviética era enorme, causando uma insegurança generalizada no povo americano como nunca antes se viu. Junte essa instabilidade política, que reverberava diretamente nos ânimos do homem comum, com as ideias utópicas e reflexivas de Dick, e temos ai um prato cheio para PKD (como também é conhecido) destilar mais uma vez suas alegorias cheias de vida e deturpações imaginárias, por mais malucas, imprevisíveis e deliciosas que elas acabam sendo, do início ao fim.

    A partir de que ponto alguém merece ser considerado um lunático? Vale a pena cercar-se apenas do que é bom, e deixar de fora o indesejável? Entre essas e outras perguntas, já próximo de seus momentos finais, O Tempo Desconjuntado evidencia, sem mais o uso de metáforas e com grande objetividade, as consequências claras (ainda que contextuais, a história) do desapego voluntário de um homem as camadas reais da sua vida, explorando o custo psicológico e emocional desse auto engano que parece infectar Ragle dia após dia, através de causas um tanto surrealistas, e porque não epifânicas, e que afirmam Dick como um dos mestres do século XX mais prolíficos do seu gênero literário – e que continua a migrar, com suas histórias, para todas as mídias, fascinando leitores e espectadores mundo afora, sem data para que esse encantamento acabe.

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  • Resenha | Fahrenheit 451 – Ray Bradbury

    Resenha | Fahrenheit 451 – Ray Bradbury

    “[…] E quando finalmente montaram a estrutura para queimar os livros, usando os bombeiros, reclamei algumas vezes e desisti, pois não havia mais ninguém reclamando junto comigo. Agora é tarde demais.

    Distopias são atraentes em níveis grandiloquentes ao extremo para quaisquer escritores que idealizam a chance, que sentem com fervor o néctar de uma premonição fantasiosa, sedutoramente louca e porque não astuta, como neste caso, de um futuro aquém ou além do esperado por previsões realistas e, sejamos francos, nada convidativas a grandes aventuras. O acaso é a grande regra das histórias de um amanhã distópico, sempre a observar nos seres humanos as consequências objetivas desta imprevisibilidade irresistível para o escriba a interagir conosco; sejam essas consequências expressas no nosso físico, no social, na ciência, na política, na religião, ou talvez da forma mais cruel possível: na nossa cultura.

    O escritor norte-americano Ray Bradbury vai longe no seu retrato de um mundo totalitário, conjurando uma forma de estado e seus agentes de controle social que abominam os livros (por razões não tão óbvias assim, ainda que com total perfídia a qualquer tipo de liberdade que o cidadão possa ter), perseguindo leitores que possuam exemplares em sua casa e queimando, literalmente, até mesmo as traças que possam habitar os manuscritos. Bradbury sabe como intimidar o leitor página a página, detalhando com rigor o funcionamento desse estado, sua lógica e ferramentas de repreensão, e a sobrevivência de quem ainda sabe que, aonde se queimam livros, no final queimarão os seus leitores (o uso de palavras-chave na sua prosa é encantador, contextualizando através da Palavra um mundo onde a violência é o meio, e o fim.).

    Dentre as cinzas culturais que sujam e envergonham a sociedade alienante, e alienada, de Fahrenheit 451, destacam-se alguns poucos homens e mulheres, figuras um tanto isoladas, muitos destes frios e pessimistas, mas inconformados com sua situação de cegueira coletiva imperial. Ao não concordarem com o sistema determinista que manda arder a história do mundo sob o calor de 451º na escala fahrenheit (com medo que o povo questione seus arredores, temeroso quanto o poder da escola, das disciplinas, da pesquisa), cedo ou tarde estes cidadãos controlados criarão forças para tentar derrubá-lo, mesmo que sua tentativa sirva apenas como aviso: Ainda não estamos totalmente cegos para não perceber as cinzas ao redor. O livro de Bradbury, sua grande obra prima, escala reflexões de extrema pertinência ao papel da cultura na sociedade, como um todo, e como ela pode ser a maior arma que uma pessoa pode contar na vida.

    Na formosa edição brasileira publicada pela Globo Livros, por meio do selo Biblioteca Azul, com tradução de Cid Knipel, a leitura se torna dinâmica ao ponto de sentirmos, ou ainda calcularmos, o desenvolver sutil de uma guerra contra a intelectualidade alvejada que reside nas mãos do povo, como também o de uma rebeldia necessária num caos civilizatório desses no qual bombeiros não apagam, mas causam o fogaréu a exterminar nossos cérebros. Há então aquele que trai a corporação para não trair a sua raça, propriamente dita. Humano, afinal. Mesmo em uma época onde livros migram para as telas dos celulares e computadores, não fadados somente ao papel, museus se tornam o alvo preferido dos incendiários. O que arde vai além do físico, seria o nosso passado mesmo, impossibilitando o conhecimento geral sobre as nossas fundações, e assim, por consequência, o que vem depois. É isso o que eles desejam, e Bradbury deu o seu alerta da forma mais sagaz, divertida e solene possível, ainda em 1953: é isso o que eles mais desejam.

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  • Resenha | O Último Homem – Mary Shelley

    Resenha | O Último Homem – Mary Shelley

    O Último Homem, de Mary Shelley, edição bilíngue da editora Landmark, é uma das obras inaugurais de ficção científica mundial. Publicado em 1826, o romance narra um futuro apocalíptico na Inglaterra do fim do séc. XXI, sem, contudo, um esforço de imaginação completo sobre o porvir. Ainda encontramos uma sociedade com valores vitorianos onde a Inglaterra é o centro do mundo e diversas tecnologias com inspiração steampunk, como o balonismo, se perpetuaram. Uma obra mais complexa que Frankenstein, sem dúvida, mas por motivos de estilo do que especulação científica e social sobre o futuro.

    Primeiro vamos falar sobre a edição da Landmark. Com uma tradução hercúlea (e também notas de rodapé) de Marcella Furtado, encontramos o texto inglês original ao lado da versão em português. A diagramação, contudo, peca pelas letras pequeninas, o que atrapalha a leitura à noite ou em lugares muito claros. Em adicional, falta um texto introdutório (ou “Posfácio”) que explique as particularidades e importância da obra no gênese da ficção científica e quais outros autores foram influenciados por Shelley.

    Voltando à história, o romance narra a odisseia de Lionel, órfão de um nobre fanfarrão e empobrecido, e seus amigos e familiares, Adrian, Raymond, Perdita, Idris e Evadne, durante os anos de peste, guerras e mortes na Inglaterra do séc. XXI. O romance, como explicado na Introdução da obra, é o resultado de traduções feitas por uma dupla de cientistas a partir de textos encontrados na Caverna da Sibila, em Nápoles, Itália, em 1818. Sibila, na tradição mitológica, era uma sacerdotisa que recebia sussurros do deus Apollo sobre o futuro. Ela deixou textos registrados em vários idiomas e os cientistas os encontraram, traduziram e publicaram essa profecia do fim dos tempos.

    No texto profético de Shelley, a peste bubônica causa o fim da humanidade. Como no século XIX ainda não se sabia exatamente que a doença era transmitida por pulgas entre animais de pequeno porte, e, em séculos anteriores a praga dizimara um terço da Europa, a autora achou conveniente que a morte ceifasse a Humanidade em forma de peste. Este, aliás, talvez tenha sido o componente de inverossimilhança da trama: Shelley não tratou de evoluir a Ciência em seu livro. Ela escreveu atalhos, remendou ideias requentadas (como o uso de máquinas variadas), mas não se ateve a detalhes sobre o funcionamento delas no futuro.

    A evolução é mais narrativa que científica. A autora potencializa o romance com um estilo rico (se você gosta de descrições, vai fundo), um certo culto à natureza, exaltação de sentimentos, destino não mais fixo, espectros, donzelas que se passam por soldados, intrigas amorosas etc. Ou seja, é uma obra com componentes de ficção especulativa científica, mas não apresenta foco total em definir ideias sobre o novo gênero. O que a autora faz é alterar alguns componentes narrativos dos cânones do Romantismo e impingir mudanças, sutilezas estruturais, em conjunto com uma imaginação não-totalmente renovada sobre o futuro.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • Resenha | Nathan Never: Os Olhos de um Estranho

    Resenha | Nathan Never: Os Olhos de um Estranho

    De todos os títulos relançados da Sergio Bonelli Editore pela Mythos, Nathan Never foi o que mais me despertou interesse. Incrivelmente, foi o que eu mais negligenciei por algum estranho motivo que eu não sei explicar até o momento que eu escrevo essa resenha. Entretanto, posso afirmar que foi disparado o melhor fumetti que eu li. Digo isso porque apesar de leitor ávido de quadrinhos, nunca fui familiarizado com os quadrinhos italianos da Bonelli. Só que esse novo mundo que me foi apresentado é por demais interessante, e dentre eles, Never foi o que mais me agradou.

    Criado por Michele Medda, Antonio Serra e Bepi Vigna, as histórias de Never são ambientadas em um futuro mais ou menos distópico em que o combate ao crime é feito por agências policiais e corporações privadas de detetives, como a Agência Alfa onde Nathan trabalha. Na trama de Os Olhos de um Estranho, o Agente Alfa investiga o assassinato de Hannah Owens, uma mulher solitária e introvertida que levava uma vida aparentemente comum. Com a ajuda de Sigmund Baginov, Never descobre que outras mulheres com perfil semelhante ao de Hannah também foram mortas da mesma forma que ela. A partir daí, Nathan descobre que o caso pode ser mais complicado do que imaginava.

    Originalmente publicada em Nathan Never nº 9 (fevereiro de 1992), a HQ conta com roteiros de Michele Medda e desenhos de Stefano Casini. É bom observar como o ambiente onde a história é passada guarda enormes semelhanças com Blade Runner: O Caçador de Andróides. Até mesmo o protagonista tem um certo quê de Rick Deckard, o protagonista do filme de Ridley Scott que foi interpretado por Harrison Ford. O ritmo do roteiro é vertiginoso desde o início, ainda que possua uma forte pegada noi Os diálogos são espertos, principalmente na interação do Agente Alfa com alguns ótimos coadjuvantes como Sigmund Baginov e Legs Weaver (declaradamente inspirada em Sigourney Weaver). Os desenhos de Stefano Casini em certos momentos parecem storyboards detalhados de algum filme, com planos que caberiam perfeitamente em uma tela de cinema. Em vários momentos me peguei viajando nos quadrinhos e imaginando tudo em movimento como se fosse um filme.

    Sintetizando em poucas palavras, Nathan Never foi o fumetti mais interessante que li dessa leva que a Mythos relançou e digo sinceramente que me tornei um fã de suas histórias.

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  • Crítica | A Repartição do Tempo

    Crítica | A Repartição do Tempo

    De Santiago Dellape, A Repartição do Tempo é uma comedia brasileira que não tem medo de entrar no filão de filmes de gênero, acrescentando muitos elementos de ficção cientifica em sua trama. O longa mostra um empresa de serviço publico, extremamente burocrática, que registra patentes. Um dia, o chefe de departamento Lisboa (Eucir de Souza), que era um sujeito triste e ranzinza se cansa da morosidade de seus servidores, e resolve prende-los no porão da base, que é uma espécie de bunker nuclear, criado pelos militares durante a guerra fria. Nesse ínterim, ele usa maquina do tempo que está para ser patenteada, para pôr em pratica seu estranho plano.

    O modo como ele utiliza essa maquina é igualmente estranho, uma vez que o vilão usa esse equipamento para matar a si mesmo, na verdade, sua contra parte. Um dos funcionários, chamado Jonas (Edu Moraes) consegue fugir da prisão, e encontra sua duplicata. Depois, intui que está em um paradoxo temporal, como em O Feitiço do Tempo, no clichê comum do Dia da Marmota.

    Jonas tenta chamar as autoridades, mas esbarra na burocracia dos outros órgãos públicos, em piadas afiadas do texto de Delappe e Davi Matos. O mesmo mal que os trabalhadores presos cometem, também sofrem quando precisam e o comentário metalinguístico é ágil, ácido, fugindo de obviedades ou piadas marcadas por claquetes.

    Há um uso na trilha de dois aspectos incomuns, o primeiro é o tema musical de A Hora do Brasil, e o segundo é a discografia de Raul Seixas, principalmente Cowboy Fora da Lei e Como Vovó Já Dizia. A mistura presente nesse elemento acrescenta bastante a trama, misturando de forma harmoniosas um tema em canção típico dos governos com o lirismo de um artista que era rebelde e contra cultura.

    O final tem uma breve explicação sobre a loucura que o roteiro explora, feita pelo Doutor Brasil (Tonico Pereira), que é o criador da maquina do tempo. As discussões em A Repartição do Tempo são existenciais, mas não no sentido de tentar determinar de maneira arrogante como o homem deve ou não viver seus dias, ainda que discuta o quanto se perde tempo com o exercício de uma profissão chata, enfadonha e que não acrescenta em nada nem para a nação e nem para quem necessita dele. O texto se fortalece demais ao culpabilizar a morosidade de alguns setores públicos aos patrões respectivos e não aos funcionários chão de fábrica, e só por lembrar disso já é algo digno de muita nota.

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  • Review | The OA – 1ª Temporada

    Review | The OA – 1ª Temporada

    The OA tem muita sorte, na verdade sorte não é a palavra mais correta, já que é um certo mérito, mas é de fato muito feliz de ter um esqueleto narrativo interessante, porque se dependesse do restante… Séries se vendem pelos seus pilotos, é o episódio mais importante de qualquer produção seriada, é ele que apresenta personagens, narrativas, plot e ainda instiga. Essa é sua função. E passar do piloto de The OA não foi nada fácil. Os outros sete episódios deixam bem claro que os problemas se estendem por toda a temporada e a culpa não é o possível desinteresse de quem assiste.

    Prairie é uma mulher cega que desapareceu durante sete anos, sem pistas, e que retorna com a visão misteriosamente recuperada, cicatrizes nas costas e se denominando a OA. Ela decide reunir um grupo de cinco pessoas para contar sua história e com isso entramos numa rede de temáticas, desde ficção-científica ao metafísico-espiritual.

    Para clarear as coisas, a série tem um saldo positivo, conquista e constrói engajamento, mas como já dito, tudo por causa da ideia que se passa, não pelo todo. A estrutura narrativa é falha demais, enquanto não expõe quase nada e gera infinitas questões, também verbaliza situações e exagera na explicação super expositiva. Enquanto faz personagens terem arcos sobrando (como uma paquera no colégio, por exemplo), outros ficam completamente deficientes de tridimensionalidade ou informações.

    O roteiro e a montagem também não conseguem distribuir as narrativas, são blocos extensos que te fazem esquecer do outro e vice-versa, e de repente o tédio já é presente e um maior interesse em um do que no outro também. Não há fluidez e várias vezes falta ritmo. A personagem principal frequentemente deixa de ser uma personagem e passa a ser a materialização de um desejo da série de ser pedinte e isso nos tira um pouco da imersão, e por fim, a série tem um desequilíbrio gigante em criar mais questões do que respostas, longe do público querer tudo na mão, mas a sensação que fica é que mistérios são mistérios apenas por serem, e não há muita recompensa do lado de cá. Resta esperar o que está por vir, em cegueira.

    Mas calma, que bela história. Não aparece ideias tão interessantes assim faz tempo, toda a “mitologia” criada é instigante e nas horas mais difíceis é o que nos mantém presos aos episódios. É um plot visivelmente pensado com carinho e cheio de camadas que nos fazem se interessar mais e mais e ficar encantados quando aos poucos podemos ver certos potenciais e caminhos. A câmera é muito boa e a melhor amiga da própria história quando ajuda a contá-la. Nos dá informações preciosas em planos simples e cria atmosferas pontuais, junto com uma fotografia muito chapada, clara e bonita.

    A música é boa e certeira para criar grandes momentos, as atuações são funcionais e as personagens transmitem relacionalidade apesar do roteiro desequilibrado. The OA cumpre o papel de ser entretenimento na maior parte do tempo, falha na estrutura seriada, traz ideias incríveis e temáticas carregadas de potencial, consegue ser diferente como parece querer ser e isso acarreta em muitos mind blowings, mas precisa melhorar bastante para ser de toda boa.

    Não conquista à primeira vista, mas às vezes o que importa é que toca lá no fundo, e quanto toca…

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Crítica | Aniquilação

    Crítica | Aniquilação

    Ao assistir The Cloverfield Paradox, a fantasia lançada na Netflix em 2018, depois da Paramount jogar a bomba no colo da plataforma online já visando o fracasso que tinha em mãos, tive a certeza retumbante em poucos minutos de exibição, o que se concretizou no final de uma trilogia que começou de forma decente, e acabou de maneira vergonhosa: Hollywood está vivendo desde alguns bons anos a síndrome das boas ideias em mãos completamente equivocadas. Essa cria de J.J. Abrams talvez seja um dos auges desta epidemia, mas há outros exemplos tão simbólicos a esse problema quanto o longa em questão que a Netflix aceitou alojar.

    Entre tantos títulos que deixaram a desejar nos últimos anos, um número que só cresce entre boas e poucas ideias mal germinadas pela qualidade da produção atual do mainstream, lembro-me ainda sobre a expectativa em torno de Elysium, em 2013. Essa destacou-se por envolver um filme de premissa fantástica, mas ambiciosa demais para o cineasta que ousou projetá-la na tela, com toda a parafernália de efeitos digitais, contexto sociopolítico e grande elenco que usou como muletas e meros atrativos para um distopia frustrante, e absolutamente esquecível.

    Contudo, o problema aqui vai além. A escala dos eventos no filme de Alex Garland são muito menores que o épico espacial estrelado por Matt Damon, e por não ter responsabilidades em fazer uma aventura explosiva para atrair o grande público, o tratamento inteligente dos temas e subtemas empregados em Aniquilação, adaptação do livro homônimo de Jeff VanderMeer (leia nossa resenha sobre o romance), torna-se muito mais enfático, simples e preciso na abordagem dos mesmos, seguindo os passos de cinco mulheres cientistas enviadas à zona, um local inabitado onde inúmeros mistérios desamparados pelas leis da física as aguardam. Uma premissa tão curiosa, e tão poderosa em sua significação, que mesmo para um diretor iniciante cujo currículo nota-se um Ex-Machina, a melhor ficção científica da década, profundamente contemplativa, filosófica e inteligentemente econômica em tudo que induz a nossa reflexão, o resultado poderia facilmente estar mais uma vez acima de qualquer média qualitativa recente.

    Natalie Portman, Oscar Isaac (sofrendo nessa segunda vez na parceria com o cineasta) e a ótima atriz Jennifer Jason Leigh fazem o que podem, perdidas no suspense que o elemento metafísico produz nas relações e destinos das suas personagens. O longa se passa numa espécie de lugar-situação, um plano paralelo despreparado para a humanidade e a sobrevivência no local, mas é incrível como o filme desaba quando aposta na expansão dos seus temas e vai além do minimalismo do começo, ou melhor dizendo, das primeiras cenas. Garland, talvez se presumindo genial, um Nolan da vida, usa seu filme em raros e tímidos momentos para trilhar o caminho entre a ficção científica sensata, e o tudo-pode da fantasia ilógica, explorando com brevidade e insegurança o limiar entre uma e outra. O resultado é insosso, inconstante e completamente incompleto, não importa em qual plataforma o filme esteja disponível.

    Salvo uma sequência ou outra lá pelo meio do filme, como quando as cientistas se deparam pela primeira vez com uma forma de vida típica da zona que investigam, tudo é de um mau gosto irritante e mais vasto que os territórios por onde nos aventuramos. Já tivemos, em 2014, um Solaris para o grande público chamado Interestelar, e agora temos um Stalker enlatado para as massas que desconhecem o valor de um Andrei Tarkovski, gênio do cinema que não chegou a assistir a desglamourização de uma de suas mais inconfundíveis assinaturas, muito além do talento de um principiante que não se chama Orson Welles: a construção profundamente cinematográfica de um pensamento filosófico sobre determinado tema, sempre a favor de uma ação enigmática na tela encenada para ser revista inúmeras vezes, e com a mais devota das percepções possível, sendo este o exato oposto desta farsa intitulada de Aniquilação.

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  • Resenha | Uma Princesa de Marte – Edgar Rice Burroughs

    Resenha | Uma Princesa de Marte – Edgar Rice Burroughs

    O livro conta a história de John Carter, ex-combatente do exército confederado, que tenta recomeçar a vida depois de perder tudo com o fim da Guerra Civil. Inexplicavelmente, o capitão vai parar em outro mundo: Marte. O planeta, mesmo com sua aparência inóspita, possui diversas formas de vida, inclusive, seres inteligentes e desenvolvidos que vivem em sociedade. Contudo, assim como na Terra, vários povos estão sempre em guerra Carter cai – quase literalmente – no meio dessa batalha. E, como todo bom herói, irá enfrentar vários inimigos, fazer muitos amigos e, lógico, se apaixonar por uma princesa que, em algum momento, precisará ser salva.

    Mais conhecido pelo seu personagem mais famoso – Tarzan – em 1912, Edgar Rice Burroughs iniciou a publicação de uma série de contos que posteriormente seria transformada numa coleção de 11 livros, de que este é o primeiro volume. Burroughs publicava as histórias sob o pseudônimo de Norman Bean, pois temia sujar sua reputação contando aventuras sobre marcianos e viagens espaciais. Apenas os três primeiros da série tem como protagonista o capitão John Carter.

    O autor faz uso de um artifício bastante comum pra contar a história. Ele mesmo é um personagem, que recebe uma herança de um tio e, junto com o testamento, lhe é entregue um manuscrito. Nele, o tio, John Carter, contava suas aventuras em Marte. Sendo assim, o livro é narrado em primeira pessoa, o que dá ao leitor apenas a visão de Carter sobre todos os eventos.

    “Não sei por que eu deveria temer a morte. Eu, que morri duas vezes e continuo vivo. Mas continuo tendo o mesmo medo de alguém que, como você, nunca morreu antes. E é por causa desse terror pela morte que, acredito, continuo tão convencido de minha mortalidade.
    Por causa dessa convicção, decidi escrever a história dos períodos interessante da minha vida e morte. Não posso explicar tal fenômeno, mas apenas registrar aqui, com as palavras de um simples soldado, a crônica dos estranho eventos que se abateram sobre mim durante os dez anos em que meu cadáver descansou em segredo em uma caverna do Arizona.”
    (p.14)

    É possível afirmar que Burroughs é tipo um Jules Verne, mas sem se importar muito com a acuidade científica. Sua narrativa é muito mais focada na aventura do que na ciência, por essa razão alguns não classificam seus livros como ficção científica. É uma obra com alto teor imaginativo. Basta ver que a aventura se inicia quando o protagonista é transportado para Marte, assim, sem mais nem menos, numa cena do tipo “mentaliza e vai!”. Não se pode analisá-la, principalmente quanto ao aspecto sci-fi, pensando-se na ficção científica mais recente, que é muito mais “tecnológica” do que fantasiosa. Mas nem por isso, o autor despreza alguns fatos científicos decorrentes da presença de um humano em Marte. Acostumado à gravidade da Terra, cerca de 3 vezes maior que a de Marte, Carter de certa forma ganha superpoderes. Com seus músculos habituados a funcionar em uma gravidade maior, ele acaba se tornando mais leve, mais forte e mais veloz, o que lhe angaria a admiração dos marcianos.

    Burroughs usa e abusa da criatividade ao descrever a fauna e flora que existem em Marte, diferente do conceito atual de que o planeta é apenas um imenso deserto – basta lembrar de Perdido em Marte, de Andy Weir. A riqueza de detalhes dá ao leitor a impressão de que aqueles seres, independente de sua viabilidade biológica, poderiam, sim, existir no planeta (vale destacar que um dos poucos pontos positivos do filme foi a fidelidade às descrições do autor). Além disso, Burroughs dá bastante atenção às civilizações que habitam o planeta, seus costumes, sua organização social, hierárquica e bélica.

    Por ter sido produzido em fascículos, todos os capítulos têm algo que desenvolve a trama e, lógico, uma boa dose de ação. E é com esse olhar que o leitor atual deve se aproximar do texto. A leveza e, talvez, a extrema simplicidade da trama podem parecer pouco atraentes hoje em dia. Mas vale lembrar que são características inerentes ao formato como o livro foi produzido e publicado em sua época.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.