Crítica | O Corcunda de Notre Dame
A versão da Disney para o clássico O Corcunda de Notre Dame de Victor Hugo começa dramático, com uma tela preta, acompanhada de sinos franceses badalando. Depois do anúncio estilizado (belíssimo por sinal) a “câmera” sobrevoa a capital da França, onde o Arlequim Clopin faz as vezes do Gênio da Lâmpada como em Aladdin, no sentido de descrever a historia principal de maneira lúdica e quase literária. A narrativa envolve Quasímodo, o jovem deformado responsável pela manutenção dos sinos da catedral que descobrirá que o mundo é bem maior que as aparências arrotam, além de apresentar ao espectador uma lição moral bastante profunda.
A adaptação é bastante suavizada e mesmo assim é bem dramática, desde o começo ela trata de juízes poderosos cumpridores da lei, e receio religioso. A escolha de Gary Trousdale e Kirk Wise é por usar o romance para discutir a dicotomia entre aparência e conduta de caráter, reunindo elementos fabulescos, típicos dos clássicos da Disney, cheio de personagens que servem de alívio cômico, e que fazem perguntar se a solidão do zelador do campanário não enlouqueceu devido ao isolamento social que é obrigado a viver, portanto, tanto a vida dos objetos inanimados quanto os fatos que ocorrem consigo, podem ser apenas uma fantasia de uma de suas brincadeiras com as miniaturas que ele talha em madeira.
A persona do juiz eclesiástico Frollo é cruel, manipuladora, mentirosa e dominadora, ele é um homem injusto e vaidoso, tão arrogante que não se enxerga como o vilão que é. Impressiona como o culto e louvor típico dado aos vilões da Disney normalmente não o inclui como figura importante, apesar dele ser um sujeito ligado a igreja, é bem próximo do diabo que tanto renega. Sua trajetória, de encarcerar e julgar pelas aparências encontra muitos paralelos com a hipocrisia infelizmente comum a maioria dos religiosos.
Já a mentalidade de Quasímodo é bela e ingênua, fantasiando sempre com o convívio social comum. Apesar de ouvir tantos impropérios de seu mestre ele sonha com a liberdade, com o transito sem restrições pelas ruas francesas, mesmo que corra o risco de sofrer rejeição por conta de sua má formação estética. O conjunto de personagens é rico, e o roteiro trata de abordar um de cada vez, primeiro Frollo, depois o corcunda e logo depois o militar Phoebus e a bela e voluptuosa Esmeralda.
Apesar do texto ser rápido, há espaço para mostrar que é exatamente a personagem mais perseguida que pioneiramente trata o personagem bem. A música de Alan Menken com letras de Stephen Schwartz ajuda a aplacar bastante essa sensação, de modo que mal se percebe que algumas sub tramas são mostradas de maneira muito rápida. O filme utiliza bem demais os efeitos em 3d, semelhante ao clássico da Dreamworks O Príncipe do Egito, quase sempre para evidenciar a imponência das figuras autoritárias francesas.
Os momentos do Festival dos Tolos são repletos de cores e músicas animadas, em meio a um filme onde os momentos cantados são normalmente pesados. No entanto, mesmo este termina tranquilo. Quasímodo parece fadado a ser humilhado e destratado, e por mais que ele seja inocente até certo ponto, é impossível não notar o simbolismo, de que setor jurídico, representado por seu mestre não cuida dele, enquanto a figura cigana e perseguida o enxerga bem, em paralelo que varia entre o desejo carnal e a figura materna, dada que Esmeralda é bem parecida com a mãe do personagem principal. Para um desenho animado dos estúdios Disney, o subtexto é bem adulto e pesado.
O estado melancólico de Quasímodo contém um simbolismo poderoso. O rapaz de boa índole, praticamente sem pecados se vê tão sem graça que não consegue enxergar a luz celestial sobre si, apesar dos muitos talentos artísticos como sineiro e escultor, apesar da boa forma atlética. A lógica de auto louvor é totalmente invertida na obra, pois o sujeito da vilania extrema se enxergar como um homem justo e bom, quando é podre e volúvel, incrivelmente, essa hipocrisia é facilmente vista na realidade, os poderosos normalmente são carregados desses falsos moralismos que consomem Frollo e perseguem o herói da jornada.
A trinca de animações conduzida pela dupla por Wise e Trousdale tem uma temática comum, tanto este quanto A Bela e a Fera e Atlantis: o Reino Perdido são historias sobre excluídos que são diferentes e bondosos apesar da aparência ou origem diferente do comum, ainda que cada uma dessas seja diferente entre si, tanto em tons quanto em humor e acidez narrativa.
O Corcunda de Notre Dame possui músicas apoteóticas, que dão a obra um caráter semelhante ao das óperas, na violência, truculência e apelos leves a fantasia. Tudo é muito bem medido, até a dualidade com relação a vida das gárgulas, que servem a maior parte do tempo a função de fazer rir, mas que tem um papel até aterrador, no destino do Juiz Frollo. Este é um clássico mundial da animação muito subestimada, ainda mais se comparada com os outros filmes da renascença da Disney.