Crítica | Depois de Horas
O capitalismo tenta moldar o homem vinte e quatro horas por dia, e não consegue. No fundo, nada muda. Nossa essência é aquela que conviveu com muito daquilo que até já esquecemos, mas que não deixamos pra trás no curso da nossa “evolução”. Quando pode, essa essência reaparece, aflora em qualquer profissão, condição de ambiente ou situação humanamente possível e sai por ai, saltitante e livre, não a procura de dinheiro. Nem de poder. Muito menos caçando amor, ou aceitação.
Fato é que, assistindo Depois de Horas, a resposta sobre aonde aponta a bússola do que somos parece tão nítida e tão bem-humorada, ao mesmo tempo, que a irreverência que Martin Scorsese embutiu na busca caótica (e quase surrealista) de um homem por “algo”, um reles escapismo numa Nova York sem fim e umbralina, parece suavizar com a ajuda do neon e da correria a verdade contida nos impulsos humanos, em prol duma diversão metafórica e reflexiva que conquistou o festival de Cannes, em 85.
Os tipos da megalópole saltam das portas, dos becos e dos táxis quando a noite cai. Civilizados, ou nem tanto, seguem seus próprios instintos da mesma forma que Paul Hackett também segue. Dono de uma postura qualquer, Paul decide encontrar uma garota qualquer numa noite qualquer, e logo após o seu emprego num prédio comercial qualquer. Segue confiante até o prédio da menina, bem vestido e carregando as melhores intenções que cabem nas ruas traiçoeiras de uma Nova York 100% impiedosa.
Tudo, absolutamente tudo dá errado na sua ex-noite perfeita, do táxi que pega até o alvo romantizado de um solteirão, até o retorno ao seu emprego lugar-comum que, por mais rotineiro que seja, oferece a segurança e a paz que o cachorro precisa depois da maior noitada da sua vida. Isso remete aliás a um grande trunfo do filme: Nos aproximar com facilidade ao drama de um peixe fora d’água, à medida que Paul, o perseguido, corre e segue aprendendo suas lições na sua ridícula aventura até o sol raiar, por mil e uma noites reduzidas em longas e breves doze horas.
Também é óbvio que essa premissa de “tudo o que pode dar errado, vai dar errado com certeza” acaba dialogando prontamente com a própria profissão de cineasta – Francis Ford Coppola, que o diga –, desde os primeiros storyboards até o imprevisível corte final do filme. Assim, e sempre autoral, Scorsese transforma a jornada infernal (beira o inacreditável) do pobre Paul, guiado no começo por sexo e no final por medo, num quadro jocoso da própria experiência intensa que o diretor tem com sua visão de mundo, seus personagens e um ritmo sempre dependente da inquietude, do acaso, e dos tipos de violência que pode nos assolar.
Na cadência de eventos satírica e tragicômica que movem a noite interminável de um bicho diurno que ousa passear pela noite, nada melhor que apelar para o surrealismo que pode se extrair das desventuras do destino. Numa das melhores cenas, talvez a que melhor resume o filme, Paul (Griffin Dunne, papel da carreira) entra num banheiro e acima da privada, a ilustração é clara: Um tubarão morde o pênis de um cara. Ele observa o desenho, como se desse pra ficar ainda mais aterrorizado na mesma noite, e subentende a mensagem: Se voltar inteiro pra casa, caso volte, a sua sorte é maior que a sua ousadia.
Mas a moral de Depois de Horas é inesperadamente ambígua. Talvez apenas aponte, do começo ao fim, o lugar que o proletariado nasceu mesmo para viver: Numa empresa, obediente e durante o dia, com a noite fadada para ser habitada por quem vive melhor longe da claridade do mundo. Ou porventura, que nem todos conseguem se adaptar a uma realidade que não estão acostumados, sendo essa uma moral um tanto ingênua e que não combina com as reflexões acerca do papel do destino nas nossas vidas. Como se o humor negro para Scorsese fosse em vão. Uma das grandes comédias dos últimos quarenta anos.
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