Resenha | Jane, a Raposa e Eu
Sabemos que o bullying e os absurdos padrões de beleza permeiam a sociedade através dos anos, oprimindo sim a todos, mas especialmente as mulheres desde a mais tenra idade, sempre exigindo delas muito mais do que exigem dos homens, colocando sobre o sexo feminino pressões esdrúxulas e inexplicáveis como forma de reafirmação de padrões validados por uma cultura que hierarquiza mulheres em relação aos homens nas mais diferentes instâncias.
Em Jane, a Raposa e Eu as autoras canadenses Isabelle Arsenault e Fanny Britt se juntam para narrar as agruras e os percalços pelos quais passa a tímida Hélène, recém excluída do grupo de amigos da escola e agora mais uma das crianças deslocadas e desoladas a perambular pelo lugar, sendo insultada e depreciada por todos à sua volta.
Se sentindo cada vez mais excluída e diminuída perante os demais, a garota se apega substancialmente à leitura de Jane Eyre, clássico da literatura escrito por Charlotte Brontë, sempre se comparando com a personagem-título, e buscando nela forças para superar a melancolia decorrente do abandono por parte de suas colegas, enquanto convive com seu descontentamento com o próprio peso e com a situação em que se encontra no seu círculo de convivência e diante do mundo propriamente dito.
Em uma prosa intimista e sensível, Arsenault e Britt conseguem emular a sensação de desalento e de solidão que uma criança pode sofrer quando se vê perseguida por todos os lados, sem conseguir expressar o que sente e se afundando cada vez mais em seu desencanto com o mundo. A crítica aos padrões estéticos e às pressões pelas quais as meninas passam – muitas vezes espelhando traumas e opressões também vivenciados por suas mães – é trabalhada de forma delicada e tocante, fazendo uso em diversos momentos do aspecto simbólico para extrair significação e profundidade para a trama.
Narrada quase que inteiramente através do fluxo de pensamento da própria Hélène, a história nos aproxima das emoções da protagonista e nos permite identificar como os acontecimentos do dia a dia são por ela percebidos e como ela se afeta por cada palavra, gesto ou olhar lançados para si pelos demais.
Tanto Jane Eyre quanto a raposa, citadas no título expõem perspectivas da mente de Hélène, que vê a protagonista do romance de Brontë como um ideal de mulher inatingível e enxerga na raposa com a qual se deparou durante o acampamento escolar como um símbolo da rejeição e do medo que tomam conta de sua cabeça confusa e atribulada.
A amizade, contudo, surge nesse tocante romance gráfico como aspecto redentor para a garota, fazendo de Géraldine a parceria necessária para esse momento difícil, a existência que devolve cor ao mundo de Hélène e a faz deixar alguns traumas de lado, largando o vazio e abraçando a esperança por dias melhores.
Em uma narrativa que se apega ao poder da amizade como saída para esse círculo vicioso de depreciação e de desalento, a obra extrai da simplicidade a força para tratar da complexidade que é crescer diante de tantas imposições e opressões implacáveis vindas de todos os lados, inclusive de onde menos se espera.
A tradução para a edição brasileira fica por conta de Beatrice Moreira Santos, que conserva em seu trabalho a ingenuidade do fluxo de pensamento de uma garota tão jovem e tão introvertida quanto Hélène. O letreiramento e a composição ficam a cargo da experiente e icônica Lilian Mitsunaga, que faz uso de fontes diferentes quando reproduz o monólogo de Hélène, os diálogos propriamente ditos e as reflexões da garota sobre Jane Eyre.
Chama a atenção, positivamente, o fato do corpo editorial à cargo da edição brasileira ser composto quase que inteiramente por mulheres, salvo a presença de Geraldo Alves na produção gráfica, uma vez que além das supracitadas Beatrice e Lilian, estão presentes no trabalho Maria Fernanda Alves no acompanhamento editorial, Cristina Yamazaki e Ana Maria Alvares na parte de revisão gráfica e Katia Harumi Terasaka por conta da edição de arte.
Publicada no Brasil pela Editora WMF Martins Fontes, Jane, a Raposa e Eu conta com 104 páginas em papel off-set de excelente gramatura e capa cartonada, sem orelhas.
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