Crítica | Dheepan: Refúgio
Usando elementos comuns em um ambiente assolado por um conflito bélico, Jacques Audiard consegue já na primeira cena de seu filme dialogar com o público, ao mostrar o sentimento de desolação nos olhos de seu personagem-título, vivido por Jesuthasan Antonythasan, que assiste, com espanto, ao fogo consumindo os corpos dos mortos. Espantado não pelos óbitos em si, mas sim pelo intenso desejo de fuga daquele paradigma.
Dheepan – O Refúgio conta a história do personagem que foge do alistamento, que estava à frente do exército de Sri Lanka, e que vai à procura de asilo em terras estrangeiras. A narrativa não-linear passa impressões erradas sobre o interesse da fita e sobre os temas discutidos, com despistes ligados à contemplação e ao ócio, os quais escondem intenções profundas e comuns da humanidade.
Em meio à guerra civil, outros nativos buscam a alternativa de invasão a outro território, se juntando a ele Yalini (Kalieaswari Srinivasan) e a menina Illayaal (Claudine Vinasithamby), organizando a partir daí uma família falsa, que em território francês não tem dúvida em aceitar o primeiro trabalho que lhes aparece, servindo de zeladores em um condomínio onde a violência é marcante como parte do estado comum das coisas.
Temores como o risco de deportação, dificuldades com a língua e à difícil adaptação a uma nova cultura são fatores que não pesam tanto quanto a gritante desarmonia entre os desconhecidos que são obrigados a conviver como se fossem íntimos. É explorando as possibilidades empregatícias que ocorre o contato com a brutalidade vista no Sri Lanka, repetida em meio ao conflito de bandidos. Yalini passa a ser cuidadora de um idoso, que tem parentesco com o cartel local, e com o tempo ela se afeiçoa por alguns dos marginais.
A construção de suspense feita por Audiard é imensa, especialmente pelos elementos comuns que seu roteiro evoca. A intimidade entre o casal forjado só torna-se carnal após uma hora de exibição, ocorrido não à toa após Yalini se aproximar de Brahim (Vincent Rottiers), chefe do tráfico local recém saído do cárcere. A intensa troca de tiros faz os refugiados se amedrontarem, remontando imediatamente ao mesmo medo que os fez fugir.
O trauma faz Dheepan se auto enganar, criando para si não somente um background mentiroso, mas uma personalidade igualmente irreal. Os tons de vermelho são tons da gravidade, resumem imageticamente o isolamento antes aventado em texto, unido ao receio de viver uma guerra que não lhe pertence, mas que o toca por igual. Não há fuga para o protagonista; não há um lugar tranquilo para pensar no nada.
As jornadas dos personagens adultos são igualmente pautadas na tragédia, primando por visões parciais de uma guerra que nenhuma das partes pediu para acontecer, ao menos não por parte dos fugitivos asiáticos. A sequência final é alucinante, fazendo lembrar filmes modernos de ação, mas com consequências muito mais acachapantes. A câmera intrusiva de Audiard faz o personagem reviver seus tempos e talentos de soldado assassino, revelando que a apatia era apenas uma manifestação do seu desejo de não mais servir a morte e de esconderijo de sua real identidade. Mesmo o final, supostamente feliz, é demasiado suspeito, pelo ar de completa irrealidade que perdura a partir dali, exigindo do espectador uma suspensão de descrença não antes vista no filme. Dheepan retrata uma parcela da visão relativa à guerra, cruel com os pobres e quase sem benefícios, mesmo para os mais abastados, se valendo de inspiradas atuações e de uma fotografia e edição fantásticas.