Crítica | A Marselhesa
“A Marselhesa” é o nome dado ao hino nacional da França, composto em 1792 como uma canção revolucionária e que ganhou popularidade entre as unidades militares dos Marselheses na Revolução Francesa. Jean Renoir, notório cineasta francês, também conhecido pelos seus trabalhos nas películas La Grande Illusion (1937) e The Rules of the Game (1939), vai realizar uma rigorosa pesquisa histórica para retratar um dos mais significativos fatos históricos do mundo.
O filme, produzido entre os anos de 1937 e 1938, vai acompanhar um breve intervalo que se inicia com a tomada da Bastilha em 1789 e que segue até a marcha do exército revolucionário na defesa das fronteiras em 1793 e a deposição do rei Luís XVI, dando ênfase para pequenos grupos de revolucionários da região da Marselha, os quais se dirigiram para Paris, somando forças de guerra para lutar contra os monarquistas – apoiados por tropas prussianas.
O primeiro ponto a ser destacado do filme de Jean Renoir é a frase com que se inicia o longa metragem: “Crônica de alguns fatos que contribuíram para a queda da monarquia”. Desde o começo, Renoir deixa claro que não possui pretensão de fazer um relato histórico definitivo do período retratado. Diz isso mesmo tendo declarado posteriormente que foi o único trabalho da carreira dele em que se propôs a fazer uma intensa pesquisa documental, tendo criado apenas 1/3 das falas do filme.
Guardas do rei marcham dentro do castelo e trocam de formação. A disciplina dos soldados e a beleza do ambiente do castelo é a primeira cena do filme. O Duque de La Rochefoucauld-Liancourt (William Aguet) pede um encontro com o rei Luis XVI (Pierre Renoir), que o recebe enquanto ainda estava na cama, recém-acordado e comendo. “É uma revolta?”, pergunta o rei. “Não, senhor. É uma revolução”. Esse simples diálogo é suficiente pra mostrar que estava por vir o maior medo dos monarquistas à época. Já era uma realidade.
Na sequência, somos apresentados a Anatole Roux, mais conhecido como o “Cabrito” (Édouard Delmon), um velho homem miserável que acabara de matar, com um estilingue improvisado, um pombo que estava devorando sua colheita. Subitamente, um guarda real, juntamente de seus soldados, o aborda declarando a ilegalidade do ato de matar um suposto “pombo real”. Os soldados o levam a júri, onde o Cabrito poderia pegar uma sentença de morte na forca, se não tivesse conseguido fugir antes disso. Renoir explora a cena de maneira sutilmente cômica ao mostrar os exageros da suposta lei, que obviamente protegia a aristocracia e não o povo francês. Aqui já somos apresentados aos dois lados de tratamento e à predominante desigualdade social vivida pelos franceses. De um lado, uma nobreza que esbaldava toda a riqueza e o luxo de uma nação, enquanto no seu jardim jaziam pessoas miseráveis, sofrendo da justiça unilateral.
Fugindo para as montanhas, Cabrito se encontra com Jean-Joseph Bomier (Edmond Ardisson) e Honoré Arnaud (Andrex), dois cidadãos que estavam escondidos nas montanhas por estarem fugindo “da justiça dos aristocratas”, os quais vão se tornar parte fundamental da história contada por Renoir. A ênfase à “justiça dos aristrocratas” por Arnaud deixa claro o descontentamento de um povo que já não aceitava mais os atos de ostentamento e tirania vindos de uma pequena parcela da população, que representava a elite francesa.
A partir desse ponto do filme, Renoir vai acompanhar o caminho desses dois patriotas, lutando pela liberdade dos seus iguais. A maneira como o cineasta direciona a narrativa, passando de uma figura a outra até chegar nos dois personagens, é sutil e mostra qual a maior preocupação do filme: narrar a história através das pequenas ações de pessoas ordinárias. Nas reuniões dos agrupamentos revolucionários, suas assembleias fervorosas de ideais democráticos e pacifistas e o espírito patriótico de um povo que preza pela liberdade. Inclusive temos o surgimento do futuro hino nacional francês, que serviu de inspiração ao esforço de todos os cidadãos em igualdade e na busca de um futuro justo.
Jean Renoir é um pacifista. Imagina-se que, em um filme que retrata um período tão conflituoso como a Revolução Francesa, seria mais violento em sua representação gráfica. Porém, Renoir prefere explorar outro lado do movimento. Há apenas uma sequência de cenas em todo o filme que representa graficamente uma batalha armada. Ao invés disso, na maior parte do filme, temos a exploração do espírito democrático e de união de um povo. Renoir, por ter participado de uma guerra e visto de perto as consequências trazidas pela mesma, rechaça as ações voltadas diretamente para a violência. Valoriza a vida humana e sua dignidade, e a violência existe apenas em forma de resposta, no caso do filme, quando os monarquistas tentam tomar a liberdade do povo francês. Inclusive, a escolha do cineasta em terminar o filme em 1792, com os soldados indo para mais uma batalha, demonstra que a violência da guerra não era o mais importante na análise daquele momento histórico. Os sacrifícios foram, sim, importantes, mas mais do que isso foram as histórias de cada um dos homens que fez parte da história da França.
Renoir queria que seu filme trouxesse rejuvenescimento ao orgulho nacional e à unidade dos cidadãos franceses em um contexto de crise que a França sofria à época. A Marselhesa não conta apenas a história de uma revolução, mas dos dilemas pelos quais a França passava também em um período de crise e quase dentro de mais uma grande guerra.
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Texto de autoria Pedro Lobato.