Crítica | Bistrô Romantique
Saudade é um termo encontrado somente no dicionário brasileiro, e que, cada vez mais, sofre tentativas de ser equiparado por outras culturas em línguas estrangeiras. Marcada pelo nostálgico sabor que a vida tem, provado ao lembrar das emoções que um dia fizeram bem, ou que ainda fazem falta, essa sensação conflita com a realidade e pode provocar frustração ou raiva no coração de quem sofre. Joël Vanhoebrouck faz uma sábia escolha ao eleger um bistrô para representar essa impressão nostálgica e para contar suas histórias em Bistrô Romantique.
O cenário do filme toma forma como um personagem ativo dentro da rotina daqueles que o frequentam. O bistrô, chamado de Brasserie Romantiek – como no original belga – pertence a Pascaline (Sara de Roo), uma resignada mulher de meia idade que demonstra estar muito incomodada com o misterioso retorno de alguém do seu passado, Frank, vivido por Koen De Bouw e cuja presença é incapaz de reconstruir uma intimidade que não existe mais.
Um dos momentos mais peculiares e tragicômicos do filme é o drama de Walter (Mathijs Scheepers), um sujeito inseguro e que se considera “o mais maçante dos homens da Europa Ocidental, pelo menos“. Ao marcar um encontro às escuras, Walter não imagina que a mulher que conheceria pudesse ser tão estonteante quanto ele jamais imaginou, além de direta em suas intenções. A surpresa do encontro com Sylivia, genialmente interpretada por Tine Embrechts, faz com que ele saia correndo até o toalete para se encher de coragem, consultando a única pessoa que conhece, o espelho, onde mora a sua segunda personalidade, muito mais contundente e direta.
No eco de seu anseio por tornar-se alguém mais forte, Walter não encontra resposta, dialogando somente com sua própria solidão. Para sua surpresa, e também do espectador, seu único e enfadonho assunto causa volúpia na mulher, fazendo com que ele entre em um pânico legítimo, lentamente diluído graças à necessidade de romper com a sua timidez, mesmo que a contragosto. É curioso como a ambiguidade atua na psiquê de Walter, mostrando duas facetas de um mesmo homem e da musa que está a sua frente.
O pequeno ambiente compartilhado do bistrô comporta um multiverso, uma porção de mundos que coexistem no mesmo espaço físico, desafiando a máxima de que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar. Por ser um ponto de encontro comum para tantos casais, o bistrô é visto como um clichê que incomoda a personagem Roos (Barbara Sarafian), que vive uma crise conjugal silenciosa e unilateral desconhecida por seu marido, Paul (Filip Peeters), um homem muito mais preocupado com as suas conquistas profissionais do que com qualquer outra situação.
A indiferença de Paul faz que com que ela experimente um misto de inveja e desprezo pelos pares mais jovens, questionando, de modo pessimista, o futuro desses relacionamentos, e descobrindo que algo que antes era tão valioso, não possui mais vida ou substância. Ela está desiludida e desacreditada no futuro da sua relação conjugal, o que a faz perder o medo e o respeito próprio ao contar suas indiscrições com tanta sinceridade. Sua jornada mostra que há coisas muito mais flagrantes que a infidelidade conjugal, especialmente no que toca o orgulho ferido de uma mulher.
Apesar da força das histórias paralelas, o drama de Pascaline ainda conquista a atenção do público. A sua história amorosa foi interrompida por décadas, e bate à porta de modo repentino. Com uma proposta tentadora, mas também inconsequente, Pascaline não consegue abandonar as responsabilidades de seu cotidiano, o que a impede de pensar em vôos mais distantes. Mais do que isso, tanto para Pascaline, quanto para as outras personagens que se mostram mesa a mesa, dói mexer no passado e revirar o porão da alma, o que prova que esse não é um exercício de fácil acesso, tampouco de agradabilidade garantida.
Talvez, a mais catastróficas das historietas seja a de Mia (Ruth Becquart), que pensa diretamente em suicídio e no fim de sua triste existência. Apesar do pouco que se sabe sobre seu passado, ela representa a coragem que nenhuma das outras mulheres sofredoras têm. Nem Pascaline consegue prosseguir em sua jornada, nem Roos consegue ir em frente e desfazer o enlace matrimonial que a martiriza tanto. É a mais jovem delas que, munida da possível ingenuidade de seus poucos anos de vida, tem a presença de espírito de assumir o desejo impraticável.
Embora quisesse dar vazão ao seu desejo, Pascaline é inibida por aqueles que precisam dela, especialmente Angelo (Axel Daeseleire), seu irmão, sócio e também chef do Romantiek, que tem pela irmã um apreço muito grande, além de uma dependência emocional e profissional exacerbada, já que foi Pascaline quem o ajudou quando tornou-se viúvo e responsável por cuidar de sua família. Ao saber da vontade da irmã, ele entra em desespero e larga seu posto no meio da noite que deveria ser a mais romântica do calendário.
Rooss, Walter e Mia falham em criar expectativas e em construir castelos de areia, pois não se sujeitam ao risco de serem submersos pelo natural movimento das ondas no mar. Eles acabam se escondendo em suas próprias fantasias, em uma fuga da realidade, que, de certa forma, os permite buscar um meio de subsistir e encontrar as soluções para as perguntas da vida. Possivelmente, essas não são as respostas mais otimistas, mas são as mais acertadas e condizentes com a realidade. Cada um a seu modo supera os seus próprios demônios e temores, enterrando-os no lugar que lhes é de direito.
Pascaline também confronta seu par, fazendo a pergunta que estava presa em sua garganta por intermináveis vinte e três anos. Seu grito é liberado e bradado aos quatro ventos, porém não consegue transformar a realidade que a cerca.
Talvez, a maior magia de Bistrô Romantique seja a sensibilidade com que Vanhoebrouck consegue equilibrar sentimentos como piedade, resignação, abandono, pena, perda, luto, ciúmes, medo da solidão e claro, sem descuidar de contar, em tão pouco tempo de filme, uma gama de histórias ricas em detalhes.