Crítica | Casa Grande
O Brasil de 2015 deixou de ser criança e virou um adolescente cheio de malícia, desses que pulam o muro à noite para ir dormir no quarto da empregada. O Brasil é um país de muros, muralhas, fortalezas. Logo de cara, no primeiro plano de Casa Grande, um sobrado enorme com piscina e vários andares salta à vista. É lá, não nas senzalas, mas na mansão mal-assombrada pela classe-média alta, onde o cineasta Fellipe Barbosa pinta, com perspicácia rara no cinema brasileiro, o retrato crônico, e não apenas atual, mas histórico das classes de um país continental, atingindo a realidade em cheio. Perto desse retrato, de cenas magníficas como quando o playboy acorda pra vida e rompe a bolha que vivia (ou no debate extra-familiar sobre cotas raciais nas faculdades), o pastel de vento O Som ao Redor vira rascunho em guardanapo molhado.
Domingo é sagrado, é dia de ir à igreja, pagar conta com o divino, sempre pagando as contas, nem a senzala ou a Casa Grande esquecem. Por quê? Porque sim, porque sempre foi assim, e fim. É dia de pagar conta com nós mesmos, a senzala não perde tempo, a gente acorda cedo, uns pra tomar suco na beira da piscina – e a maioria pra assistir a Missa do Galo na TV com programação de Casa Grande, pra gente se perguntar com outro “Por quê?”, o porquê das nossas mesas não serem tão fartas quanto na Casa Grande. Dilema que os domingos e outros carnavais tentam resolver, mas fica pra amanhã também. É levado a sério na senzala não levar o domingo tão a sério.
Já o sábado é um ensaio, mas também ouvi o passarinho verde, que nada tem a ver com os domínios do homem pobre ou rico, preto ou branco, nem macho nem viado, que sábado já está virando dia útil, tem que trabalhar também! Só domingo mesmo, a gente só pode ser a gente no domingo, e olhe lá, de novo. Já sobre trabalhar só meio expediente antes da segunda, antes do jogo de futebol, isso a Casa Grande vem estudando a possibilidade, muita calma nessa hora. Palavra grande, “possibilidade”, tal qual o olho da Casa Grande que vê tudo e esquece de ver o que muitas vezes acontece lá dentro. Observando quem pensa ser livre, do alto do sobrado gigante cheio de alarmes contra favelados… é um tantão de chão, só vendo, só entrando. É enorme, de fato, mas sorte a nossa saber o caminho da senzala, até os nossos pés já sabem de cor. A gente aprende o caminho, aprende que essa responsabilidade menor por não viver no topo da pirâmide deixa a vida mais bela, menos pesada.
E pra quem duvidava, a Casa Grande não é só flores nem domingo, não senhor. Afinal, quem vive em bolha tem medo de alfinete, até de ponta de lápis. Barbosa, prudente e com um elenco impecável, coloca os donos do microscópio social sob as lentes de outro para estampar na arte o que é surrealmente real. Também aprendemos desde cedo que, se tem revolta nos interesses da senzala, é porque tem algo de podre no reino dos patrões, e se não tem é porque o charme da burguesia disfarça com perfume caro da Boticário, não, espera, o Boticário apoia os gays, e a Casa Grande não curte muito o diferenciado, vide os favelados de hoje, os escravos há 500 anos, enfim… É melhor perfume francês. É por isso que a obra-prima de Barbosa nega perfumaria: para mostrar o Brasil de 2015 e comparar com o de 1500, no seco, sem lubrificante ou aroma de lavanda. Imperdível.