Crítica | Scorpio Rising
Movido pela trilha sonora frenética, a câmera de Kenneth Anger passeia pela oficina mecânica, repleta de peças de moto espalhadas por seu espaço físico. Aquele ambiente é quase como um universo à parte, onde somente os anjos “malditos” pela sociedade podem habitar. Resgatando a iconografia visual de O Selvagem de Marlon Brando, porém muito mais contestador que o filme de 1953, Scorpio Rising consegue através de uma narrativa elaborada, que não deixa se ser simples, passar uma mensagem ao mesmo tempo conciliatória, saudosista e conteste.
Primeiro filme que misturava elementos de motor style com uma trilha regada a rock ‘n’ roll, o curta de 1964 é normalmente esquecido pelos aficionados por motovelocidade, talvez por conter em si uma linguagem sem qualquer fala, com o som provindo da jukebox imaginária como principal elemento argumentativo, além do transitório visual que mostra o personagem principal – se é que pode se chamar de protagonista – vivido por Bruce Byron (Scorpio) customizando sua máquina, e algumas demonstrações de como a sociedade os via, através de pequenos bonecos, que emulavam as perseguições entre os policiais e aqueles marginais.
Claro que se tratando de Kenneth Anger, a mensagem seria de discussão de símbolos. Já que os tais motociclistas selvagens seriam páreas da sociedade e avatares da rebeldia, o diretor resolveu tomar para si algo que era até óbvio, que é a erotização da figura do selvagem, que através do seu couro, seus óculos escuros e suas máquinas potentes, causa terror no conservadorismo típico do americano médio, mas que neste é ainda mais agressivo, revelando que a relação entre os membros do clube era muito mais que algo apenas fraterno, e sim camuflava uma forte atração mútua. O que impressiona é que a plausibilidade do argumento é enorme, dada a clara erotização enrustida neste arquétipo.
Pelas paredes dos cenários é possível notar cartazes e pôsteres, de Marlon Brando e de James Dean, que além de reforçar a pulsão e tesão dos amantes de velocidade por estes, remete também a uma clara homenagem, do realizador de um cinema que também está à margem do mainstream, underground em sua essência, mas que também sabe reverenciar os alunos do método de Constantin Stanislavski, inclusive ousando ao mostrar um ato comum na rotina, tanto dos atores quanto dos nômades do asfalto, que era o uso incontrolado de drogas inalantes, sem a preocupação de tornar isto palatável para público algum; inclusive transgredindo mais que Sem Destino e seus primos, escondendo o ato de “cheirar” apenas por uma luva de couro, em plenos anos sessenta, com a contracultura em ebulição, mas ignorada pelas parcelas mais moralistas da sociedade estadunidense.
Quando um dos personagens focados é mostrado se preparando para montar em sua motocicleta, acontece um paralelo com cenas de um filme bíblico obscuro, onde se vê Jesus passeando com seus discípulos e curando um cego. As cenas mostram o grupo de arruaceiro se esgueirando pelos becos escuros, atacando uns aos outros, em movimentações suspeitas – sendo algumas até explícitas, com cenas que remetem até a estupro, mas que são preconizadas especialmente pelo choque de ideologias, uma vez que o foco dado são em figuras icônicas e signos que remetem a autoridade, como os dos moto-clubes e da bandeira com a suástica centralizada.
Talvez para o público menos afeito aos midgnight movies e ao cinema underground, este Scorpio Rising possa ser visto como algo ofensivo – certamente não foi este que Anger tencionou alcançar, e sim seus pares, seus iguais, os afeitos a discussão de sentidos e que não se contentam com o que a indústria produz para eles, isto muito antes da instituição do conceito de blockbuster imposto por Steven Spielberg e George Lucas. O uso da juventude transviada para ser o catalisador da mudança contém uma forte mensagem política, que em seu final toma até as rédeas de um filme denúncia, que flagra uma sociedade que oprime o indivíduo, unicamente por este ser diferente dos ditos normais, e claro, sem a necessidade tola de ter de se justificar ou de suavizar seu recado através de moralismos presentes no cinemão estadunidense.