Crítica | Parasita
Surpreende a ninguém que Parasita seja um dos mais interessantes filmes dos últimos anos (e que tenha levado a Palma de Ouro de lambuja), visto que seu diretor, Bong Joon-ho, é responsável por realizar vários dos filmes mais interessantes há quase duas décadas, desde seu primeiro projeto no comando, Memórias de um Assassino. Mesmo tendo se aventurado (bem) por Hollywood, inclusive em parceria com a Netflix, as obras mais impactantes de Bong são sul-coreanas, e que ele se destaque em um dos países cuja filmografia recente, a partir dos anos 2000, é uma das mais ricas do planeta, serve como amparo suficiente para seu mais novo filme. Parasita é uma mescla de tons de humor e drama com timing impecável e trama absolutamente hipnotizante.
Apresentando uma família composta por Kim Ki-taek (o pai), Chung-sook (a mãe), Ki-woo (o filho) e Ki-jeong (a filha), Parasita demonstra cedo a precariedade financeira do grupo; morando em um minúsculo subsolo, aproveitando o wi-fi de lojas próximas e até mesmo permitindo que os gases de fumigação da rua (a janela do subsolo fica no nível do asfalto) entrem na casa, enquanto todos se fazem presentes, pra exterminar os insetos que logicamente infestam o paupérrimo ambiente. Dobrando caixas de pizza para uma pizzaria de franquia para ganhar alguns trocados (caixas igualmente fumigadas, mas esta é outra conversa, suponho), a família sobrevive como pode – e trata de aproveitar a oportunidade quando um dos amigos do filho Ki-woo, Min-hyuk, que vai até a casa de Ko-woo presenteá-los com uma pedra que simboliza sorte e fortuna, oferece a Ki-woo a chance de tutorar os estudos de inglês de Da-hye, a filha de uma família abastada, já que ele, até então o tutor (e apaixonado pela garota), não quer outros jovens interessados nela. Trocando seu nome para “Kevin”, Ki-woo se apresenta como o novo professor particular, e consegue a vaga na sofisticada casa da família Park após uma sessão de estudos onde tenta seu melhor para impressionar não a aluna, mas sim Yeon-gyo, a mãe de Da-hye, que acompanha de maneira obstinada os filhos (incluindo o pequeno e pretensamente “excêntrico” Da-song, cuja veia “artística” aparentemente é motivo de orgulho para Yeon-gyo) e adora o fato de a filha falar inglês. Ki-woo, por sua vez, identifica e agarra outra chance: ao perceber quanto dinheiro os Park parecem ter à disposição para gastar com outros funcionários, resolve dar um jeito de colocar toda a família, sob outros nomes e sem revelar suas conexões, para trabalhar na mansão dos Park. A mãe como governanta, o pai como motorista do pai da família, Park Dong-ik, e a irmã como tutora de estudos artísticos de Da-song – mesmo que para isto tenha que livrar-se de maneiras não muito honestas, ainda que criativas, das pessoas que desempenham estas funções para os Park há algum tempo.
A dinâmica de Parasita na construção das diversas relações exibidas do começo ao fim de sua narrativa é simples, o que não torna o filme menos complexo; as ideias de Bong Joon-ho e Han Jin-won, co-roteiristas de Parasita, abordam suas personagens como poréns na engrenagem social vista na tela. As motivações da família de Ki-woo podem estar escoradas na vontade de sobreviver e ter alguma dignidade, mas não é a pobreza, e nem mesmo o oportunismo, que os define. Da mesma forma, o contraste com os Park não se dá meramente por circunstâncias dinheirísticas; ao passo em que os Park podem se dar ao luxo de enfatizar e priorizar questões mais efêmeras e (superficialmente) desimportantes em comparação a seus empregados/funcionários, seria equivocado considerar que os Park se consideram superiores a Ki-woo, Ki-taek, Ki-jeong e Chung-sook, já que a absorção em suas próprias questões, de variados níveis de frugalidade, talvez os impeça até mesmo de enxergá-los comp indivíduos. Ego é um componente firme nas aspirações de todas as personagens, e o que varia é apenas o que os compele. Para a família de Ki-woo, dinheiro é um fim; para os Park, um meio. Para outras personagens (não convém revelar; Parasita é um filme repleto de nuances e invertidas sensacionais), o dinheiro é um estorvo. Para todos, é um tecido intersticial que gruda partes desiguais a partir de uma forçada (e real) perspectiva de colaboração e conveniência, e que só começa a desgrudar conforme cada pessoa percebe a inconstância da própria situação e a impossibilidade diante dos interesses alheios – desde que exista algum incentivo à inconformidade, o que torna os Park catalisadores de intermináveis problemas e faz com que sejam encarados, ingenuamente, como intermináveis soluções. Parasita não os demoniza, mas faz algo que quiçá pareça tão cruel quanto, que é desnudá-los frente a pessoas que não parecem feitas da mesma matéria. E o filme não faz questão de construir esta ponte, o que provavelmente consistiria em moralizá-los e dizer que são.
Bong Joon-ho sempre equilibra seus filmes em linhas tênues, feitas de observação e crítica social, mas pautadas em personagens que compõem bem mais do que a soma de suas partes nos roteiros que habitam; é fácil imaginar como seus filmes poderiam se tornar panfletários e até mesmo pueris, de fácil absorção e de ainda mais fácil contestação, e é gratificante perceber que, a exemplo dos outros componentes da sua carreira, Parasita evita resoluções fáceis e faz divertidos malabarismos (visuais e de roteirismo) pra impedir que seus elementos sejam usados pra tecer comentários casuais demais em relação ao que se vê. Sim, a situação da família protagonista é calamitosa, e sim, os Park são bem de vida e alienados (a obsessão de Yeon-gyo com americanismos e com a ideia de garantias de qualidade do que vem dos EUA, seja um currículo ou uma barraca, não é desprovida de sentido no mundo real), mas é a maneira como determinadas personagens enxergam outras (seja algo peremptório, como as interações do sr. Park com Ki-taek, ou graduais, como Ki-taek com o sr. Park – ou até mesmo de forma mais aberta, como a relação entre Da-hye e Ki-woo) que pauta o nível de toxicidade e falta de compreensão que sugere que eventualmente tudo irá desandar. E se o roteiro de Bong e Han ganha toma forma a partir da direção precisa e sutil de Bong e do ritmo leve da montagem de Jinmo Yang (um herói de Parasita; o timing de várias situações, em especial revelações, ajuda a dosar o peso de certos acontecimentos, e acrescenta humor ou horror à medida em que a narrativa necessita – um trabalho de edição bem similar em tema e tom ao que Thelma Schoonmaker leva aos filmes de Martin Scorsese, por exemplo), é justo dar créditos também ao elenco, que personifica traços da sociedade evitando caricaturas até onde é possível (certas figuras são simplesmente caricaturais por natureza, e elas logicamente existem). Vale destacar o excelente desempenho de Song Kang-ho (como Ki-taek; colaborador habitual e brilhante de Bong), como um pai de família que aos poucos percebe o quanto seu quinhão é ruim, independente de quão justo ou merecido, Cho Yeo-jeong, como a sra. Park (uma performance corajosa ao abandonar qualquer tentativa de não parecer insuportavelmente alienada), e Choi Woo-shik como Ki-woo, encarnando um conflitado ponto de partida e ligação entre mundos tão diferentes e a figura mais encurralada pelo insólito desenrolar dos fatos. Há ainda duas outras performances maravilhosas em Parasita, mas ambas dispensam elaboração – cada espectador(a) há de reconhecê-las assim que entrarem em cena, e seria um desserviço explicar como e quando.
O termo parasita, como adjetivo ou substantivo, confere título e identidade ao filme, mas a constatação de quem parasita quem dirá muito a respeito de quem dedicar algum tempo a pensar no que assistiu. É provável que vários(as) tentem reduzir Parasita a uma fábula de crítica social, ou mesmo condená-lo como um retrato sórdido de alpinismo societal – ambas visões estreitas e erradas. Há ideias em profusão no vencedor do prêmio máximo de Cannes deste ano, e nenhuma necessariamente nega ou corrobora a outra. Servem ao intuito de acrescentar níveis de informação e discussão. Isto tudo envelopado em uma estética apurada (e elegantemente variada, de um microverso para outro) para as diferenças entre as suficientes infestações de parasitismo monetário, comunitário e emocional que justificam seu nome. Contrariando o título, no entanto, Parasita é um filme do qual não faz bem algum se livrar.
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Texto de Henrique Rodrigues.