Resenha | Tempo é Dinheiro – Lionel Shriver
Tudo está bem, e eis que a vida (a dois) se torna uma guerra de interesses, “evoluindo” logo em seguida para uma luta entre a vida e a sobrevivência de tudo diante da iminência confirmada de um câncer. Se um casal é de fato um mundo, entramos em Tempo é Dinheiro por debaixo de suas nuvens, furamos sua superfície em direção ao centro desta Terra e observamos, de dentro para fora, o lento e problemático apocalipse deste planeta conjugal repleto de cobranças, contradições, alegrias e arrependimentos inesquecíveis. É curioso refletir o quanto a vida nos faz de marionetes no roteiro maluco de um destino brincalhão, mas Lionel Shriver, autora de Precisamos Falar Sobre Kevin e Dupla Falta, mostra-se hábil o bastante na elaboração dramática de um quadro matrimonial à beira do colapso, enquanto quem faz parte deste tenta manter-se vivo, forçosa e literalmente, por eles mesmos, seus filhos ainda pequenos, e o que sobrou do que havia sido seus sonhos, um dia.
Por mais pessimista que possa parecer, o quadro aqui através desta problemática é preciso para explorar o preço dos nossos desejos e aspirações, por vezes tão mesquinhos e egoístas. Afinal, quando tudo está em jogo, não é possível dar as costas para o que profundamente é caro, de verdade, nas nossas vidas. Todos os dias pessoas desistem de seus objetivos por um ente familiar, até mesmo por questões de amizade, mas quando imprevistos emergenciais de saúde entram no jogo, nesse instante a brincadeira fica séria. Shepherd Knacker sempre quis arriscar, abandonar Nova York, o trabalho chato com o patrão indiferente e o trânsito insuportável de uma cidade enorme. Trocar tudo isso por uma vida mais calma, fora dos Estados Unidos, como se o sonho americano nunca tivesse lavado sua mente, porém, era demais para Glynis. Uma artista que ama lidar com metais e transformá-los em lindas pulseiras e espátulas, Glynis simplesmente não está preparada para deixar tudo para trás como talvez, no começo do casamento com Shep estava. Ele precisa ir, ela precisa ficar, e nesse intempérie a vida acaba decidindo por eles qual será o próximo movimento.
Sem grandes lamentos, e muito menos covardia para enfrentar as novas condições da esposa, Shep não evita em usar todas as suas economias para a mudança de sua vida no tratamento especial de Glynis, à espera de uma melhora todas as noites no hospital. A nova rotina se impõe, afetando a tudo e todos, e o romance deixa espaço (às vezes, até demais) para lidar com o impacto disso em outro casal amigo deles. Reavaliando o próprio casamento, sua turbulenta dinâmica, o desgaste sentimental e sexual mútuo, e até mesmo a sufocante realidade do péssimo sistema de saúde pública dos Estados Unidos, Jackson e Carol são os cúmplices de um drama cuja intimidade, para eles, não é segredo. Amigos próximos, Jackson e Carol são para o leitor o casal que mesmo sem grandes desafios ou ultimatos, além do peso do tempo que estão juntos, começam a rachar muito mais rápido que Shep e Glynis, sendo que para esses a cola que os une se constitui da esperança por manhãs melhores. Tempo é Dinheiro, da editora Intrínseca, discursa em prosa corrida, e divertida, resistência e desapego como se os dois casais formassem ambos os lados do que pode se tornar, essencialmente, um matrimônio após anos de cumplicidade, trabalho duro e sacrifícios um pelo outro.
E quando o destino toma as rédeas da situação, este Senhor consegue ser mais implacável que qualquer ação tomada pelo homem – seu poder é alterar o inalterado, e ainda, corrigir o que talvez ainda não esteja na hora de terminar. Glynis então segue lutando pela vida em intermináveis sessões de quimioterapia, encarando a letargia de um câncer tal um debate que precisa ser vencido com determinação, e confiança. Como que inspirado pela força da mulher, Shep segue, por sua vez, sendo o homem da família que explica aos filhos tudo o que está acontecendo no tocante aos problemas que todos enfrentam, afinal, a família não pode quebrar – mesmo com céu e terra caindo agora lá fora, mas quem sabe, no momento mais oportuno possível para isso, antes do sol voltar a aparecer – mas não para todos. Shriver nos convida a reflexão sobre o importante papel dos nossos infortúnios, das lições que tiramos deles, e com uma elegância típica de uma escritora sempre em controle de suas intenções mais nobres para nos emergir em suas histórias, e manter-nos seduzidos assim até o grande fim.
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