Crítica | 1964: O Brasil Entre Armas e Livros
O filme 1964: O Brasil Entre Armas e Livros, se inicia de modo metalinguístico, explicando que o filme do site Brasil Paralelo sofreu um suposto boicote em universidades e instituições de ensino pelo Brasil, afirmando sua proibição de circular nessas mesmas instituições. Curiosamente, não há provas ou quaisquer indícios a respeito disso. As fontes não são mostradas, já que este documentário pouco se importa com isso, como é demonstrado ao longo da exibição em diversos momentos.
Percival Puggina é o primeiro dos entrevistados, um jornalista especialista na tentativa de refutar Paulo Freire, e começa falando sobre as tensões da Guerra Fria, afirmando que quem não viveu aquilo não poderia falar ou opinar sobre isso. A narração – terrível – de Filipe Valerim fala de maneira bastante tosca sobre a revolução russa, afirmando que Vladimir Lenin era uma deidade para os soviéticos, enquanto Leon Trostky e Josef Stalin eram como papas. Na visão contaminada dos responsáveis pelo documentário, o maniqueísmo corresponde à realidade, e não contradiz a verdade, de que mesmo com um governo de mão forte, havia uma bela fragmentação na liderança dos governos revolucionários russos.
O filme é dito como dirigido por um trio, Lucas Ferrugem e Valerim, cineastas pouco conhecidos, sem trabalhos pregressos reconhecidos, sequer em curtas metragens ou algo que o valha. Boa parte da argumentação que defende o filme mora dentro do argumento primordial onde afirma que existe um discurso ideológico totalitário no Brasil, que só permite demonstrar e discutir filmes com viés esquerdista. Falácias à parte, edição e trilha sonora escolhida faz a obra soar engraçada, maniqueísta e infantil para muito além do discurso que o filme propaga, mas também em sua abordagem cinematográfica, já que aparentemente o objetivo não é esclarecer ou narrar uma parte da historia que supostamente não foi contada, e sim em criar animosidade, estabelecer o socialismo e o comunismo como o inimigo mundial até os dias de hoje.
Em alguns pontos o filme soa tragicômico, com um humor implícito e não proposital sobressaindo. Há muita teoria da conspiração e chutes sobre a história, com dados tiradas ou de lugar nenhum ou de fontes pouco (ou nada) reconhecidas por quaisquer vertentes acadêmicas, sejam elas de direita ou esquerda. O documentário chega ao cúmulo de Olavo de Carvalho afirmar que Oscar Niemeyer tinha um plano para que Brasília fosse a cidade que tornasse o presidente como um líder do Olimpo, afastada do povo, como o ideal de uma cidade pretensamente soviética, capaz de isolar a população do seu mandatário fisicamente.
Incrivelmente, se debocha bastante sobre Jânio Quadros, sobre sua postura confusa, demagoga e populista. Ocorre que, os realizadores não parecem ver a semelhança de Quadros com o recém-eleito Jair Messias Bolsonaro. Não é coincidência que os entrevistados sejam defensores de Bolsonaro, do mesmo modo, não é coincidência que o lançamento deste filme em uma época onde a popularidade da presidência vem caindo exponencialmente.
O filme carece de ritmo, é longo e repetitivo, busca massificar a mentalidade confusa da nova direita como se fosse essa a maior autoridade a respeito da história. A falácia parece ser a mola motriz do longa. E a realidade é que até a montagem deflagra isso, ao mostrar depoimentos que fazem contradizer o falante anterior, uns falam que Jango e Brizola conspiravam contra a nação, outros que a conspiração militar foi mais acertada, outros que os militares entraram aos poucos e de maneira convidativa no governo, enquanto outros diziam que a esquerda não reconhecia Jango. É tudo muito confuso, sequer quem montou o filme sabe o discurso que deve defender, ao menos Real: O Plano Por Trás da História, Polícia Federal: A Lei é Para Todos e Jardim das Aflições não soam tão infantilmente construído quanto este.
O filme vende uma narrativa onde manifestantes políticos, em especial, guerrilheiros, entre eles pessoas que chegaram ao poder como José Dirceu e Dilma Rousseff, eram assassinos e torturadores, em contrapartida não se assume que houveram torturas por parte dos militares, esta sim amplamente documentada, diferente do lado contrário. A mudança da história é baseada no nada, em opiniões de gente que esteve no poder, como se o comunismo fosse algo demoníaco e espiritual, que surgiu do nada e tomou o poder. Há mentiras sobre os desaparecidos, alegando que eles eram exilados, que fugiram de sua nação, quando a maioria era morto ou obrigado a se retirar do país sob o risco de morte.
O máximo de condenação ao Regime que se permite é à época do AI-5, em 1968, mas a realidade é que o todo é confuso. Basicamente se trata como ideologia comunista toda sorte de pensamento e ação de esquerda, tentando associar lideranças brasileiras que andavam livremente com celebridades esquerdistas. Trata-se dos encontros do Frei Betto com Fidel Castro como se fosse algo secreto. Chega a ser patética essa argumentação, ainda mais quando se releva a repressão violenta com estudantes e a censura, que era dita como algo brando, feito por um guardinha de esquina, além de se negar que o governo militar era de ordem direitista, como se houvesse ali uma neutralidade política, o que contradiz entre outras coisas, a admiração de parte dos entrevistados por Médici. A ideia de Guerra Civil entre militares e comunistas soa imbecil, ainda se tenta, através da fala de Lucas Berlanza, uma associação dos militares à Lula e o movimento sindical, que segundo ele teria fomentado estes movimentos por medo de que o brizolismo crescesse com a volta do líder trabalhista ao Brasil. O filme de Valerim e Ferrugem é tão repleto de mentiras que é difícil não analisar e rir do que fala em suas longas duas horas de duração, chega a ser engraçado o quanto os entrevistados são vitimistas, e clamam por uma autocrítica da esquerda como se essa fosse a responsável pelas atrocidades deste período. O filme termina com uma citação de George Orwell, autor de tradição advindo de uma esquerda radical, e que certamente ficaria ofendido por ter seu nome associado a este discurso, que em última análise, soa acéfalo e sem um norte.
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