Crítica | Corrente do Mal
Evocando a paranoia de Annie, personagem assustada e interpretada por Baily Spry, Corrente do Mal exibe alguns dos maus modernos, como o péssimo hábito de espalhar correntes de participação e a costumeira perseguição a quem tem vida sexualmente ativa, um estilo comum dos filmes slasher, e iniciado com Psicose de Alfred Hitchcock e Halloween de John Carpenter. Já nos primeiros momentos, há uma bizarra e sanguinolenta morte, e seu intuito é inserir o público no espectro de extrema violência da fita.
O diretor David Robert Mitchell prossegue investigando os estranhos hábitos do norte-americano médio, após o seu O Mito Americano da Festa do Pijama, dessa vez focando na aleatoriedade das maldições constantes exibidas nos baratos contos de horror. O começo do drama, já em outro núcleo, é chefiado pela perseguida Jay (Maika Monroe) e trata de assuntos chave, como a cultura do estupro, sequestro e desprezo misógino, aspectos que se utilizam da espiritualização e demonização do algoz para alertar os perigos atuais, especialmente no background das comuns fobias femininas.
A câmera de Mitchell é muitíssimo bem enquadrada, dando enfoque nas sensações terríveis pelas quais passam as vítimas de violência sexual e moral, tomando cuidado para não exacerbar qualquer coitadismo ou outro aspecto normalmente usado para banalizar o hediondo ato da violação. A direção se torna prodigiosa ao optar por planos longos, em nada condizentes com outras obras dos grandes estúdios dos EUA, especialmente os que produzem cinema de horror.
Outro efeito interessante é a gama de personagens jovens, que não imita a quantidade exacerbada de estereótipos bobos vistos nos slasher movies e afins. O maior avatar disto é logicamente Jay, que tem nas mudanças que ocorrem no corpo a maior mostra, já que a mudança transcorrida com a moça não faz menção somente ao monstro e ao mal intangível, mas especialmente ao trauma que sofreu após a péssima interação sexual que teve com o homem que deveria “protegê-la”. O que se vê é uma mulher confusa, sozinha, praticamente incapaz de se defender dos seres e sentimentos que a perseguem.
As aparições que teimam em atormentar Jay são sempre ligadas a sacrilégios sexuais, variando entre homens e mulheres, ainda que as figuras femininas sejam mais assustadoras, quase sempre nuas, em uma referência clara e hostil à livre representação da sexualidade feminina. A punição a atos malévolos é quase exclusividade das mulheres, como se fosse a ovulação o principal componente que atrairia a violência e a morte da autoestima.
A trama se desenrola com alguns assassinatos pontuais impingidos pelas criaturas que somente Jay consegue enxergar. Seu pavor aumenta assim que ela percebe que, se não transferir sua maldição a outrem, seu destino será a morte, assim como os que antes sofreram a marca daquele mal. Sua jornada para se livrar tanto daquela sina quanto da culpa de ser indiretamente responsável por tantas possíveis mortes faz ela se tornar ainda mais melancólica, optando por uma drástica solução para sua questão.
Os sustos não são tão bem engendrados, assim como alguns dos efeitos especiais executados nas capturas das vítimas. Mas a presença do subtexto faz valer o esforço em Corrente do Mal, uma vez que o conteúdo é normalmente o calcanhar de Aquiles de produtos como O Espelho, A Face do Mal ou Annabelle, se assemelhando em estilo e linguagem ao assustador Thanatomorphose, se diferenciando de seus primos pobres graças ao background de seu diretor.
As soluções encontradas para combater os perseguidores da personagem principal não têm sustentação lógica, são pensadas por um grupo de tolos adolescentes que só querem se ver livres do tormento que os cerca. No entanto, mesmo este defeito serve à trama, uma possibilidade daquela condição ser inexorável, onde o destino é inevitavelmente trágico, emulando as características do mundo real, além de ser esta uma possibilidade bastante plausível, em se tratando das personagens focadas. Corrente do Mal consegue ultrapassar os clichês do gênero, apresentando uma história forte e referencial, denominando a si mesma como uma excelente surpresa dentro do cenário de terror atual.