Tag: Política

  • Crítica | Libertem Angela Davis

    Crítica | Libertem Angela Davis

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    A evocação primária de Libertem Angela Davis envolve uma forte trilha sonora, muito ligada ao ideal da principal biografada. Os gritos de “freedom” acompanhados do groove inserem o público na aura de luta pela igualdade racial, mais do que qualquer cena anterior à trilha. Após a apresentação, toda a formalidade é quebrada de modo necessário, expondo as indignidades que os marginalizados padeciam, além da resposta agressiva que os manifestantes sofriam, agredidos com brutalidade e repressão por parte dos policiais, com a mesma medida violenta que eles viam nas ruas, longe dos holofotes. A desfaçatez reinava no modus operandi das forças armadas, na tentativa de manter o estado totalitário no poder, sem que nada mudasse.

    O cunho político do documentário de Susan Lynch visa analisar o momento histórico pelo qual passava os Estados Unidos da América, antecipando a condição que seria vista mais tarde na África como Apartheid. O viés escolhido é o olhar de uma professora, uma função de fundamental importância na sociedade civil e que contribuía para a filosofia social predominante, até que esta norma muda. Ao menor sinal do ensino – em escolas segregadoras, que separam alunos por cor – dos ideais marxistas, faz-se dela uma inimiga do governo e da ordem imperante.

    A luta das autoridades com Angela era política, tomada pela paranoia da Guerra Fria, que fazia perseguir quaisquer afiliados do Partido Comunista, uma vez que o discurso era tratado como algo “diabólico”, tirado de contexto a fim de parecer ir contra a tradição, família e propriedade. Nos discursos do povo manipulado, havia gritos de “volte para a Rússia” e “volte para a África”, além de exibir uma variação ainda mais pesada de preconceito racial, com desenhos caricaturais de Davis assemelhando sua figura à caracterização da população zulu.

    Toda hecatombe ocorria ao lado do recrudescimento da máquina de governo, com o governador Ronald Reagan achando em Davis uma párea e perigosa inimiga do país, claro, junto ao estouro do confronto no Vietnã e a ascensão dos Panteras Negras. O estado de sítio estava instaurado, e uma guerra civil tomava o asfalto, fruto da dificuldade de evolução e de reflexão do antigo discurso de Abraham Lincoln. A igualdade parecia cada vez mais distante.

    Em razão de um incidente, na época muitíssimo mal explicado, Angela Davis foi indiciada, tendo sua prisão decretada e executada sob muitos protestos, que alegavam manipulação de informação por parte da mídia. A culpabilidade da professora foi tão alta que até o presidente Richard Nixon a endossou. A pena para Davis incorreu no desejo de extradição, o que intensificou ainda mais a onda de protestos.

    O caráter de atualidade do filme é impressionante, especialmente por notar-se a praticamente nula evolução a que o mundo se submeteu, mesmo após 40 anos decorridos após o início do movimento. A controvérsia a respeito dos direitos à liberdade política e da marginalização do “diferente” prossegue em países de diferentes histórias e tradições de luta, dos mais ricos até os ditos subdesenvolvidos; alguns com arquétipos mudados: dos negros sendo substituídos por outras minorias igualmente marginalizadas, como o público LGBT, ao lado da perseguição dos que pensam à esquerda, e contra tantos outros. E a questão racial ainda longe de ser resolvida.

    A contextualização documental mostra muitos registros visuais da época, assim como inúmeros depoimentos dos envolvidos, até de lados opostos. Serve como um bom retrato do panorama cronológico, tanto que reforça a injustiça presente no julgamento de Davis, uma vez que o argumento é um dos poucos fatores em cujo contexto abrange todas as falas. Os membros do movimento e os mais conservadores enxergam a professora da mesma forma: uma lutadora dos direitos civis.

    O recurso narrativo para remontar as cenas do tribunal – que obviamente não poderiam ser filmadas – foi perene ao exibir uma arte peculiar entre os depoimentos dos entrevistados. O destaque ao penteado black power de Angela revela uma idealização do ícone acima da figura humana, do símbolo da eterna luta de classes presente no epicentro do capitalismo do século XX.

    A poesia vencia no discurso desintoxicante da ré, que lutava contra os grilhões que amarravam os seus braços e os de muitos. O conteúdo do filme de Lynch é contestador, assinalado pela fala do branco advogado de defesa, Leo Branton, que profere ao também branco júri, o qual decidiria a sentença de Davis, convidando-o a pensar de modo diferente:

    “Eu quero que você interprete um papel comigo, para os próximos vários minutos: eu quero que você pense “preto”. Eu quero que você seja negro. Não se preocupe. Vou deixá-lo voltar a ser branco quando isto acabar. Se você é negro, você sabe que seus antepassados foram trazidos a este país como escravos. E o Supremo Tribunal dos EUA determinou: não há direitos. Uma pessoa negra tinha que ser o que os homens brancos queriam, e era obrigada a respeitar esta decisão. Uma intelectual como Angela Davis sabia disso. Cada vez que uma pessoa negra erguia a voz em apoio a liberdade e à liberdade do homem negro, foi assassinada. E, por isso, você sabe todas essas coisas, se você é Angela Davis ou se você é negro. Você, como negro, não se pergunta por que ela fugiu, só se pergunta: por que o mundo permitiu que fosse apanhada?”

    Após toda a luta, o desejo da já idosa Angela Davis é que a discussão amadureça, além até de seu reclame. O lema de sua vida é voltado para que mais vitórias, como as que conseguiu naquela época, se repitam, na tentativa de tornar o mundo moderno o mais igualitário possível. Libertem Angela Davis consegue informar e emocionar o público de maneira equilibrada, com a inserção total do espectador no drama da biografada.

  • Crítica | Que Bom Te Ver Viva

    Crítica | Que Bom Te Ver Viva

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    Com uma inicial trilha de piano, prevendo a tristeza e o azedume nos fatos terríveis que seriam mostrados em tela,  Lúcia Murat utiliza-se de sua experiência pessoal para contar, através de suas personagens, o porquê e como aquelas mulheres sobreviveram aos desmandos dos governantes militares após a instituição do Ato Institucional nº 5 e a prática da livre tortura contra quem se opunha ao tal regime.

    A personagem anônima vivida por Irene Ravache recebe inúmeros telefonemas, graças a uma entrevista, retirada de outra publicação, sobre tortura sexual. Ela nega que tenha dado qualquer depoimento e diz que o jornalista em questão sequer perguntou a ela sobre esta exposição. A dramaturgia da hoje veterana atriz serve para inserir o público no mundo denunciativo, aos casos deflagrados que revelam o corpo feminino como um objeto de tortura.

    O artifício da quebra da quarta parede exerce a função de tomar a atenção pública daqueles que costumam consumir as telenovelas, e alertá-los para a flagrante realidade dos anos de chumbo, que, apesar do tempo decorrido, ainda ecoam de modo cruel nas almas daquelas moças violentadas pelo DOI-CODI e por seus semelhantes. A narradora, e única personagem representada, tem a função de pôr o dedo na ferida, uma vez que, no início, a maior parte das entrevistadas está demasiadamente emocionada, e a maioria chega a chorar ao relembrar o que a acometeu.

    Ravache beira a tragicomédia em alguns momentos, quando, por exemplo, surge a lembrança de que seu parceiro sexual deixará de “trepar” com ela por este descobrir, pela imprensa, que ela é uma mártir, fazendo-se perguntar se mártires têm necessidades humanas básicas, assim como os torturadores, demonstrando ao espectador que a “inconveniente história” das moças precisava ser lembrada e passada à posteridade, já que a conveniência está ao lado dos que trouxeram o mal à existência daquelas damas. O equilíbrio entre esquecer e conviver com as lembranças que não podem ser esquecidas, para que não sejam repetidas, e para que atrocidades como a dos torturadores serem chamados por suas profissões liberais, ao contrário dos torturados, intitulados apenas como terroristas, sequer contemplava qualquer mudança de comportamento, utilizando-se do prefixo “ex” antes de tais adjetivações. A mídia era deveras conivente nos idos dos anos 80.

    Os depoimentos dos maridos das torturadas também são interessantes por mostrarem como é a observação daquelas que tiveram marcados seus corpos, almas e mentes por parte de terceiros, porém íntimos das vítimas. O descontrole de algumas delas perante questões que relembram aqueles traumas invariavelmente as fazia bloquearem sua psiquê. Para muitas que tinham problemas como a epilepsia, era complicadíssimo dar vazão aos ataques, mesmo que fossem completamente incontroláveis na maior parte das vezes.

    Por parte das moças, alguns sentimentos “errados” sobrepunham-se ao prazer de viver mesmo após o término das torturas, como, por exemplo, a banalização daqueles que as cercavam, dado o tratamento aos presos anos depois, e a culpa por estarem vivas e tantos outros, parentes, companheiros e afins que não tiveram a mesma sorte que elas, ou mortos ou desaparecidos. O desaparecimento é também uma grande arma dos ditadores, já que pressiona sentimental e psicologicamente aqueles que esperam as notícias de entes queridos, cujo luto não pôde ser sentido, tampouco estava viva a esperança de encontrarem os desaparecidos.

    O esquecimento é a omissão daqueles que a consideram conveniente. A gravidade é ampliada quando “esqueceram” de lembrar a essas moças que elas não podem mais sentir dor, ou rememorar todas as catástrofes que aconteceram naqueles ralos metros cúbicos, imundos, repletos de baratas, lagartixas e aranhas, animais que até aquele momento continuavam assustando e causando fobia nas mulheres.

    A tecla tocada de modo mais agressivo – e necessário – é a da sexualização, da necessidade da mulher em transar, em se saciar, mesmo que sua vida pretérita fosse incomum. A vida das mulheres precisava ser comum novamente, ou o mais próximo disso possível. O prazer faz parte das necessidades básicas humanas; as dores e as marcas nos seus corpos não eram fáceis de serem arrancados, mas negar uma faceta tão presente em suas vidas seria declarar derrota, dar razão àqueles que praticaram o mal em seus corpos e em seus espíritos, e este revés não é algo que nem as mulheres, nem as companheiras e nem as ativistas políticas gostariam, afinal a luta delas e de Murat não foi em vão. Elas não fizeram parte deste acordo de silêncio e certas estão com esta atitude.  Esquecer seria trair a luta e, principalmente, seria trair a si mesma, a memória dos muitos amigos e amigas e a memória delas. A tortura fez e faz parte das vidas. O comentário final é arredio, denunciativo e inconformista, mas, ainda assim, delicado e feminino, tanto na figura de Irene Ravache como no roteiro de Lúcia Murat.

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  • Crítica | Setenta

    Crítica | Setenta

    Emilia Silveira é a responsável pela curadoria das entrevistas que permeiam o filme Setenta. O início, com a câmera junto ao carro pelas estradas da praiana cidade carioca, tenta remeter à simplicidade da vida cotidiana, ainda que os dias nos anos 1970 não fossem “normais”. A perseguição aos homens era um massacre, próximo de um comportamento padrão daqueles que faziam política e que impediam qualquer outro que não fosse conveniente fazê-lo pensar.

    O roteiro de Sandra Moreyra retrata o modus operandi dos 70 presos políticos que seriam exilados no Chile em troca da vida do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Os que estavam encarcerados eram encarados como guerrilheiros, apesar da maioria dos manifestantes sequer saber atirar, isso se estes estivessem armados.

    Alguns dos presos políticos também são mostrados no documentário lançado na época, e filmado no Chile, Brasil: Um Relato de Tortura. A maioria dos quase idosos militantes tem de segurar as lágrimas ao escavar os momentos emocionais pelos quais passou. O compartilhar dos ideais prossegue na vida da maioria deles, mas a dor da lembrança inevitavelmente faz relembrá-la. Famílias eram separadas, humilhações impingidas tanto fisicamente, pela tortura, como também por meio do emocional dos manifestantes e dos seus companheiros. A distância entre os encarcerados e suas famílias é escrutinada no documentário, assim como é detalhado o cerco aos subversivos.

    O nível de pessoalidade é grande não só pelos testemunhos, mas pela movimentação da câmera que mostra os exilados na intimidade de seus lares, no lugar e país onde muitos achavam que não voltariam a pisar. A correria dos que planejavam as ações ofensivas visava contra-atacar todo o desrespeito que sofriam os que se opunham ao regime. Apesar da multiplicidade de ideais dos que estavam ao lado oposto dos poderosos, a truculência com que eram tratados era o ponto em comum.

    O argumento básico da luta dos entrevistados era pela liberdade. O esforço da maioria era realizado para atingir este ideal, dedicando-se cem por cento de suas vidas à briga pela livre expressão de pensamento, por vezes até deixando, pela falta de tempo, de cuidar dos familiares e daqueles que os cercavam, especialmente em tempos em que a clandestinidade era algo comum ao cotidiano dos militantes.

    A baixa bilheteria do filme, quando em cartaz, é um mistério, pois, apesar de tratar de um assunto antigo, tem em seu caráter uma estética moderna, aprofundando o tema que documentários já haviam iniciado, mostrando os ecos de um tempo opressor, elemento que evidencia o quanto o país deixou de evoluir e se deseducou graças a isso. Setenta vale ser visto especialmente pelo resgate de histórias que convenientemente são esquecidas, quando deveriam ser frequentemente marteladas na mente dos brasileiros para que os erros pretéritos não mais nos assombrem.

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  • Crítica | Uma Noite de Crime: Anarquia

    Crítica | Uma Noite de Crime: Anarquia

    A primeira semana de exibição de Uma Noite de Crime gerou uma bilheteria suficiente para pagar dez vezes o orçamento da produção. Uma sequência foi programada para este ano, com o diretor James Demonaco retornando ao universo distópico situado em um futuro de uma sociedade americana sem violência e composta por uma lei que, durante uma noite, autoriza assassinatos e crimes em geral como maneira terapêutica de expurgar o estresse anual.

    Se a história anterior enfocava a casa de uma família rica e um grupo que tentava invadi-la, Uma Noite de Crime: Anarquia se passa inteiramente nas ruas, local em que o expurgo acontece sem nenhuma censura. A trama apresenta personagens, em situações distintas, formando o grupo que tenta sobreviver durante esta noite. Além destes representantes do povo, surge um grupo político contra o governo e que, através da internet, produz vídeos de protesto contra o dia anárquico, explicando por que este é um sistema feito para exterminar as classes mais baixas da sociedade, incapazes de se defenderem.

    A tensão é melhor sustentada do que a produção anterior pela urgência de uma trama passada nas ruas, sem a proteção de um sistema de segurança caro, como na casa vista anteriormente. Entre as personagens da trama estão duas irmãs que acabaram de perder o pai – vendeu-se para um expurgo de ricos para garantir dinheiro para as filhas; um casal que tem o carro sabotado no trajeto para casa; e um homem que se prepara para uma vingança e, com aparatos e um veículo, ajuda as demais personagens a não perecerem nesta noite.

    A ausência de nomes conhecidos no elenco demonstra a intenção de apresentar uma história sem nenhum personagem em destaque como foco evidente de atenção. O grupo segue o homem que prepara a vingança não por ser o centro do roteiro, mas pela necessidade de sobrevivência. E, assim, vão se movimentando contra grupos de extermínio. Além dos cidadãos que realizam o direito constitucional de matar por uma noite, há um grupo de mercenários pagos para caçar outros e vendê-los para ricos que desejam expurgar, mas não se sentem confortáveis para ir à caça.

    Apresentando com melhor qualidade os ideários por trás deste futuro, a trama tem mais intensidade e apresenta um jogo político que a história anterior não mostrava. O conceito é rico e poderia ser desenvolvido em diversas tramas apresentando outras esferas de poder, embora a intenção de Demonaco seja, aparentemente, focar somente a ação e o suspense e a força imagética de um período em que a anarquia impera durante algumas horas.

  • Crítica | Rio Ano Zero

    Crítica | Rio Ano Zero

    O filme da francesa Aude Chevalier-Beaumel começa com uma narração em inglês. O narrador, em seu carro, observa a Cidade Maravilhosa e diz querer estar próximo da ação e do povo, e não do poder, porque esta interação é bonita, a melhor coisa que poderia ocorrer com a cidade. Rio Ano Zero varia entre os momentos em que a violência do Rio de Janeiro é exposta – seja pelas armas que os seguranças precisam carregar em seu ofício, seja pelos morros, paramentados com toda sorte de arsenal pesado – como uma das alternativas políticas, diferente demais das figuras de poder presentes na tradição governamental da antiga capital do país.

    Marcelo Freixo não é afagado pela imprensa. Logo no início, é filmado em um estúdio da CBN tendo de responder se evadiria o país novamente, uma vez que estava sendo ameaçado de morte por milicianos, cujo cerco havia se apertado graças a CPI das Milícias. Os funcionários que estavam armados serviam a si mesmos, numa exposição clara de como funciona a rotina do Rio de Janeiro e como age o poder paralelo quando encontra um desafeto.

    A intimidade do professor de história, e intenso combatente deputado estadual, é mostrada não só em seu discurso extenso contra a corrupção, mas escrutinada até em seu cotidiano, em sua casa, com a câmera passeando entre sala e escritórios, capturando cenas onde ele está inclusive trajando pijamas. O foco é obviamente as denúncias do candidato do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) contra a criminalidade crescente no Estado do Rio, provocada por organizações de cunho mafioso, que vivem tranquilamente, habitando a mesma cidade que abrigaria a Copa do Mundo, Olimpíadas e a Jornada Mundial da Juventude. A conivência do prefeito e candidato à reeleição da eleição de 2012, Eduardo Paes, com uma chancela de vinte partidos, visava evitar o segundo turno e qualquer debate direto.

    A diferença de tempo disponibilizado no horário eleitoral era de pouco mais de um minuto para Marcelo, enquanto Paes dispunha de 16, em virtude do número de parlamentares na câmara municipal. As acusações ao mandatário da cidade prosseguem fortes e cada vez mais intensas, assim como a intensa corrida eleitoral.

    Freixo usa sua boa fala para destacar alguns pontos “a favor” da milícia, lembrando a boa aceitação desta com a opinião pública – a exemplo das falas de políticos antigos, como Cesar Maia, que afirmavam que esse sistema era a autodefesa da sociedade. Até a população geral a abraçava, graças ao modus operandi típico das organizações mafiosas pelo mundo, que apresentam um braço assistencialista e outro de terror, equilibrando caos e uma falsa atenção aos necessitados, em práticas puramente demagógicas.

    Toda a mudança na arquitetura da cidade é registrada pelas lentes, com a poluição visual e física causada pelos estandartes e santinhos, especialmente nas áreas periféricas da Zona Norte e Oeste. Como é destacado pelo próprio biografado, há um monopólio de informação, já que só há um jornalzão carioca, O Globo, do grupo de Roberto Marinho, que obviamente privilegia uma fatia de candidatos que estão na posição à direita. É neste ponto que mora o maior problema do filme, o qual repete um dos inconvenientes da esquerda, que secularmente fala a favor dos pobres e incautos, mas que não consegue ser plenamente entendida por estes, já que a sua fala é pomposa, não nem um pouco popular, emulando o traquejo de Freixo.

    As formas de comunicação utilizadas pela campanha do PSOL foram, em sua maioria, via internet, já que a massa começou a consumir o conteúdo digital. A tentativa do partido em ser pioneiro se deu não só em método político, mas também em divulgação, por meio de colaboração não comissionada. Se a ingenuidade prevalece em grande parte dos colaboradores de Marcelo, há uma estreita vontade de mudança, uma não consensual mudança, uma mudança que não prevê apoio daqueles que torturaram a máquina pública e o seu povo, que opta por revidar as injustiças que sofre há muito tempo, não com ódio, mas sim com uma tenaz esperança, que ganha corpo com a candidatura ética do deputado.

    A câmera passeia por vias laterais, mostra um lado de Freixo um pouco diferente do exibido na campanha, mas que guarda muito mais semelhanças entre rotina e discurso do que a maior parte dos políticos brasileiros, já que as causas e bandeiras populares presentes na fala do então candidato se refletem na sua privacidade, mesmo na banalidade do seu dia a dia.

    A sensação após o resultado final do primeiro turno, que sinalizava a não realização de um segundo certame, não foi abraçada pelo combatente e por seus partidários como um revés, já que a mudança da postura do povo parecia algo maior, assim como a postura da parcela mais jovem da população. As limitações e precariedades da campanha ajudaram a unir os que participaram da campanha. Abraçados pelo povo, por aqueles que se sentiram parte daquela jornada, não só por votarem naquela legenda, mas também por espalharem a mensagem de que nenhum adversário deveria ser tão respeitado e que não pudesse ser derrotado. A direção de Chevalier-Beaumel, apesar de fugir bastante do escopo fundamental ao escolher um viés um bocado utópico do pensar político, ao menos prima por um belo sentimento, focado na transparência do postulante revolucionário, que, nas últimas eleições, foi o mais votado de seu segmento no Rio de Janeiro, e que parece crescer em popularidade para uma possível candidatura à prefeitura da cidade em 2016.

  • Crítica | Vlado: 30 Anos Depois

    Crítica | Vlado: 30 Anos Depois

    vlado - 30 anos depois

    O filme de João Batista de Andrade usa a memória do dia 25 de outubro de 1975 para aplacar o sentimento da perda de um amigo e exemplificar qual seria o primeiro passo do declínio da Ditadura Militar no Brasil, apesar de não mostrar as imagens do medo, dos militares e dos aparelhos usados para reprimir seus inimigos. A narração dá um toque de perfeita pessoalidade, acompanhada do montante de fotos que ajudam a pintar a figura de Vladimir Herzog para uma geração que possivelmente não conhece a sua história.

    Os depoimentos dos entrevistados mostram uma figura fina, educada e muito cara a todos que o envolviam. Sua boa escrita ajudou não somente a falar sobre o Brasil e abordar a ética, mas também tinha a função de informar os amigos que estavam fora do país no período de recrudescimento da ditadura.

    Mais aviltante ainda é a fala do povo, que não percebe a história e currículo de Vlado, não sabendo quase nada sobre sua existência e menos ainda sobre a ditadura, ainda que alguns, munidos desse mesmo desconhecimento, hoje afirmem seu desejo de retornar a este governo. O infortúnio de Herzog seria ironicamente ligado à entropia de viajar de volta ao seu país poucos dias após a instituição do AI-5, fazendo dele uma figura bastante visada.

    A câmera passa por momentos emotivos de Vladimir, como seu casamento e seu ingresso a TV Cultura e à revista Visão. Obviamente, o foco maior é o começo dos eventos prisionais, que exibiam toda a crueldade dos militares com os seus “convidados” especiais. Num dos relatos, destaca-se o fato de que a vestimenta dos encarcerados não incluíam cadarços, linhas ou cintos, nada que pudesse produzir amarra, o que claramente desmentiria o suicídio do jornalista, em cuja foto estaria a “prova” do crime.

    A sensação de desmoronamento emocional é constante na vida dos que foram torturados; não foram percepções que permaneceram somente durante as horas em que os militantes eram maltratados. As marcas ficaram, as almas tocadas jamais foram as mesmas. Os métodos utilizados na Alemanha Nazista e no Estado Novo eram reprisados como um modo de atacar o emocional dos divergentes, numa tática nefasta e mecânica, calculada para abater sistematicamente mas que, analisada sob a visão atual, só demonstra a vergonha de quem acometeu o país e que ainda segue impune.

    Os registros do corpo de Vladimir nu, preso ao pau de arara, só não eram mais chocantes do que as falas dos torturadores aos jornalistas e amigos do militante, que saberiam, naquele momento, da morte do sujeito. A desculpa era de que Herzog atuava como agente da KGB, o que, obviamente, era uma mentira descabida.

    Um dos fatores preponderantes para a abertura do Regime foi a morte de Herzog e toda a falácia a respeito do encerramento de sua vida e do suposto suicídio, tanto para o realizador do documentário como para cada um dos mostrados pela câmera. Esse seria o principal motivo para que a morte de Vlado não fosse em vão. O Rabino Henry Sobel até decidiu localizar o túmulo do jornalista fora da área destinada aos suicidas, no Cemiterio Israelita do Butantã, ainda em 1975. No ano seguinte, inquéritos foram exigidos por meio de documentos assinados por membros do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, numa mostra de que a classe e o povo estavam ao lado de Vlado e de sua memória.

  • Crítica | Nunca Fomos Tão Felizes

    Crítica | Nunca Fomos Tão Felizes

    Internado em uma escola católica, Gabriel (Roberto Bataglin) vive sua vida tranquilamente, apesar de não gostar de estar fora do ambiente estudantil, condição agravada pelo fato de não ter contato com os seus familiares. Ele recebe dos padres a notícia de que seu pai retornou, para enfim ter uma vida familiar comum. O jovem fica confuso, já que foi esquecido na igreja por oito anos, logo após a morte de sua mãe. O ressurgido pai havia pagado rigorosamente os estudos do menino, enquanto se preparava para recebê-lo novamente.

    O mistério permeia a vida de Gabriel, que sequer tem um retrato de seu pai. A relação entre os dois é mostrada como algo tomado pela insensibilidade e quase nenhum diálogo. O silêncio é motivado pelo posicionamento do patriarca, que prefere não envolver o filho nos esquemas em que têm se mantido. Os movimentos dos dois após sair da basílica é suspeita, com a queima do fusca em que transitavam.

    Ao se mudar, Beto (Cláudio Marzo) explica ao seu filho que não poderá viver com ele num primeiro momento, e que se encontrarão fora dali. Ele pede para que o jovem seja discreto, e não revele a ninguém que mora ali. No futuro eles se encontrariam de novo, quando Beto conseguisse terminar o seu estranho trabalho.

    Gabriel fica sozinho na grande casa vazia, que quase não tem móveis. O espaço desocupado e limpo serve para exemplificar como é a sua rotina e o seu campo de ideias, sem qualquer convicção mais profunda ou algo que o valha. Mesmo quando seu pai aparece, logo some, levado pela brisa que corre do lado de fora, sem qualquer aviso de quando retornará. A vontade de se aproximar de seu parente é tamanha que o moço começa a tentar conhecer o pai por meio de terceiros.

    O ócio faz a curiosidade do jovem despertar, ele começa então a perseguir os rastros de seu antecessor, que permanece distante mesmo quando está perto. O rapaz mal sabe como reagir após ganhar um bolo em seu aniversário. O afã para agradar ao pai faz com que ele cumpra suas ordens sem questioná-las, até que a situação de não respostas o abate de vez e o faz cansar de esperar.

    A realidade que acomete as vidas e rotinas nada normais de pai e filho incomodam ambas as partes. A incompreensão reina em absoluto nas duas mentes. Nenhum deles consegue ceder, ainda que as razões do pai sejam mais flagrantes e de difícil resolução. Sua quietude causa no herdeiro uma sensação atroz de solidão, que o faz sentir mais rejeitado do que antes, quando não sabia qualquer coisa a respeito do passado dos seus genitores.

    Curioso como ele age de modo dionisíaco ao se relacionar apenas com prostitutas, apesar de seu passado de criação eclesiástica. No interior de sua casa, ele realiza algumas fantasias, finalmente dando vazão à sensação que o prendeu por toda a vida. Ele continua, entretanto, convivendo com a não plenitude sentimental que o acomete, um buraco dentro do seu coração, que tem o tamanho exato de Beto. A adolescência e imaturidade não o permitem enxergar o óbvio, que não há como se alimentar ou cuidar de si mesmo como se estivesse de férias, e de certa forma essa falta de discernimento é culpa de seu pai, que mesmo quando está ao lado dele, é ausente, sem conseguir compartilhar com seu rebento os momentos mais importantes da sua vida e sem conseguir passar para o moço a mensagem que tanto pregava e pela qual lutava. Carente, Gabriel parece não saber a quem mais recorrer, quando o mistério toma o único adulto que lhe é caro, e ele termina assim, sem perspectiva e possivelmente, sem um futuro garantido.

  • Crítica | Doces Poderes

    Crítica | Doces Poderes

    Segundo longa-metragem de Lúcia Murat, Doces Poderes mostra um pouco do terror vivido pela cineasta em tempos pregressos, quando conviveu com as turras das torturas, nos porões da ditadura. Seu modo de filmar representa uma enorme aura de paranoia e perseguição, especialmente quando focaliza Beatriz Campos Jordão, ou Bia, personagem de Marisa Orth, que se muda para Brasília a trabalho para cuidar de uma sucursal de TV na capital.

    A trajetória da protagonista é pautada na subida ao poder. A decisão em mudar de estilo a fez querer subir os degraus típicos do jornalismo. Enquanto Bia é apresentada ao seu novo cargo, análogos de campanhas publicitárias, travestidas de informes eleitorais, são mostrados, pensados, roteirizados e editados por mulheres, que falam diretamente para a câmera, intentando explicar a dicotômica relação que têm com a campanha comercial de exploradores do povo e o voto em pessoas ainda de esquerda. A necessidade de por comida no prato passa por cima do utópico discurso, mesmo os mais justos, mas estes fatos não fazem com que a situação seja mais fácil de ser executada.

    A mensagem que é passada pela maioria dos personagens é de que os tempos ideológicos mudaram, e que é preciso sujar as mãos, algo que desperta Bia, que ainda acredita que conseguirá mudar a realidade pondo a mão na massa. Ela acredita que não se contaminará.

    Os bastidores do poder são escusos até na superfície. Os políticos e assessores não têm qualquer pudor em falar sobre caixa dois. As reuniões de negócios, em que os parlamentares se embrenham, mais parecem orgias descontroladas do que qualquer outra coisa. A associação dos pecados morais à sem-vergonhice típica dos poderosos coiotes que habitam o Planalto faz como destaque a desfaçatez dos personagens retratados em tela.

    Os editores e profissionais de vídeos são mostrados em alguns momentos debochando de seus empregadores; os “barões” que pisam no proletariado, e em outras brechas, se mostram inconformados por manipular informações, tentando tornar os truculentos governistas, que pedem para eliminar a realidade e divulgar as felizes imagens, diferentes dos delírios da oposição.

    Escândalos sexuais entre membros da mídia e políticos são enfocados através de discussões morais implícitas sobre o voyeurismo, feitas por parte dos que se entregaram ao “prazer” e à sexualidade. Os que mandam no jogo de fantoches e no eleitorado, evidentemente, dão a questões morais uma importância indevida, em detrimento das propostas e planos de governo.

    O ponto fraco, talvez, seja o maniqueísmo em que são mostrados os dois candidatos a governador, cujas campanhas são mostradas no decorrer da fita. Enquanto Ronaldo Cavalcanti (José de Abreu) é mostrado como um lobo mau, capaz das maiores baixarias para permanecer utilizando a máquina pública ao seu bel prazer, Luizinho Vargas (Luís Antônio Pilar) é ingênuo ao achar que suas indiscrições sexuais seriam perdoadas pelos seus adversários. O entorno, ao menos, é bastante crível.

    A atitude de Bia, ao final se arrependendo do que fez, é um artifício honesto, semelhante ao que ocorreu com o debate Lula e Collor nas eleições de 1989. A figura dela transita entre a de uma mártir e a de uma paladina, mas que, na prática, não fez mais do que limpar a sua consciência, visto que o destaque dado ao seu assumir foi pequeno, irrisório diante da campanha televisiva contrária a ela e às suas convicções morais. O romantismo ligado ao modo de fazer política mostrado em tela ainda é muito presente no discurso de quase todas as facções políticas, sejam elas de esquerda ou de direita. No entanto, não condizem com a realidade exposta nos dias após as aberturas das urnas, seja atualmente ou no ano de 1996.

    O final, invertendo as posições de sucesso entre Bia e o fotógrafo Araponga (Luís Mello), que foi o responsável pelas fotos comprometedoras de Luizinho, é curioso, e até causa um pequeno sorriso quando se apela à parte mais cínica da psiquê.

    Durante os créditos, os editores das campanhas que permaneceram em seus ofícios tentam dar uma última justificativa para os seus atos, mas sem apelar para uma redenção barata, ainda que no conteúdo de suas palavras dê para se notar uma vergonha persistente de quem precisa mentir para si mesmo e de modo tão triste. Este final emocional, apesar de não condizer tanto com a realidade, é tão agridoce quanto os limites que o cinema permite, quase como um ensaio poético, um teatro onde os atores são sempre obrigados a fazer a mesma peça incômoda.

  • Crítica | Barra 68: Sem Perder a Ternura

    Crítica | Barra 68: Sem Perder a Ternura

    Visando resgatar o ideal do cineasta Darcy Ribeiro, que tencionava formar em seu público um ideário mais crítico que o censo comum, com a fundação da Universidade de Brasília, mas que teve seu trabalho interrompido no ano de 1964, graças ao apogeu da Ditadura Militar no Brasil, Barra 68 conta um pouco sobre esses dias tão temerosos.

    A escolha do subtítulo, executada por seu diretor, Vladimir Carvalho, visa ironizar através da máxima guevarista o que ocorreu naqueles anos de chumbo, como se o dizer do lema fosse também um grito revoltoso, pelas ações holocáusticas que os docentes e funcionários da instituição de ensino sofreram com o Regime. Logo nos primeiros depoimentos do documentário, se traça como funcionava a formação do panorama cultural da capital do país, quase toda proveniente do ideário carioca, mas que aos poucos formava a sua própria identidade.

    Não demora muito para o foco ir para o viés combativo, onde alguns professores da época contam como foi uma invasão a universidade, sem qualquer aviso prévio e com uma truculência típica de uma guerra. A procura era por professores que supostamente passavam o ideal comunista aos alunos, numa mostra de como funcionava o pensamento paranoico dos militares que acabaram de assumir o poder, em 1964.

    É curioso como se fala a respeito de alguns membros das fileiras dos alistados, que declaravam a plenos pulmões que, se fosse aquela uma revolução socialista, eles estariam ao lado do governo, exemplificando que nem todos estavam lá pela ideologia, e sim porque era conveniente. No entanto, medidas por parte da direção da faculdade tiveram que ser realizadas, com demissões em massa. A UNB sofria com a pressão dos que estavam no poder.

    Os que restaram dentro da faculdade sofreram ações de conflitos, como as mostradas em filmes de guerra, cujas imagens executadas por estudantes foram resgatadas e reunidas no acervo do filme. Ex-alunos e professores veteranos contam o terror que sofreram ao longo daqueles anos enquanto a invasão acontecia dentro da faculdade, reportando ações dos repressores e de simpatizantes civis.

    O revanchismo entre os repressores e Darcy era tão grande e de cunho tão pessoal que alguns órgãos de imprensa, pressionados pelo governo, não citavam mais qualquer nota a respeito da universidade, visando jogá-la na vala do esquecimento, tornando-a irrelevante culturalmente. As dores da perseguição tocaram o emocional de todos os envolvidos, que têm em seu final, uma justa homenagem, dada a Ribeiro em 1995, quando já estava perto de falecer, onde o próprio discursa belamente, dizendo que quase chorara ao ouvir o hino nacional naquelas dependências, um lugar tão sofrido e que guarda uma parcela considerável da história do país. Vladimir Carvalho exibe mais um belo retrato de sua amada Brasília, narrando um conto agridoce, que varia entre o choro pelas perdas na luta e o orgulho de ter travado um bom combate.

  • Resenha | 1968: O Ano Que Não Terminou – Zuenir Ventura

    Resenha | 1968: O Ano Que Não Terminou – Zuenir Ventura

    A história que Zuenir Ventura audaciosamente conta é iniciada num réveillon, símbolo do calendário que representa mudança. A modernidade que chegou parecia fazer desta temporada seu início; não o seria em virtude das referências aos estudantes franceses, que já haviam lutado por ideais muito semelhantes, libertários. A crônica da alma das pessoas é o que trata o livro/relato.

    O escritor visava trazer um relato historicamente fidedigno da época, com entrevistas pontuais e material de pesquisa vasto. A busca de Ventura foi a de não retocar absolutamente nada do pretérito, passando por cima de qualquer tentação revisionista ou de aplacar o sofrimento da lembrança. O ideal era fugir da passionalidade barata, dando vazão a sentimentos, mas sem perder de vista o cunho de análise temporal e condicional.

    A tranquilidade e ilusão típicas do 31 de dezembro eram a tônica da festa na “casa de Helô”, mas logo essa falsa paz seria quebrada pelas mãos mais inesperadas. Dali veio o primeiro tapa do dia, o primeiro golpe do ano, um símbolo do que viria a atormentar a classe artística, os que pensavam e discutiam política e qualquer cidadão que somente parecesse debater os rumos econômicos ou sociais daquele novo Brasil.

    Após o murro, inicia-se um conto ameno que reflete sobre a revolução sexual e sobre quanto é difícil se adequar a ela, uma vez que compreende nuances nem sempre pensadas pela parcela mais popular da sociedade. Quase todos os presentes na festa se viam obrigados a fazê-lo, mas a aceitação estava longe de ser um movimento automático ou banal. Os resquícios de uma criação paternalista e calcada na moral se viam em muitas das manifestações corriqueiras, como o ciúme e o enlace matrimonial.

    Os contornos agridoces da história narrada são deixados de lado. A pecha de “ame ou deixe-o”, que fazia referência ao zerado nível de tolerância à oposição, começava a fazer sentido, deixando de ser um slogan para tornar-se uma praxe.

    O radicalismo e conservadorismo dos ditos revolucionários são discutidos, inclusive estabelecendo os posicionamentos de indivíduos famosos, como Alfredo Sirkis, Fernando Gabeira e Ziraldo. Enquanto os filiados ao PCB eram chamados de Partidão, havia uma boa parcela pouco pragmática e mais idealista, que não tomava uma posição mais certeira ora pela imaturidade, ora pelo desconhecimento sobre qual seria o mais adequado modo de combate ao regime vigente. O grave erro da esquerda à época é o mesmo da atual, o de não conseguir reunir-se em torno de um mesmo paradigma, de uma mesma bandeira ou ideal, tendo nenhuma unicidade em seu modus operandi, tornando-se, portanto, mais fraco e mais fácil de se dissipar em qualquer discussão. Mesmo os que defendiam a luta armada adoravam um discurso, e em seus brados acabavam munindo seus inimigos das armas que eram necessárias para manietá-los. A previsibilidade deles era enorme.

    O radicalismo era tamanho que José Celso afirmava: O objetivo é abrir uma série de Vietnãs no campo da cultura, uma guerra contra a cultura oficial de consumo fácil. O sentido de eficácia do teatro, hoje, é o sentido de a guerrilha teatral ser travada com as armas do teatro anárquico, cruel, grosso como a grossura e apatia em que vivemos.

    Vladimir Palmeira, líder da UME, dizia que não havia qualquer espetáculo quando houve o enterro de um jovem assassinado – Edson Luís – pela truculenta ação dos poderosos, dos mandantes: Não é a morte de Édson Luís, não é a Passeata dos Cem Mil, nem o congresso de Ibiúna, mas a assembleia no Teatro de Arena da Faculdade de Economia, na Praia Vermelha, que deu origem a toda essa degradante repressão do campo do Botafogo. Nessa manifestação, nós quebramos o laço dominante entre o professor que manda e o aluno que aprende. Era uma velharia com postos vitalícios. Ela não estava adaptada talvez nem ao século, quanto mais à década. Queríamos quebrar a dominação dos catedráticos e arejar a universidade.

    O fato consumado era de que a oposição existente era muito distante da realidade do cidadão comum. Foi pensando nisto que o ex-governador Carlos Lacerda buscou apoio de seus antigos desafetos, Juscelino Kubitschek – rival há quinze anos – em Lisboa, e também de João “Jango” Goulart, no Uruguai. A chamada Frente Ampla teve no Pacto de Montevidéu seu maior expoente, mas nem foi livre de críticas, uma vez que o então ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, criticava veementemente a postura de Lacerda, chamando-o de sofista, denunciando que seria somente uma manobra de Lacerda para continuar influindo “perniciosamente” nos destinos do país.

    O fator que faz de 1968 mais singular é a sua forma, que em cada capítulo contempla um novo entrevistado, mostrando múltiplas visões da mesma história. A multiplicidade de vozes é uma plataforma plural bem urdida, quase inédita.

    Zuenir destaca que, mesmo antes da implantação “oficial” do AI-5, já havia um movimento de censura e forte repressão dias antes do anúncio, com invasões de redações de jornais e controle forçado das pautas de televisão e afins. Nem mesmo o Correio Braziliense, único jornal a circular na capital federal, podia cobrir as votações nas câmaras do Legislativo. Mesmo figuras que nada tinham a ver com qualquer movimentação ligada à esquerda socialista sofreram repressão unicamente por levantar a voz. Os ânimos estavam à flor da pele. A exemplo disso, o já idoso Juscelino era assim tratado, jogado às traças em algum porão e deveras mal alimentado, a despeito até de sua saúde debilitada. As sensações dos que viveram aquele tempo eram múltiplas, e em comum havia uma dor tremenda, um sentimento de impotência de quem queria lutar, mas que via qualquer chance de resistência ruir. Esse infeliz viver deixou um gosto azedo em Zuenir e nos outros entrevistados, daí a impressão de que aquele ano jamais acabou.

  • Crítica | Virada no Jogo

    Crítica | Virada no Jogo

    Após dois mandatos consecutivos, o presidente americano George W. Bush deixava a Casa Branca com um espantoso nível de rejeição. Uma porcentagem, divulgada em uma pesquisa da CNN, suficientemente alta para torná-lo o presidente mais impopular desde Nixon no caso Watergate. Na eleição presidencial de 2008, o Partido Republicano tinha dois objetivos na composição de sua campanha: a primeira era vencer o democrata Barack Obama, o senador americano considerado ponto de mudança na política mundial. Para isso, o candidato John McCain precisava demonstrar ao seu eleitor que, apesar de oito anos de governo Bush, o partido ainda era forte o suficiente para continuar na presidência do país e conduzir os Estados Unidos da América de maneira diferente daquela realizada pelo antecessor.

    Baseado no livro de John Heilemann e Mark Halperin, com roteiro de Danny Strong (O Mordomo da Casa Branca) e dirigido por Jay Roach (Os Candidatos), Virada no Jogo, lançado pela HBO, apresenta a versão republicana das eleições e a composição da chapa de McCain. (Considerando que toda história baseia-se em uma verdade parcial, além do universo político ser carregado de interpretações variadas, a análise seguinte enfocará o conteúdo apresentado por esta produção, sem um amparo maior no contexto americano e em especialistas políticos).

    Roach já realizou outra produção política para o canal: Recontagem, que analisa a eleição de 2000, em cuja contagem de votos elegia Al Gore mas fez George Bush o 43º presidente do país. Virada no Jogo é mais uma narrativa centrada em acontecimentos contemporâneos da política americana. Ed Harris personaliza o candidato republicado à procura de uma chapa forte o suficiente para derrotar Obama. Diante das poucas opções para vice-presidente, a equipe escolhe um caminho inédito e incômodo para a ala mais conservadora ao colocar Sarah Palin (Julliane Moore), governadora do Alaska, como representante.

    Entre partidos, havia um jogo silencioso de intenções. Se os Republicanos confiavam em um presidente que ganhava status de celebridade e promovia um novo contato com o público jovem, o partido opositor escolheu um representante que também apresentava novidade ao eleitorado e, neste caso, a escolha de Palin demonstrava a importância de um estado normalmente diminuto ou ignorado e evidenciava uma disposição partidária nova, a de escolher uma mulher como vice-presidente. Um embate oculto e absurdo que, silenciosamente, fazia da raça e do gênero, aliados.

    A princípio Palin demonstra coerência com os objetivos de McCain, porém, aos poucos, demonstra uma alienação disfuncional para um candidato desse porte, destacando-se na mídia não como ponto de mudança, mas sim por entrevistas e depoimentos inusitados, tornando-se constantemente alvo de deboche. A atriz Tina Fey, no programa Saturday Night Live, compôs uma das paródia mais elogiadas, em parte pela semelhança física de ambas. Uma representação que resumia de maneira exagerada um pensamento interno do partido: Palin poderia ser suficientemente boa para o Alaska, mas não possuía apelo nacional. Incapazes de retroceder e nomear outro líder, a governadora é dominada como pode, sendo vista com respostas decoradas e um discurso preestabelecido.

    A produção analisa a incoerência dentro do sistema político e o quanto é difícil unir políticos com visões díspares para representar os mesmo interesses. Palin reconhece os conflitos que surgiam, mas parece negar sua incapacidade. Impõe seu estilo em diversos momentos, causando desconforto no partido. Como mérito de uma história biografada, a composição física das personagens estabelece a credibilidade das cenas. Harris e a sempre talentosa Julianne Moore estão caracterizados com esmero. Além da maquiagem e figurino que os deixaram idênticos aos candidatos, a atriz compõe uma governadora que demonstra uma força interior destruída aos poucos, questionando a própria credibilidade como representante político.

    A obra é considerada fiel aos acontecimentos factuais. Porém, gerou discussão quanto à veracidade dos fatos, tanto da própria Palin quanto de militantes que apontam incongruências e mentiras nesta produção. Mesmo considerando uma possível parcialidade dos fatos, a trama demonstra a delicadeza do agressivo jogo político e do necessário alinhamento interno de um partido para selecionar seus representantes.

  • Crítica | Eles Não Usam Black Tie

    Crítica | Eles Não Usam Black Tie

    Talvez nem fosse proposital, mas a versão restaurada do filme de Leon Hirzman tem um início onde os créditos são apresentados em uma tela negra, sem som nenhum, como se quisesse inconscientemente remeter ao luto, consequente dos anos iniciais da década de oitenta. O drama baseado na peça contestatória de Gianfrancesco Guarnieri mostra um casal de apaixonados, Tião (Carlos Alberto Riccelli) e Maria (Bete Mendes), que tencionam tornar o seu tórrido romance em um matrimônio, uma vez que a moça tem um segredo para contar ao seu amado.

    A cabeça do metalúrgico Tião está na greve que se avizinha deles, quase ofuscando a chegada do bebê que sua amada esperava. De casamento marcado, os dois vivem em seu paraíso particular, curtindo suas histórias escapistas no cinema – tomando por exemplo a ficção científica Jornada Nas Estrelas: O Filme, de Robert Wise, igualmente fugaz em suas outras obras. O par de jovens está distante do estado de ebulição e do furacão emocional em que está a casa de Tião, com todos preocupados pelas condições da fábrica onde os homens da família trabalham, entre eles seu pai Otávio (Gianfrancesco Guarnieri) e seu irmão Bié (Fernando Ramos da Silva), além da inconformada mãe, Romana (Fernanda Montenegro) que é a principal voz de alerta para a precipitação da consumação da relação.

    A sexualidade latente nas atitudes das crianças, bem como a greve servem como signos da teimosia juvenil que ainda tomava conta das ruas. A polarização de ideais cada vez mais crescente fazia com que os homens tivessem que, mais cedo ou mais tarde, tomar posição, e isso logo ocorre com o sonhador Tião, que vê a partir de um colega de trabalho vir uma proposta, para que ele entregue algumas informações do modus operandis da categoria, que ainda discute os detalhes de como a categoria agirá.

    Enquanto os eventos dentro do sindicato estão cada vez mais ásperos e repletos de animosidade, a vida familiar de Maria começa a melhorar, com seu pai aos poucos largando a bebida. Em comum o casal de protagonistas têm no seio familiar alguns problemas, por ambos serem considerados ovelhas negras, como páreas mesmo dentro de suas casas, já que Otávio pensa muito mais no social e na sua classe do que no bem-estar dos seus

    Até o hábito do consumo alcoólico é utilizado para demonstrar a diferença de atitudes, já que Otávio não enxerga na bebida um problema e sim uma forma de socializar com aqueles que lhe são queridos, mas mesmo nos momentos de lazer, a violência que corre as ruas não deixa que pai e filho se esqueçam do velado terror que corre o asfalto, com um exemplar categórico, onde a polícia invade um boteco para assassinar um fugitivo, nos fundos do bar, enquanto na fábrica, as demissões seguem acontecendo.

    Francisco Milani vive o personagem Sartini, que dos revoltosos é o mais radical, que tenta quase sempre em vão inflamar os ânimos, sendo quase sempre tranquilizado por seus amigos Bráulio (Milton Gonçalves) e claro, por Otávio. Ao mesmo tempo em que o patriarca enxerga no extremismo um erro, mas na apatia algo até pior. A inconformidade do senhor o faz entrar em conflito com seu filho, que após guardar muita mágoa, solta seus impropérios e ofensas ao seu genitor, movido supostamente pela situação de ausência dele, nos anos de chumbo, quando Tião era ainda um menino e quanto o chefe da família estava em cárcere.

    A greve finalmente se instaura, deixando filho e pai em lados opostos. Os sindicalistas se mostram sem cabeça, com quase todos seus adeptos baseando seus movimentos na arruaça e na desmedida maneira de encarar as injustiças com o proletariado. O fantasma da prisão volta a assombrar Otávio, enquanto Tião apanha de seus colegas de trabalho, os grevistas que o culpam por furar o motim. Os ecos da repressão continuam assolando as pessoas comuns, o massacre faz até Maria se revoltar com seu futuro esposo, na prova cabal de que a repressão prossegue.

    Sebastião é condenado pelo júri familiar, com a pena de ser deserdado, por se aliar àqueles que se conformaram e que apoiam os patrões. Enquanto o primogênito se despede em viagem, os companheiros de classe sofrem as ações homicidas da polícia, tendo vidas valiosas cerceadas de modo cruel e brutalmente injusto, o que obviamente abala o emocional dos personagens, que em qualquer análise não passam de pessoas comuns, que mesmo após traumas tão fortes como os mostrados em tela, têm de voltar às suas vidas, à rotina sufocante de ter de trabalhar arduamente para produzir o seu próprio sustento sem as garantias mínimas de que poderão fazer isto sem sofrer qualquer selvageria, cujo rigor excludente é tamanho enquanto a contrapartida é ínfima. Os poderosos permanecem, o povo falece na penúria.

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  • Crítica | Muito Além do Cidadão Kane

    Crítica | Muito Além do Cidadão Kane

    Contestatório desde o início, com falas de algumas personalidades conhecidas do grande público, a narração sensacionalista do filme foca na vivência e poderio de Roberto Marinho, idealizador do grupo Globo de Comunicação que tem na sua rede de televisão homônima o seu maior expoente. Produzido pelo Channel Four britânico, Muito Além do Cidadão Kane teve sua exibição proibida dentro do Brasil, mesmo que seu lançamento tenha sido originalmente em 1993, após a abertura política da democracia.

    O foco narrativo do início da fita centra-se na disparidade social e na quantidade exorbitante de analfabetos do país. Quase tão gritante quanto a distância financeira entre os ricos e pobres é a diferença de televisores ligados quase exclusivamente na Vênus Platinada, que até então, eram de 78% da totalidade das casas brasileiros, atingindo o grande público com anúncios publicitários luxuosos extremamente diferentes da realidade econômica dos típicos brasileiros. O consumo era apenas das imagens, já que apenas um terço dos espectadores poderiam comprar qualquer dos produtos mostrados em tela. Apesar disso, o conteúdo ideológico por trás de toda mensagem veiculada é sempre compartilhado.

    As concessões das redes de canais são denunciadas, inclusive aventando-se até a possibilidade de políticos terem poder de controlar uma empresa comunicacional no Brasil, o que obviamente vai ao encontro da maior rede televisiva. O destaque dado ao Fantástico é quase tão execrada quanto as polêmicas aquisições de filiais, criticando o otimismo exacerbado e total falta de conteúdo relevante, que encontra paralelos com a pauta atual do programa.

    A trajetória de Roberto Marinho é reconstruída, desde a fundação do jornal O Globo, feito por seu pai. Uma vez no poder, o grupo se expandiu, primeiro para o rádio e depois para a TV, ganhando concessões dos presidente Juscelino Kubitschek (apoiado por Marinho) e João Goulart (político que seria deposto antes de assumir a presidência, tendo a sua “renúncia” apoiada pelo empresário/jornalista). As falas de Armando Falcão vão muito ao encontro do pensamento do documentarista, que acreditava ser escusos os meios de obter seus licenciamentos mil.

    Em paralelo à transmissão da Copa de 70, aconteceu um boom econômico que permitia ao povo comprar televisores por meio de crédito, um artigo caríssimo, o que obviamente facilitou muito a propagação do canal da família Marinho. A audiência se dividia entre o futebol e os festivais de música, sendo o primeiro algo que fomentava a calada do regime militar, onde não se pronunciava nada sobre política, enquanto o segundo, exibido na Rede Record, mostrava a nata artística brasileira, que tentava, através de suas mensagens subliminares, falar do holocausto político que ocorria.

    Os detalhes da derrocada da Rede Excelsior e da TV Tupi são abordados. Os principais rivais pela audiência, chegando ao ponto dae causar o fim da concessão do primeiro canal, único que havia manifestado descontentamento em o assumir do Regime Militar. Mesmo os que apoiaram a Ditadura eram proibidos de noticiar qualquer situação que causasse a menor possibilidade de frisson nos que dominavam o poder e, segundo alguns dos entrevistados, a emissora ratificava a censura e perseguição a artistas supostamente condenáveis.

    Outro fator focado era a ascensão das novelas desde Selva de Pedra, que foi a primeira novela com 100% de audiência, até Gabriela, que exibia as curvas de Sônia Braga numa reimaginação do conto de Jorge Amado. A influência era tamanha que ditava moda até para aspectos comportamentais, como o advento de discotecas em cidades minúsculas, que sequer tinham tradição no consumo de música disco, mas que, por influência de Dancing Days, precisavam montar espaços assim em sua extensão territorial. Para muitos, o poder do canal se igualava ao de um Estado dentro do Estado.

    Apesar de mostrar o quão promíscuas são as inter-relações da Globo com os governos, até de interdependência dos políticos com os comunicólogos, o roteiro não toma partido de modo resoluto, nem mesmo ao exibir o modo raso como o Jornal Nacional tenciona emitir a comunicação para o Brasil inteiro, dando curtos segundos para notícias políticas, enquanto minutos preciosos são dedicados a parte de exibição de celebridades, sem qualquer cunho informativo maior.

    O cúmulo da manipulação da informação se daria nos episódios com Luiz Inácio Lula da Silva, desde a época de seus serviços com metalúrgicos e líderes sindicais, com negação de muitos dos argumentos das classes até sonegação dos mais básicos, em que se escondia até a quantidade correta de adeptos, sob a alegação de que a ordem viria de cima, da presidência militar. Semelhante a isso foi a não comunicação da eleição de Leonel Brizola, que acabava de voltar ao país e que ganharia a cadeira máxima do estado do Rio. Mais flagrante ainda seria a edição do resumo do debate de seis minutos, entre Fernando Collor e Lula, três dias antes do segundo turno, favorecendo o governador de Alagoas, onde a manipulação que se assemelhava a um informe publicitário causou um furor até dentro da rede, cuja reclamação ocorreu até de membros muito antigos da central de jornalismo como de Armando Nogueira e Wianey Pinheiro, que seriam aposentado e exonerado, respectivamente.

    Os últimos momentos do filme são pautados em mais reclames que discutem o valor da imprensa na formação da opinião pública e na moralidade de uma nação, especialmente em um órgão com tanto alcance como é com a Rede Globo, condizente com a realidade do início de suas transmissões até os anos noventa, com destaque até para o seriado Anos Rebeldes, onde se falaria sobre o hediondo regime, excluindo o papel do canal na legitimação dos anos de chumbo. A mensagem final questiona se o povo deveria se libertar dessa influência, ou ao menos contestá-la, com a trilha de Televisão, dos Titãs, que remete à burrice proveniente de quem assiste ao aparelho de vídeo. A imagem de Marinho é tomada por baratas, na expressão simbólica mais explícita da rejeição da figura do magnata das telecomunicações, por parte dos realizadores do filme.

  • Crítica | Democracia em Preto e Branco

    Crítica | Democracia em Preto e Branco

    Democracia em P e B

    Cuidadosamente focado em sua introdução sem cores – em preto e branco -, o filme de Pedro Asbeg emula a barra pesada da época, com a repressão do Regime Militar ainda sem as “novidades europeias” do futebol, e da democracia. O medo tomava conta da vida dos cidadãos, os mandantes não tinham qualquer pudor em demonstrar o seu poderio, humilhando as pessoas comuns, que não tinham acesso aos mesmos direitos dos que impunham fardas. O contra-ataque precisava acontecer em alguma instância, e sob o som de Núcleo Base do IRA!. uma destas facetas é mostrada, sob os campos de São Paulo; uma outra luta, ligada a igualdade, ao esporte e a música.

    A narração de Rita Lee grafa o quanto havia um não-desejo pela alternância no poder, tanto dos presidentes nacionais militares, quanto no certame do Corinthians, com Vicente Matheus no posto mais alto. A realidade aviltante que ocorria no quadro político brasileiro gritava mais do que qualquer receio “clubístico”, uma vez que a insegurança que tomava os não-poderosos, por sua vez era motivada pela “segurança” dos governantes.

    A derrocada do Brasil fez com que os integrantes da nova chapa do poder no Sport Club Corinthians Paulista se interessassem por um maior progressismo não condizente com os outros tempos, os de Matheus especialmente. Com o tempo, o laranja do antigo presidente, Waldemar Pires. O catalisador desta mudança viria primeiro pela figura de Sócrates, um jogador elegante, inteligente, letrado e inconformado, mas ainda sem um norte, sem uma direção para lutar. Este paradigma mudaria com o acréscimo do lateral Wladimir. O rapaz de pele negra acompanhava as greves no ABC Paulista, se via então como um operário da bola. Dali começava uma discussão mais profunda a respeito dos direitos civis, ainda no elenco de um time de futebol. O último fator para que o grito fosse completo viria com a juventude, com Walter Casagrande Júnior, o centro-avante de apenas 19 anos, que trazia a polêmica do Rock’n Roll na postura, cabelos e na pele para dentro de campo, paro algo além do simples “tatibitate” do futebol.

    Os jogadores passaram a ganhar voz, se valendo até da queda de divisão do time, uma vez que eles disputavam a Taça de Prata. A inflação piorava, o medo de faltar alimento na mesa do pobre aumentava, enquanto o modo de reger via repressão parecia cada vez mais tacanho, com uma trilha sonora que começava a falar mais abertamente sobre a hipocrisia da lei. Viriam Edgard Scandurra com o seu IRA!, a letra de Selvagem dos Paralamas, que louvava o monstro que somente crescia, e claro, o disco de Paulo Miklos e seus Titãs Cabeça Dinossauro, que não mais via o amor como a via para caminhar o povo, e sim mostrava através dos riffs de guitarra como era truculenta a realidade do país. O rock de Frejat, Cazuza, Renato Russo, Ultraje e outras turmas mostravam o que era o pensamento do jovem, como ele via as direções sociais que a nação tomava.

    Sob a tutela do administrador técnico – e também sociólogo – Adilson Monteiro Alves e de Sócrates, começava o que Juca Kfouri e o publicitário Washington Olivetto nomeariam como Democracia Corintiana, onde todos tinham o mesmo poder de voto e peso. Jogadores como Zenon, Wladimir e Casão eram politizados, e ajudariam a quebrar os paradigmas de concentração pré-jogo e do bom-mocismo como método de tratar o esporte. A civilização do time de Parque São Jorge não era obrigatoriamente moralista, ao contrário: Era evoluída, madura, sabendo bem o que se queria.

    Para Sócrates, foi o movimento político dos jogadores que manteve o time bem dentro das quatro linhas. Esta era a base do bom futebol deles, além claro do acesso aos shows de músicos amigos, Blitz, Rita Lee, Maria Bethânia entre outros. A relação dos esportistas com os músicos era bastante intrínseca e íntima, de modo que era quase indistinguível a identidade de um e de outro. A busca pela liberdade de expressão era comum aos dois segmentos, a música era o canal para a liberação, o que não ocorria desde 1968, com o jovem falando para o jovem.

    O pensamento evolui, como dito na narração por Lula, e o advento da Democracia Corintiana passaria a falar também do voto do povo, do voto direto que finalmente ocorreria. A campanha mudaria para DIA 15 VOTE, grafada acima dos números dos jogadores de futebol, o que visava quebrar a deseducação política do torcedor comum, desde os geraldinos e arquibaldos até aos já conscientes de que era preciso modificar o quadro político, e mobilizar a opinião pública.

    Os comícios para as Diretas Já começaram bastante tímidos, com poucas pessoas. E aos poucos o movimento aumentaria, até desembocar no comício da Praça da Sé, de um caráter suprapartidário, com discursos de Ulysses Guimarães, Brizola, Lula, Fernando Henrique, em uma união completamente impensável atualmente, unidos pela quebra da tutelagem do povo brasileiro, para que a população pudesse enfim andar sozinha, reconquistando sua democracia. A rejeição da emenda em 1984 foi um duro golpe na população brasileira; o sentimento de comoção logo deu lugar a sensação de que foram iludidos, inclusive Sócrates, que aceitaria a proposta de venda para a Fiorentina, da Itália.

    Os integrantes daquele time preferem encarar todo aquele tempo com um saudosismo tocante, de que o país voltaria a sorrir, e que havia começado ali a redemocratização do Brasil. No entanto, a sensação de que o pior da ditadura ainda permanecia não poderia ser ignorado, uma vez que o modus operandi policial prossegue semelhante ao do Regime. Até pela última música executada – Até Quando Esperar, da Plebe Rude -, a sensação de Democracia em Preto e Branco não é de otimismo, e sim de uma amálgama entre a melancolia e a objeção, de um país que apesar de um pequeno progresso, ainda tem muito a evoluir; muito esforço a ser executado para que se torne uma república minimamente digna, sendo esse viés o que faz da fita ser algo muito a frente dos documentários contemporâneos.

  • Crítica | O Presidente

    Crítica | O Presidente

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    O novo filme de Mohsen Makhmalbaf explora uma história fictícia cujos desígnios remetem a tragicômica veracidade do sistema político de muitos países. O início, com uma música clássica, remete a um sistema governamental deveras arcaico.  O lugarejo simulado apresentado na fita é localizado no Cáucaso, e governado com punhos de aço por um presidente totalitário, vivido por Misha Gomiashvili.

    Os dias do mandante são vividos quase na totalidade em uma frieza atroz, normalmente nos palácios e bastidores do poder. O Presidente se permite demonstrar humano e suscetível à sentimentos quando está com seu neto Dachi (Dachi Orvelashvili). Ao expor de maneira exibicionista o seu poder ao “herdeiro”, o estadista enfim nota a contestação do povo em relação à política, e observa o início de um motim.

    O modo desconjuntado como anda o menino emula a dificuldade em governar de seu antecessor. O fogo flagrado pela câmera mostra a violência das manifestações e a tomada de poder contrária aos personagens focados pela lente de Makhmalbaf . A tentativa é de mostrar as vidas, tanto a do ditador por trás da figura de poder, quanto dos mártires assassinados pelo autoritarismo exacerbado.

    As cenas que se seguem após a fuga da família do soberano misturam elementos de horror e thriller. O receio é passado ao público e a troca de poder é rápida. As forças armadas mudam de lado instantaneamente deixando de tocar com banda para mudar a farda e caçar seus antigos empregadores. Enquanto o presidente troca de veículo após se ver em meio a um bando de ovelhas, seres dóceis e obedientes, diferentes das recém-tomadas atitude do povo.

    O contraste entre a vida rica e cheia de luxos do outrora rei, e as condições econômicas dos camponeses fazem o antigo político sentir na pele o mau governo que realizou, incapaz de dar sustento necessário as famílias. Sem as vestes militares, é a empáfia que segue firme no caráter que o diferencia dos homens comuns.

    Aos poucos a trajetória do ex-mandatário o dobra, fazendo se arrepender – ao menos de ter sido tão teimoso ao não fugir com o resto de sua família – pondo em risco a vida de seu progênito. A rotina muda até os nomes das personagens, em consequência a isto. Saem os títulos oficiais para alcunhas menos pomposas, o rei posto se mostra penitente, ele chega até a assumir seu péssimo gênio, antes de seguir em seu teatro pessoal, fingindo ser um músico nomadista.

    Ao viver alguns dias na miséria, o ex-governante observa uma outra visão. Ao perceber o flagelo de uma mulher injustiçada, o Presidente prefere fechar os olhos, provando que algo mudou em si. O dilema moral que sofre não se iguala a queda vertiginosa de conduta de grande parte do povo, que em meio a selvageria sem liderança, regride e agride os seus iguais, o que prova que a malignidade não habita somente o coração do Líder, mas também dos concidadãos que residem no país. A companhia que resta ao antigo poderoso é composta por presos políticos. Homens que sofreram por suas péssimas ações governamentais, cujos posicionamentos são variados, uns sendo revanchistas e outros mais conciliatórios. Ali ele reparte tudo o que tem, e até confronta os “terroristas” que mataram parentes seus.

    O quadro ultrarrealista pintado por Makhmalbaf é pior que qualquer imaginação de um ficcionista, por escrutinar um lado recorrente das repúblicas não democráticas de países periféricos ao cenário da elite mundial. Os ecos de terceiro mundo são vistos em cada cenário, paisagem, vestimenta, na fome e nos corpos das vítimas conterrâneas do desolado lugar, causados pelas baixas da guerra civil.

    As partes finais são em descenso, quase sem alívios cômicos, degradantes como a existência dos populares do fictício país, podre como a alma do seu antigo mandatário. Apesar de uma cena epilogar um pouco aquém do plot de fuga – mas absurdamente emocionante e trágica -, o rei se faz parte do povo, o que não o exime da culpa e nem da fúria dos explorados e desmazelados. A ânsia pelo sangue do tirano é tanta que uma morte só é pouco, e o modo da execução muda de acordo com os vitimados secularmente por seus anos de domínio. Para não esquecer a abordagem dos olhos de um menino, o destino do ancião não é mostrado, mesmo após as quase duas horas que tentam fazer o público se afeiçoar, mas sem permitir que o salário do protagonista seja finalmente cobrado, tendo como fim seu irremediável destino.

  • Crítica | O Mundo Segundo Lula

    Crítica | O Mundo Segundo Lula

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    Ao iniciar seu filme com um passeio por Brasília, German Gutierrez demonstra um pouco do que seria a incerteza da subida ao poder por Luiz Inácio Lula da Silva rumo ao palanque máximo do país brasileiro. A cerimônia de passagem de faixa de Fernando Henrique Cardoso, claramente contrariado, simboliza um pouco do que a narradora diz, os resquícios do que a burguesia pensava ao assistir a ascensão de um membro do proletário ao poder.

    Para Lula, sua vitória após tanto tempo é a mostra de uma evolução do pensamento do povo brasileiro, finalmente rompendo com a mentalidade de país colonial e colonizável, sempre subordinando-se às economias de países mais ricos e claramente exploradores. O começo da carreira do político foi feito em plena ditadura militar, em meio a um regime opressor que esmagava o homem.

    De família pobre, demorou a se alfabetizar, o que claramente se reflete nas suas falas tacanhas e repletas de vícios linguísticos, como a supressão do plural. Este defeito serviu bem para ele, ao menos num segundo momento eleitoral, uma vez que o aproximava do povo com quem ele tencionava falar. Aos trinta anos, tornara-se líder sindicalista, apoiando as eleições diretas, ao invés do regime ditatorial, como “único modo do povo se manifestar”. A partir daí, se explora o começo da trajetória do metalúrgico enquanto um governante.

    O horizonte mostrava o povo como um parceiro do político, feliz com o seu modo de tratar as relações exteriores, alguns até surpresos pelas origens humildes de sindicalista, mas as críticas também são devidamente documentadas, ainda que o cunho destas seja deveras tímida e comedida.

    A feitoria do filme foi logo após a reeleição de Lula, e não menciona em nenhum momento os escândalos políticos de seu partido, como o Mensalão, ainda que haja uma pequena menção nos letreiros ao final, claro, destacando-se o crescimento do país em um cenário mundial. A sensação de O Mundo Segundo Lula é um filme institucional é enorme, ao analisar-se seu caráter chapa-branca, mas é importante de ser analisado na contemporaneidade, especialmente pela avalanche de desinformação que corre a rede mundial em relação aos avanços do país nos anos em que Luiz Inácio foi presidente da República Federativa do Brasil, e a respeito de quem tem ou não lutado ao lado do proletariado brasileiro. Nisto, o filme de Gutierrez traça um bom prospecto, obviamente atentando para o bom mocismo do político.

  • Crítica | O Candidato Honesto

    Crítica | O Candidato Honesto

    Utilizando a desilusão do povo com a política prolixa, falastrona e mentirosa praticada no Brasil, O Candidato Honesto apresenta um produto típico das comédias da Globo Filmes, mais uma vez tentando remontar o sucesso das velhas chanchadas e chamar o público com seu astro principal, Leandro Hassum, conhecido especialmente pelo humor físico e desbocado, além de integrar programas televisivos de qualidade duvidosa.

    A plateia embevecida abraça a trama desde o início ao sorrir com piadas bobas, repletas de trocadilhos com seguimentos escatológicos. O background do político João Ernesto é semelhante é ao do presidente Lula com passado um sindicalista ligado ao setor dos transportes. Em meio a trilha que destaca a corrupção eleitoral, a campanha de Ernesto é mostrada com situações repetidas entre minorias, desde o Movimento de Sem Terra, operários, paraguaios e assim segue.

    A fotografia acompanhada da luz chapada aumenta o escopo de desfaçatez, tanto do candidato quanto no roteiro e direção de Roberto Santucci. A imprensa que envolve João é complacente com seus atos, tratando-o de forma tranquila, sem discussões de qualquer proposta ou questão espinhosa. A vida pessoal, pautada num estilo playboy bon vivant é tratada sem qualquer viés denunciativo, que só não é pior composto do que o costumeiro hábito de Hassum em fazer piadas com sua voz abaixando tons inteiros ao mentir, acompanhada de um vocabulário chulo para referir aos seus aliados e familiares.

    O erro crasso do roteiro é fomentar a estupidez na discussão de ideias relativas ao rumo político do país, apelando a piadas típicas de redes sociais e frases de subcelebridades para garantir o riso do público. Nem mesmo a curva dramática, envolvendo a lição de moral dada por sua convalescente avó, Dona Justina (Prazeres Barbosa), se sustenta. Aos moldes do filme de Jim Carrey, O Mentiroso, um feitiço é lançado para que o plenário fale sempre a verdade. No leito de morte a anciã promete conversar com Deus para mudar o destino do antigo netinho querido.

    A atmosfera de total falsidade não é aplacada sequer pelo montante de palavrões presente nas palavras de João. O modo como o personagem age com a adimplência na câmara e com o mulheril é semelhante ao boatos envolvendo candidatos reais, como Aécio Neves. Diversas analogias rasteiras são mostradas como compras de ministérios por parte de partidários religiosos que convenientemente carregam uma mala com dinheiro.

    Como esperado em um roteiro padrão a redenção do personagem principal surgirá em algum momento, uma prerrogativa praticamente anunciada desde o primeiro minuto de exibição. O arrependimento surge na figura da repórter Amanda ( Luiza Valderato) que acredita na honestidade do político e fica desolada ao saber que este é corrupto e mandante do esquema de compra de influência chamado Mesadinha.

    O ultramoralismo da produção é elevado a alta potência até mesmo para a previsibilidade de sua abordagem com momento convenientes para a trama como o discurso do honesto João assistido por boa parte da população. O nível do poder do candidato é tanto que é capaz de falar para as câmeras até mesmo sem microfone, em horário não programado pela emissora. Tudo em nome de um discurso contra a corrupção, apelando ao final para um argumento bobo, louvando a nulidade do voto e a retirada da campanha de candidatos ficha suja. O paraíso existente nas palavras de João são capazes de anular a eleição e tamanha alienação contida neste seguimento sugere que a sequência foi escrita por João Revolta, um personagem revoltoso de um canal do You Tube. Candidato Honesto consegue se impor abaixo da linha de mediocridade em comparação com as outras comédias ruins de Hassum e de Santucci.

  • Crítica | Jango

    Crítica | Jango

    Reunindo pedaços de informes oficiais da época em que o biografado era um político ativo, Jango começa com a viagem do então vice-presidente a China, que ficaria famosa por ter sido tão “longa”, que não permitiria a João Goulart assumir seu posto como o mandante máximo do país. O medo vermelho, o mesmo que predominava no gigante asiático. O filme de Silvio Tendler não tem qualquer pudor em escolher lados, assim como os que subiriam ao poder e que seriam criticados pela fita.

    Jânio Quadros, até então presidente, circulava com toda a sua ebriedade ao lado das “forças ocultas” (fala do próprio roteiro), junto aos militares, levantando uma série de teorias a respeito das origens do golpe. Enquanto corre a trilha de Wagner Tiso e Milton Nascimento, é mostrado um registro fotográfico saudosista, que remetia ao período histórico menos conturbado antes da tomada de poder e claro, a intimidade de Jango.

    A narração de José Wilker busca dar ainda mais importância a biografia do político, um homem, segundo os altos, sempre comprometido com as causas sociais. A ascensão dele é flagrada, desde o começo da carreira, muito próximo ao segundo governo de Getúlio Vargas, como também seus serviços de parlamentar, as corridas eleitorais ganhas e perdidas e claro, a assessoria que prestava a Juscelino Kubitschek. Jango seria o primeiro político mandante sul-americano a ter autorização de pisar em solo soviético, o que claramente pesaria contra ele anos depois.

    A ascensão de Jânio Quadros é destacada, especialmente os seus modos ultra-moralistas, que incluíam a proibição da veiculação de biquínis na televisão. Era um delegado no poder, alinhado com os interesses da classe média, a mesma que foi denunciada por Arnaldo Jabor em Opinião Pública. No entanto, a posta de Jânio era tão curiosa que ele condecorou Ernesto Guevara, conhecidamente ligado à esquerda vermelha, o que demonstrava o desequilíbrio das suas aspirações e comportamento político. Enquanto Goulart estava na China, fazendo o mesmo que fazia em Moscou, Jânio Quadros renunciaria, deixando Ranieri Mazzilli no poder provisório.

    O medo de que o Brasil se tornasse uma nova Tchecoslováquia seria o principal motivo do motim organizado pelas forças armadas. Mesmo com as atitudes contrárias de famosos políticos, como Leonel Brizola, era tarde, já que os governadores de grandes estados como os de Rio e São Paulo deflagaram a repressão imediatamente.

    A preocupação da direita brasileira com relação a Jango ocorria, claro, pelos contatos do presidenciável, mas foi muito agravada pela opinião declarada de John Kennedy. Além de tencionar conter a dívida externa brasileira, procurava também interferir em alguns dos seus planos econômicos, pois aos seus olhos, estes eram muito semelhantes ao ideal socialista, obviamente, quando analisados pela perspectiva do mandante da nação que era a principal inimiga da URSS.

    A narrativa varia entre os momentos contemporâneos de 1984 e a pregressa vida de Jango quando ainda não era vice, até a tomada de poder por parte dos militares. O período em que Goulart foi presidente, mas com muito menos poder do que deveria, uma vez que se implantou uma política parlamentarista que curiosamente acabou com o término de seu mandato, foi curto, para logo depois ser “convidado” ao exílio, no Uruguai.

    Já com o Regime instaurado no Brasil, e longe de sua pátria, João Goulart via as outras pátrias do Cone Sul serem dominadas por ditaduras de direita, tendo na deposição do chileno Salvador Allende o seu tiro de misericórdia. Segundo familiares, o ex-político sonhava em retornar a sua pátria, mas impossibilitado por sua débil saúde, morreu no exílio, em 1976, sabendo que poderia ser um dos alvos da Operação Condor, que estreitava as relações entre os governos latinos tirânicos e que “coincidentemente” teve muitos dos seus opositores encerrados em mortes misteriosas.

    O jornalista Carlos Castello Branco declarou em nota que Jangomorreu como um peão perdido à procura do seu galpão“, em virtude de não poder voltar ao seu lugar de origem. Somente seu cadáver voltaria a sua cidade natal, a gaúcha São Borja. O filme de Silvio Tendler acaba contando uma parte importante da história brasileira, ainda que sua ótica seja parcial, claro, sendo jamais injusta, uma vez que essa voz nunca havia sido garantida ao político, tampouco aos seus adeptos.

  • Crítica | Junho: O Mês que Abalou o Brasil

    Crítica | Junho: O Mês que Abalou o Brasil

    Há muito não se via um registro de cunho esquerdista explícito no Brasil. Há muito. A maioria utiliza-se de metáforas e manobras de marketing pra tapar o sol com a peneira. A famosa produtora O2 Filmes e o jornal Folha de São Paulo de posse de tais circunstâncias uniram fatos e relatos ao útil e agradável, dando voz ao povo, falando em tom publicitário e jornalístico o que o povo quer e fez ouvir, captando o devido caráter subversivo (para um tabloide que apoiou a ditadura e parece se redimir a quem não esquece disso). O efeito multidão, o resgate da repreensão policial (encontrada todos os dias nas periferias), a cobertura sacrificante dos tipos de imprensa dentro da unidade informativa: tudo em Junho representa, da forma mais clara e direta possível, o sentimento e a comoção pela representatividade almejada entre os semestres de 2013. Os responsáveis e as razões são levados tão a sério quanto a credibilidade que a maior produtora e o segundo maior jornal do país conseguem assegurar e manter durante a narrativa com fôlego de cobertura ao vivo.

    Em ordem cronológica, Junho se mantém, se expande e aumenta a carga de denúncia e reconstituição na proporção que as manifestações tomaram: um rastro de pólvora, indo muito além dos grandes centros, incluindo dentro do congresso de Niemeyer; a reputação do hino nacional e a reverberação acadêmica que não resistiram ao levante; a ira que profetizou Bob Dylan e fez roubar o destaque da dita “Copa de Todo Mundo” – sério? – e atrair a atenção do mais alto nível do judiciário brasileiro; do quarto poder celebrado nesta expressão em 1955,  usada pela primeira vez pelo teórico de comunicação norte-americano James Carey. Utilizando a avaliação de vários outros mediadores da opinião pública e do senso comum geral, percebe-se que:

    1. O documentário é um programa político de um canal de televisão disposto a atrair o cidadão que clama por mudanças civis;

    2. A investigação das motivações sociais e dos parlamentares, talvez anárquicas em ambos os casos, e próximas em suas afetações complementares, depende única e exclusivamente do espírito crítico de quem assiste e sente esta produção, só assim respondendo suas perguntas, tecendo o mérito da obra;

    3. É interessante, porém incompleto, o modo com que causa e efeito são redigidas, constatadas ao longo do material, do eco dos gritos, da contradição de um torneio mundial de futebol ser realizado num país exausto pela falsa confraternização esportiva, como se o paralelo das agruras entre a festa nos estádios vitoriosos e uma saúde/educação/segurança/previdência/população carcerária fracassadas ganhassem síntese pela panorâmica de um drone sobrevoando os protestos e movimentos. Senão pela ideia a partir do poder da imagem, o espectador é mais uma vez submetido à qualidade das informações que recebeu e recebe;

    4. Esse viés democrático também se contradiz por não dedicar um minuto à versão da Polícia Militar, por pior ou melhor que esta seja.

    Tamanha a certeira injustiça com os méritos das imprensas locais, o documentário e a Folha acertam por não irem além do foco ocorrido em São Paulo. Mas sugerem que em diversos estados e municípios brasileiros, com sensibilidade e prudência exaltadas, revelaram a mesma alma revolucionária que em 2014 não morreu, sobrevivendo por todo o território ainda marcado nas entrelinhas pela ditadura de anteontem. E o que começa como peça publicitária se revela, entre testemunhos e a relevância social de cada um deles, uma aquisição incansável e honesta até o último minuto, mas com forte gosto de vinagre à quem acha que tá tudo bem. Tá tudo tranquilo.

    Atualizado: Esta crítica foi escrita um dia antes das eleições de 2014, quando o Brasil ainda acreditava em mudanças estruturais no sistema civil que parece representar, sim, a maior parte do povo. Hoje, 06 de outubro, um dia após o resultado eleitoral, tudo continua igual, e Junho se torna, a partir de então, o manifesto de uma revolução que nunca aconteceu.

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  • 10 Filmes Políticos

    Politicagem, quando a desvalorização ética e moral é tendência, seja nas ações políticas, ou nas iniciativas públicas no horário eleitoral, cuja real utilidade chega a causar vergonha alheia no eleitorado. O cinema não previu esse ou outros fenômenos que vão e voltam, mas já mostrou vários lados desta moeda, que se encontra hoje mais desvalorizada que o real nos tempos atuais de inflação. Abaixo e sem uma ordem de preferência, quase uma dúzia de bons exemplos sobre o tema, de valores político e artístico inestimáveis.

    I – Dr. Fantástico (1964), de Stanley Kubrick
    A crítica visão política de Kubrick, por todo o exclusivo estilo de sua filmografia, não poderia ser diferente. O ridículo e o desastre de um sistema à beira do colapso, comandado à flor da pele por homens desesperados para serem salvos, em um mundo confuso que tentam salvar em seus hemisférios e contrastes dissonantes, e só o aparente milagre de um cadeirante voltar a andar pode impedir um mundo desses de explodir em cacos e paranoia. Ou não…

    fantástico

    II – Masculino, Feminino (1966), de Jean-Luc Godard
    Cada um em seu quadrado, ainda que na mesma sociedade, como homens e mulheres enxergam não apenas o seu oposto, e sim o cenário que os circunda, influencia e os trata diferente, nas diferenças que sustentam ambos os gêneros. Sem cair em clichês, Godard cria sua mais profunda e diversa, a mais inclusiva análise sócio-política de sua carreira militante, em Masculino, Feminino. Lidar com uma miscelânea de temas através da típica poesia Godardniana, e uma genial narração diegética em forma de diálogos inteligentes e pertinentes, enquanto o filme constrói uma identidade própria… não é fácil.

    masculino feminino

    III – M.A.S.H.(1970), de Robert Altman
    Extremamente bem construído entre arcos e desfechos paralelos (a edição do filme ainda é uma das maiores para histórias múltiplas do Cinema), M.A.S.H. é hilário, de humor corrosivo às digressões morais e às loucuras que podem ocorrer nas possibilidades surreais de uma guerra armada. Crítico sem ser didático sobre a questão, é a comicidade americana olhando pro próprio umbigo e tendo que rir da sujeira e imundice acumuladas, durante as incertezas de uma condição política extremista.

    MASH

    IV – (1969), de Costa-Gavras
    Registro imparcial a ponto de poder ser confundido com um improvável mockumentary, ou seja, uma versão hiper-realista da ficção sobre a realidade das coisas, tamanha é a fidelidade ao implacável momento ditatorial que Cuba ostenta em sua recente história pós-colônia americana. Por ajudar a construir um padrão da qualidade das produções contestadoras nos anos 60, Z virou um monumento jornalístico e histórico sem preço ou precedentes, senão categórico quanto aos idos que imortaliza e inspira por alguma atitude semelhante, em outras realidades dignas de uma denúncia de força similar.

    Z

    V – O Grande Ditador (1940), de Charles Chaplin
    A maior comédia política do Cinema, muito provavelmente, sendo que nunca a ironia de um cineasta foi tão longe, a ponto de, mais que parodiar, então avacalhar tanto Hitler quanto aqueles que pensavam poder se defender por acreditarem em uma paz impossível, no auge da Segunda Guerra. A cena do Globo terrestre nas mãos de um ditador, ou a tristeza manipulada de uma raça inteira, independente de lados e acasos, no inesquecível discurso final do proletariado a frente de uma câmera, com voz e visibilidade pela primeira vez… Sob dimensões lógicas e sensoriais, no fundo ou na superfície, é o Chaplin mais completo e corajoso.

    ditador

    VI – A Mulher Faz o Homem (1939), de Frank Capra
    A utopia de um homem só, batalha individual, otimista e bem-intencionada, em cenário de princípios políticos maiores e incompatíveis quanto aos de um senador honesto e sincero. Uma visão alternativa quanto ao papel de um bom representante público, inserido numa câmara de predadores da constituição, ironicamente, em um dos berços da democracia e da luta ideológica para faze-la valer a pena. E em meio a um enorme conflito de interesses partidários, o fato é que nunca, em Hollywood, se fez um Cinema tão saudável ao bem-estar do público, sem ser moralista, ingênuo ou chato, igual ao Cinema fraterno de Frank Capra.

    smith

    VII – Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha
    O atestado oficial do cineasta estadista e engajado que Glauber Rocha não conseguia evitar em ser. Engajamento poético sem delírio ou conceito lenitivo quanto as polêmicas situações políticas brasileiras, no século XX (a popular mão na cabeça não existia em seus manifestos de Cinema Novo). Em Terra em Transe, produto maduro e consciente, a cena em que um casal se encontra no meio de uma manifestação pública falsamente revolucionária, é um esplendor a quem captura um filme além da imagem, esta inserida em contexto que verte sociologia e populismo prático, em típicas doses Glauberianas de potência extrovertida. Transe é um leão selvagem numa jaula que, liberto, quer e consegue devorar tudo e todos.

    terra

    VIII – Memórias do Subdesenvolvimento (1968), de Tomás Gutiérrez Alea
    Taxi Driver versão guerrilha. Comparações em voga, Memórias não deixa de ser um introspectivo e psicológico complemento prévio a Z, de Gavras, acerca das consequências de uma imposição cultural pelas frentes do movimento separatista de Fidel Castro, em Cuba, e do preço na vida social de um cidadão esquecido por Deus, e pela própria autonomia de exercer sua cidadania em uma Havana imprevisível, e devidamente filmada em Preto e Branco, em um grande estudo de personagem que grita e esperneia sua impotência, pelo silêncio apocalíptico da nação ao redor.

    memórias

    IX – Outubro (1928), de Sergei M. Eisenstein e Grigori Aleksandrov
    Filme gigante, literalmente. O verdadeiro épico de Eisenstein é uma catarse elucidativa a respeito da consagração histórica, artística, e como efeito imediato, de um documento humanitário em forma de Cinema. Cinema contestador, onipresente nas questões que debate em suas poderosas imagens, frutos da ambição de um cineasta, Outubro é o tipo de filme que não se faz mais, em lugar algum do século XXI. O filme que comemora o décimo aniversário da Revolução Soviética, de 1917, é um dos poucos exemplos que, por não ter medo de levantar bandeira sobre o que acreditava merecer a celebração, se tornou imortal.

    outubro

    X – Todos os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula
    Os contornos e limites do direito de liberdade de expressão, do ponto de vista da mídia, o quarto poder num estado de democracia, são traduzidos em excelência e importância vertebral a partir de investigação à moda antiga, em Todos os Homens do Presidente. Um filme simbólico o bastante para ser um parâmetro além dos tempos de Nixon, e do impacto que uma má reputação pode causar numa sociedade à beira de fatos, meias verdades e mentiras sobre quem a comanda e a mantém informada, com muito, muito custo. O jornalismo e a política adoram dividir a cama, mas trabalhar juntos é outra história.

    presidente

     

  • Crítica | Brasil: Um Relato de Tortura

    Crítica | Brasil: Um Relato de Tortura

    Produzido como um documentário acadêmico, que seria exibido nas televisões de San Francisco, o média-metragem começa com um apelo sincero, provindo de um dos exilados brasileiros no Chile. Sem qualquer ressalva, ele fala da realidade daqueles que não tiveram a mesma “sorte” que ele. Curiosamente, o pedido vai em direção a uma das nações que olhavam com olhos que apoiavam o período de regime ditatorial impingido pelos militares no Brasil.

    Após o anúncio dos créditos iniciais da fita, a câmera registra os sobreviventes que reproduzem suas lembranças através de um teatro improvisado, lembrando as queimaduras de cigarro na epiderme e emulando a arquitetura do pau de arara. As legendas em inglês demonstram a que povo esse produto é destinado.

    Uma jovem de vinte e cinco anos começa seu discurso em espanhol, falando em detalhes das torturas que sofreu e que também outras amigas também sofreram, relatando agouros que envolviam até violações sexuais, onde introjetavam objetos mil nas vaginas das moças. Apesar da voz embargada e dos muitos suspiros ao falar da agressividade com que era tratada, não é possível ofuscar o motivo que a fez praticar os atos marginais que a levaram a ser presa. O tempo todo ela destaca que sua luta é pelo povo.

    Após mostrar as marcas de bala em uma mulher vítima dos truculentos atos policiais, o Padre Tito declara como foi tratado na prisão, provando que mesmo uma figura do clero sofria tais situações de aflição, sendo torturado com choques elétricos e outros padecimentos, que o forçavam a fazer suas necessidades em plena roupa, impedindo-o até de se limpar após toda a crueldade dos atos. Esse tratamento era destinado a todos indiscriminadamente, segundo o sacerdote.

    Os torturadores não ignoram fatos como o roubo de carros e outros objetos por meio da expropriação, mas também permitem aos guerrilheiros improvisados explicar os motivos que os fizeram tomar aquelas atitudes. Aos olhos dos “companheiros”, a mentalidade de como o Governo trata seu povo é algo maligno. Destacando-se uma fala de um dos militares, que diz que “é necessário que cada cidadão brasileiro passe pelo pau de arara, para saber quem é patriota ou não”, enquanto a juventude engajada era humilhada por eles e pela mídia, que se dobrou ante os interesses governamentais como terroristas e subversivos.

    O documentário ganhou uma importância grande, não somente por seu conteúdo, mas por carregar nas suas fileiras de produtores o nome de Haskell Wexler, ganhador do Oscar de Fotografia por Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (1966) e Esta Terra é Minha Terra (1976). Sua notoriedade em terras estrangeiras garantiu uma voz que o “grupo dos 70” jamais teve em sua terra-natal. O filme, exibido pela primeira vez em 1971, jamais foi liberado oficialmente no Brasil, exceto, é claro, pela presença do produto na íntegra no acervo digital de sites de compartilhamento de vídeos na internet.

    Os últimos vinte minutos do programa se dedica, quase que exclusivamente, aos relatos de torturados que viram seus filhos, crianças que obviamente não se envolveram em nenhuma questão política, sofrerem os mesmos maus tratos, ora suavizados, por serem infantes, ora sendo violentadas no mesmo nível de agressividade. Vê-se que a tortura não conhece limites, e a prisão e exílio conseguem separar os tais revolucionários, mantendo famílias distantes entre si, graças à perseguição ainda muito presente no começo de década de setenta.

    Perto do desfecho, um dos membro do grupo diz o quanto é complicado ter de reviver todas as cenas de tortura, reencenadas para demonstrar visualmente quais eram as dores do povo brasileiro. Essa era a ponta do iceberg da completa falta de democracia do país, o que, em última análise, representa a situação mundial, relembrando o conflito no Vietnã e outros semelhantes. O manifesto dos rebeldes era o único modo que enxergavam de revidar o sofrimento que viveram. Uma visão romantizada do que seria a justiça e do que seria o modo correto e digno de viver em meio a uma sociedade tão subdesenvolvida quanto a brasileira, que ainda enxergava na repressão um bom modo de controlar o povo, fazendo-o refém do medo e do pavor aos que detém o poder. Para Não Dizer Que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, termina a trilha e a película, numa imaginação bem mais otimista que todo o conteúdo dos relatos apresentado no vídeo.