Crítica | O Inferno de Henri-Georges Clouzot
É cruel afirmar que só quem aprecia documentários carrega em si uma alma investigativa, mas é a verdade. Em 1991, Francis Ford Coppola foi a estrela do longo registro Francis Ford Coppola – O Apocalipse de um Cineasta, cuja existência prova, por A+B, a insanidade que foi filmar qualquer cena de Apocalypse Now, uma das super produções mais árduas e custosas a quem se propôs a realizá-la, tamanha foi a escala épica do projeto, junto a Fitzcarraldo e A Montanha Sagrada, só pra ficar com os épicos dos anos 70, década de grande expansão tecnológica. Na verdade, a simples intenção de pegar uma câmera e fazer Cinema é sinal da mais pura megalomania e complexo divino, essa coisa de brincar de Deus e criar o próprio mundinho controlado por poucos, vide Jacques Tati e o próprio George Clouzot, que comandavam a experiência tão bem. Cada um em seu gênero – Tati como o rei da comédia francesa, Clouzot, o conde do suspense française. Seu mais famoso clássico impermeável ao tempo, O Salário do Medo, colocou em 1953 o cinema criticando o espírito capitalista pós-moderno, mesmo que de forma abstrata, o que geralmente produz filmes arrebatadores como esse, da série “digno de revisões eternas”, sem sombra de dúvida. Um filme implacável e forte como qualquer atestado de nobreza por parte de Clouzot, que em companhia de Jacques Tourneur, o mestre das sombras, é orgulho nacional e artístico indiscutível.
O elegante O Inferno de Henri-Georges Clouzot mostra o outro lado da moeda que quase todo cineasta enfrenta: o querer fazer e não conseguir por qualquer motivo inerente à necessidade de ter sua arte concluída na realidade. Kubrick morreu antes de A.I. – Inteligência Artificial ganhar vida (e excesso de emoções que faria o diretor de Laranja Mecânica vomitar), porém seu intuito de reescrever nas telas com o mesmo fascínio estético de Barry Lyndon a vida e o caráter do imperador Napoleão Bonaparte nunca foi possível devido, mais uma vez, à impensável escala e ambição da ideia cujas dimensões nenhum estúdio quis carregar nas costas. E não é preciso ir longe: cinema no Brasil com um circuito dominado por super-heróis americanos é como puxar um navio de 160 toneladas morro acima em plena Amazônia. Menções a Herzog à parte, Inferno, o sonho não realizado da vida de Clouzot, tinha um roteiro de 300 páginas, e a devoção de um pai louco para ver seu filho à luz pela primeira vez. Isso nunca aconteceu.
A partir do som da câmera a registrar partes de um todo inconcebível, o documentário destrincha o que seria o filme a partir de contatos próximos à razão da maior frustração do artista, cultuado por meia dúzia de obras-primas. É possível imaginar o que poderia ser o almejado Inferno, romance de experimentos de linguagem, talvez o maior feito de Clouzot, de fato se assim a história tivesse caminhado em prol de um deleite. Todavia, o filme de grandioso não tinha nada, senão o que ele significava com storyboards, elenco e locações muito referente à rica obra do italiano Michelangelo Antonioni (A Aventura). Um provável fracasso, ou uma provável revolução: dois dos potenciais que consistem qualquer imagem e som. O foco poético frustrado pela rota turva da realidade dura. O documentário consegue dar água na boca a quem se interessa pelo provável ópio de um artista, e esse é um feito mais raro que o próprio tipo de Cinema que só Clouzot, em sua identidade, sabia manter em nossa memória. Para alguém que adapta Edgar Allan Poe, tudo é plausível, certo?
“Quando as pessoas não entendem, elas preferem ironizar a situação.” – Clouzot, o incompreendido.
O filme não seria um filme, mas tinha tudo pra ser um grande experimento, em plena Nouvelle Vague: o som conduzindo à imagem e o calor da discussão, um surreal acoplado à essência de um filme e outros indícios do gênio pulsante de Clouzot são os destaque graduais de um documentário excelente para estudiosos ou simpatizantes do fazer artístico, aqui valorizado desde a ideia até a a concepção, que por motivos óbvios não chega a ser final (de acordo com suas imagens divulgadas, o filme seria um ótimo expoente do moderno estilo pop art, sem qualquer indício do popular e influente estilo Art Noveau do século XIX). Sugestivo no ponto certo e concreto quando precisa ser, O Inferno de Clouzot é a exposição do making of de algo possível, habitando o rol do “quase”, onde o Napoleão de Kubrick e o Dom Quixote de Terry Gilliam, outro projeto maldito, tomam chá além de restrições ou orçamento disponível. A toca do coelho é profunda aonde só o Cinema, a mais completa das artes, consegue ir quando deseja.