Resenha | Vida Conjugal – Sergio Pitol
Vida Conjugal é a prova surrealmente realista que faltava as consequências práticas da infidelidade num casamento, culminando desde as primeiras páginas numa relação fadada aos cacos já visíveis no horizonte. Isto posto, encara-se o fato de que, quando homem e mulher se organizam para acabar (o mais depressa possível) com o enlace que já existiu, firme e forte entre eles, a vida dá um jeito de piorar ainda mais as coisas com um toque dos mais perversos, possíveis. Como se exclamasse, num dia a dia caótico: “a culpa de tudo isso é de vocês”, ou ainda: “vocês merecem seus infortúnios, e não venham me dizer que não sabem”. O recado, portanto, é claro: no começo, o aroma e a exuberância das flores e das promessas dão o tom, regem a música e o frescor do banho a dois, mas os sinais de se estar assumindo um erro sempre existem, manifestando-se aos que não se deixam cegar.
O interessante mesmo é notar como o curto e solene romance do mexicano Sergio Pitol já começa: nem Jacqueline nem Nicolás querem salvar mais nada, respirando com a intensidade que o autor comanda essa cruel paródia conjugal um odor venenoso de vingança matrimonial – um contra o outro, e também, contra eles mesmos, tal o mais amargo dos sadomasoquismos por se permitirem viver um martírio na Terra. Agindo ambos tal a célebre Madame Bovary, do clássico romance de Gustave Flaubert, aqui as duas partes não apenas regam sua relação com o espírito angustiante da infidelidade e de um distanciamento insuportável. Vão além, e ostentam um desprezo e uma necessidade de superação perante a quem dividem a mesma cama, as mesmas crises que temperam grande parte dos casamentos, mundo afora.
Resolvem isso longe um do outro, já que Nicolás só se importa em comandar um grande complexo turístico do México, e Jacqueline, ascender socialmente para fugir do espectro ubíquo da pobreza que sofreu antes de entrar para a universidade, e conhecer seu príncipe, Nicolás. Muito antes de inclusive se tornar um estorvo ao marido, tal ela reconhece, com seus costumes e reuniões com amigos próximos sobre livros, e cultura no geral. Um começa a sobrar na vida do outro, mundos opostos que não resistem ao choque por muito tempo. Um só pensa em trabalho e dinheiro, e a outra, no mundo das artes, na fama, no primo que lhe serve de amante, uma piscina para afogar carências oceânicas. É claro que o casal tem hora marcada para o fim, e acompanhar Vida Conjugal é se sentar na melhor poltrona possível para assistirmos a construção de uma bomba-relógio, um artefato programado em uma narrativa irônica para dinamizar uma insustentável leveza que já se encontra, nós ficamos sabendo, em incontáveis frangalhos mútuos.
Pitol comanda sua obra com uma sagacidade e dinamismo de fato marcantes, muito bem traduzidas ao português por Bernardo Ajzenberg, para a Companhia das Letras, proporcionando grandes momentos e ótimas reflexões geralmente a respeito de Jacqueline, a que revela para todos sua vida íntima na espera desesperada de uma solução, uma epifania, uma fuga mágica, já que uma amnésia é tão impossível quanto voltar a dormir no mesmo quarto do cônjuge. É curioso observar, tal moscas infiltradas numa relação que não é nossa, mas universalmente acolhida, os detalhes de uma fundação matrimonial rachando em direção ao pó, numa velocidade que apenas aos envolvidos é devagar e dolorida, como a espera pelo marido que não volta para dormir, ou por alguma ação da mulher que não satisfaz mais o companheiro de jeito nenhum. A base da loucura típica que a vida as vezes reserva a quem tem a coragem de encará-la, acompanhamos a jornada ao ponto final de duas pessoas alimentando seu inferno a dois de não de forma pessimista, mas cármica, enquanto Pitol dá um show no retrato de uma fatalismo tão delicioso de se entranhar.
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