Resenha | A Gigantesca Barba do Mal (2)
Qual o seu propósito na vida? Para muitos, é ficar rico, ganhar o Nobel, ter uma família gigante na mesa do natal. Para outros, ter uma casa própria, viajar o mundo ou ser motivo de orgulho para os pais. Mas muito do que nos une, sem sabermos, é a vontade de dar sentido na nossa vida. Sentido a essa experiência caótica, com uma carteira assinada, metas alcançadas, uma família sem brigas, morando numa vizinhança sem muita violência, se possível. Sem saber, esse é o nosso objetivo: organizar um roteiro cujas reviravoltas são, de todo modo, imprevisíveis. É claro que falhamos nisso, a pandemia do Covid-19 em 2020 nos lembrou disso, alterando todos os planos e sistemas em voga. Terremotos são inevitáveis, já diriam os japoneses. Do caos que não aceitamos nós viemos, e nunca sairemos dele.
Quanto A Gigantesca Barba do Mal, eis uma alegoria irresistível a montanha-russa que é a nossa vida (coletiva e individualmente), e a todos os efeitos que precisamos lidar da nossa ridícula mania de tentar organizar nosso frágil dia a dia, mesmo sob a possibilidade de um vírus abalar nossas certezas, e o mundo inteiro ter de parar. É sobre essa presunção de controlar o incontrolável curso do rio, algo tão humano e tão inútil assim, que a premiada graphic-novel de Stephen Collins se desdobra em uma prosa ilustrada impecável, seguindo os passos de um homem acima de qualquer suspeita, e que no mais banal dos dias, no trabalho mais chato que há, seu chefe o incumbe de uma apresentação no escritório de um gráfico inexplicável. Nisso, pela primeira vez na sua vida ultra correta e 100% meticulosa (não 99%, e sim 100%), Dave dá de cara com o caos em forma de gráfico! Justo ele, tão devoto ao sistema, a ordem, a segurança.
Mas parece que a desordem venceu – e soube como encontrá-lo. O choque e a pressão são insuportáveis, e de repente, algo começa a brotar desse homem. Dave está sendo exprimido, e todos podem notar esse fenômeno que não dá para esconder. Uma barba, grossa, grande, gigantesca, monstruosa, com vida e opinião própria – saindo dele, sendo exprimida do pobre Dave, aquele que sempre buscou e conseguiu alcançar o lado virginiano e equilibrado da vida. De repente, tudo fica fora do controle que ele, de fato, nunca teve sobre nada, mesmo morando na pacata ilha de ‘Aqui’. Diferente de ‘Lá’, cujos habitantes de ‘Aqui’ abominam devido as lendas sobre o caos que impera em ‘Lá’, em ‘Aqui’ as ruas são padronizadas, não há violência, todas as metas são alcançadas sem margem a imprevistos, as árvores de ‘Aqui’ são aparadas e o sistema local impera tal o mais perfeito relógio suíço, cujas engrenagens são tão irrepreensíveis quanto a própria obra de Stephen Collins.
Com ritmo de mestre ditando a intensidade que existe entre os quadrinhos e as páginas, Collins destila com uma coerência incrível, e sem ser melancólico nesse exercício de linguagem, a sua invejável habilidade metafórica de nos divertir com os absurdos que A Gigantesca Barba do Mal produz. A barba Godzilla de Dave é o elemento tempestuoso que abala ‘Aqui’, já que nada é garantido e a vida até mesmo na ilha consiste nisso, em movimento. É justamente essa fragilidade do cotidiano e a necessidade natural de mudanças que Dave começa a sentir, a vivenciar na pele, e com o mesmo assombro catártico diante do gráfico empresarial, ele recebe o convite, a imposição do destino (ou seja lá como se chama a história da nossa vida) de aceitar que de relógio suíço, as coisas de verdade não tem nada, muito menos garantia ou longevidade. Tudo isso sem amargura, tampouco rebeldia enquanto o fator surreal da barba avança onde antes o banal era a lei. O destino não pede nossa opinião, tal qual o primeiro fio de cabelo branco no cocuruto do desavisado. Pode tingir a vontade: a “ordem” agora vai ser outra.
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