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  • Resenha | A Gigantesca Barba do Mal (2)

    Resenha | A Gigantesca Barba do Mal (2)

    Qual o seu propósito na vida? Para muitos, é ficar rico, ganhar o Nobel, ter uma família gigante na mesa do natal. Para outros, ter uma casa própria, viajar o mundo ou ser motivo de orgulho para os pais. Mas muito do que nos une, sem sabermos, é a vontade de dar sentido na nossa vida. Sentido a essa experiência caótica, com uma carteira assinada, metas alcançadas, uma família sem brigas, morando numa vizinhança sem muita violência, se possível. Sem saber, esse é o nosso objetivo: organizar um roteiro cujas reviravoltas são, de todo modo, imprevisíveis. É claro que falhamos nisso, a pandemia do Covid-19 em 2020 nos lembrou disso, alterando todos os planos e sistemas em voga. Terremotos são inevitáveis, já diriam os japoneses. Do caos que não aceitamos nós viemos, e nunca sairemos dele.

    Quanto A Gigantesca Barba do Mal, eis uma alegoria irresistível a montanha-russa que é a nossa vida (coletiva e individualmente), e a todos os efeitos que precisamos lidar da nossa ridícula mania de tentar organizar nosso frágil dia a dia, mesmo sob a possibilidade de um vírus abalar nossas certezas, e o mundo inteiro ter de parar. É sobre essa presunção de controlar o incontrolável curso do rio, algo tão humano e tão inútil assim, que a premiada graphic-novel de Stephen Collins se desdobra em uma prosa ilustrada impecável, seguindo os passos de um homem acima de qualquer suspeita, e que no mais banal dos dias, no trabalho mais chato que há, seu chefe o incumbe de uma apresentação no escritório de um gráfico inexplicável. Nisso, pela primeira vez na sua vida ultra correta e 100% meticulosa (não 99%, e sim 100%), Dave dá de cara com o caos em forma de gráfico! Justo ele, tão devoto ao sistema, a ordem, a segurança.

    Mas parece que a desordem venceu – e soube como encontrá-lo. O choque e a pressão são insuportáveis, e de repente, algo começa a brotar desse homem. Dave está sendo exprimido, e todos podem notar esse fenômeno que não dá para esconder. Uma barba, grossa, grande, gigantesca, monstruosa, com vida e opinião própria – saindo dele, sendo exprimida do pobre Dave, aquele que sempre buscou e conseguiu alcançar o lado virginiano e equilibrado da vida. De repente, tudo fica fora do controle que ele, de fato, nunca teve sobre nada, mesmo morando na pacata ilha de ‘Aqui’. Diferente de ‘Lá’, cujos habitantes de ‘Aqui’ abominam devido as lendas sobre o caos que impera em ‘Lá’, em ‘Aqui’ as ruas são padronizadas, não há violência, todas as metas são alcançadas sem margem a imprevistos, as árvores de ‘Aqui’ são aparadas e o sistema local impera tal o mais perfeito relógio suíço, cujas engrenagens são tão irrepreensíveis quanto a própria obra de Stephen Collins.

    Com ritmo de mestre ditando a intensidade que existe entre os quadrinhos e as páginas, Collins destila com uma coerência incrível, e sem ser melancólico nesse exercício de linguagem, a sua invejável habilidade metafórica de nos divertir com os absurdos que A Gigantesca Barba do Mal produz. A barba Godzilla de Dave é o elemento tempestuoso que abala ‘Aqui’, já que nada é garantido e a vida até mesmo na ilha consiste nisso, em movimento. É justamente essa fragilidade do cotidiano e a necessidade natural de mudanças que Dave começa a sentir, a vivenciar na pele, e com o mesmo assombro catártico diante do gráfico empresarial, ele recebe o convite, a imposição do destino (ou seja lá como se chama a história da nossa vida) de aceitar que de relógio suíço, as coisas de verdade não tem nada, muito menos garantia ou longevidade. Tudo isso sem amargura, tampouco rebeldia enquanto o fator surreal da barba avança onde antes o banal era a lei. O destino não pede nossa opinião, tal qual o primeiro fio de cabelo branco no cocuruto do desavisado. Pode tingir a vontade: a “ordem” agora vai ser outra.

    Compre: A Gigantesca Barba do Mal.

  • Resenha | Bear – Volume 3

    Resenha | Bear – Volume 3

    Na continuação das aventuras da jovem Raven e seu amigo urso Dimas, a fim de encontrarem os pais perdidos da garotinha, o mundo criado por Bianca Pinheiro para servir de palco as peripécias dessa dupla de atrapalhados toma, agora, proporções bem mais ambiciosas e visualmente interessantes: neste terceiro volume de Bear, viajamos junto deles a oceano, ou melhor, a um vasto Rio que precisa de ajuda! Numa clara alusão a poluição das águas que tanto é causada como pode ser revertida pela ação do homem, Raven e Dimas encontram em seu caminho uma entidade chorona, e gigante, cujas lágrimas formam um córrego sem fim, e que pode inundar o mundo todo se a sua tristeza continuar assim, firme e forte.

    Para conter suas lágrimas, os dois aceitam a nobre missão de encontrar o cetro mágico que foi roubado do Rio, e trazê-lo de volta das profundezas do fundo do mar! Nisso, ambos ganham a capacidade de nadar e respirar debaixo da água, mas o tempo para diversão é curto: ou Raven e Dimas descobrem logo onde está o cetro, ou tudo na Terra vai ser encharcado. Nem é preciso dizer que embarcar em mais um corre-corre com nossos amiguinhos é, novamente, uma delícia com tantas reviravoltas e coisas a se fazer, agora, entre sereianos (sereias não, sereianos!) e tubarões super amigáveis que fazem Dimas se borrar de medo, afinal carne de urso deve ser bem apetitosa aos dentes do mais temido predador dos sete-mares.

    Toda criança já quis visitar o fundo do mar, antes ou depois de assistir a Procurando Nemo e se encantar com tantas cores e maravilhas debaixo d’água. Por ironia do destino, Raven agora ganha a oportunidade, sempre na esperança de encontrarem, de alguma forma também inesperada, mamãe e papai que ela perdeu, um dia, num passeio na floresta. Enquanto a hora do reencontro não chega, ela e Dimas fazem amizades que a levam aonde nem seus sonhos mais malucos conseguiriam levá-los! No meio do caminho até o cetro, velhos personagens do Volume 1 e 2 da saga Bear retornam para ajudar e atrapalhar nossa dupla de “heróis”, uma vez que confusão chama por confusão, num efeito bola de neve irresistível, e elas nunca parecem ser o suficiente.

    Sempre irresistível para todos os públicos, Pinheiro continua a encantar qualquer leitor que se aventurar por sua obra, publicada com capricho pela Editora Nemo, mantendo as páginas grandes para destacar a total qualidade gráfica do trabalho da autora. Com suas tramas ágeis e inteligentes, este Volume 3 peca pelo seu final bastante corrido, e talvez vago demais para ser capaz de dar um desfecho coerente, e realmente significativo a esta aventura marítima dos adoráveis Raven e Dimas. Mesmo assim, segue-se sendo um deleite ter acesso a essa jornada em busca dos pais de Raven que, é bom deixar claro, ainda está bem longe de terminar. Afinal, ela e seu parceiro fofo e peludão ainda tem muitos reinos para conhecer, muitas loucuras para se meter, e muitas lições da vida para aprender.

    Compre: Bear – Volume 3.

  • Resenha | Bear – Volume 2

    Resenha | Bear – Volume 2

    É inevitável cair de amores pelo trabalho de Bianca Pinheiro, na série gráfica Bear (leia a resenha do primeiro volume). Na aventura da jovem Raven e seu grande amigo urso Dimas para encontrarem os pais da garota, a devoção de Bianca pelo projeto está em cada cena, em cada página colorida; todos os momentos que se tornam inesquecíveis em nossa memória dado o brilhantismo, a simplicidade e o brilho literário tão presentes neste segundo volume. Agora, Raven e Dimas continuam na estrada, lançando-se novamente ao desconhecido mundo dos adultos, um pelo outro, enquanto reencontram velhos conhecidos, como a Dona Pivara, e novos aliados e inimigos a se fazer, e a combater. Nada é fácil na vida, mas com bons amigos essa afirmação enfraquece, rapidinho.

    Se os alvos são um só (achar papai e mamãe), o que poderia atrapalhar uma garotinha senão a sua própria imaturidade? Simbolizando isso de forma oportuna, somos convidados a entrar na cidade de Metódica, onde o absurdo impera livre e solto. Devido a um misterioso feitiço, todos os habitantes do município voltaram magicamente a ser crianças, condição que os faz esquecer também de tudo o que aconteceu desde que ganharam pelos, e de como a melhor coisa da vida é brincar e rejeitar esse terrível monstro chamado “brócolis”. Convencida de que não apenas pode ajudar a todos, mas encontrar seus pais em Metódica, Raven entra na cidade mas releva um pequeno detalhe: Dimas já era adulto, e agora infantil, ou melhor, infantiloide, ele desaparece apenas para criar confusão a sua amiga que se irrita fácil.

    Em meio a este drama, como todos vão superar então a saudade de seus pais que, aparentemente, ficaram mais rebeldes que os seus próprios filhos? Para reatar seus laços e voltar à normalidade, as crianças de Metódica precisarão tomar as rédeas da situação e procurar o culpado para o dilema de suas famílias, mas não antes de enfrentar conflitos entre elas mesmas, já que um grupo de baixinhos não quer perder o controle que conseguiram sobre os outros, em uma clara alusão ao clássico O Senhor das Moscas, de William Golding. E para piorar as coisas, notamos que o jovem Dimas odeia andar, e cabe a Raven puxar o ursinho – se adulto ele é resmungão, quando criança ficou mimado como todos os adultos mais infantis que se prezem. “Mas pelo menos meu pai aprendeu a sorrir, agora que virou criança!”, revela uma das moradoras de Metódica.

    A história de Pinheiro tem em si a sensação de um abraço apertado; de uma soneca aos pés de uma lareira. Seus diálogos são realistas a ponto de soarem como crianças de verdade falam, e o ritmo da leitura deste segundo volume é o mais gracioso possível. Se a estrada é o que realmente importa em uma aventura, e não o seu destino, o nosso prazer em acompanhar de perto essa dupla atrapalhada de amigos não poderia ser maior, já que a série Bear invoca o que há de mais leve e colorido na vida com um frescor cativante e poderoso, para todas as idades. Ao fim deste segundo volume, o leitor se sente órfão de Raven e Dimas, dos amigos que abandonaram, mas muito mais humano e inspirado após as lições e reflexões que encontramos pelo caminho, sempre com um sorriso estampado ao esperar por mais aventuras recomendadíssimas, como essa.

    Compre: Bear – Volume 2.

  • Resenha | Bear – Volume 1

    Resenha | Bear – Volume 1

    “Mas a gente tem que sair de uma prisão de cada vez.”

    Quando a busca pelos pais torna-se uma odisseia rumo ao absoluto desconhecido, tudo é possível aos olhos de uma jovem garota que só quer ter seu pai e sua mãe de volta. Após perdê-los ao caçar uma borboleta em uma densa floresta, a baixinha Raven descobre com toda a sua esperteza (e inconsequência), mesmo sem saber, que vive o privilégio da infância de poder caminhar em um mundo colorido, cheio de surpresas divertidas e amigos inesperados para lhe ajudarem a solucionar todos os enigmas da vida adulta. Uma “adultecência” esta que, para ela, nem é tão complexa assim, pelo contrário: para Raven, quanto mais desafios ela desvenda pelo caminho até seus pais, mais vale a pena encarar as surpresas (e as reflexões) da grande aventura, a frente.

    Logo no começo, entramos todos com Raven numa caverna escura onde reside um perigo mortal, um urso! Dimas é o elemento surpreendente que a protege, em toda a sua imaturidade infantil, de frutas venenosas, a esquenta para dormir, e nunca desiste de sua nova amiga – mesmo nos momentos mais frustrantes da jornada. Sua amizade se reforça a medida que mais problemas aparecem, e a zona de conforto de Dimas fica cada vez mais para trás. Dimas fica sendo o Totoro de Raven, a criatura fiel que torna-se o contraponto da perspectiva da menina: enquanto para ela tudo é um parque de diversão (também graças a sua inteligência relâmpago), o urso vê as regras do mundo adulto sob uma palavra, apenas: ridículo! Também por isso, Bear é um convite a uma visão mais graciosa das regras que regem nossa realidade, cheia de senhas, armadilhas, falsos amigos e responsabilidades que nos distanciam da nossa essência, aquela que traímos com o passar dos anos.

    Ao procurarem por um oráculo para eles lhes dizer aonde estão os pais de Raven (é curioso notar como Dimas nunca a culpa por se perder da família, mas ajuda a garota sem nunca julgá-la por ser erro, talvez por perceber a inocência por trás do equívoco), o profeta se revela apenas um jovem fanático por Harry Potter, sendo misteriosamente capturado por dois homens desenhados em preto-e-branco, e num traço bem diferente da identidade visual da graphic novel, por serem o rigor encarnado do tempo, e a frieza do dinheiro. No reino dos homens engravatados, há espaço de sobra para a corrupção, e falta para o sonho. Raven não entende isso, é claro. Dimas enxerga tudo, mas não ousa explicar nada. Mas o que representam um urso e uma garota a vagar, por ai, juntos como pão e manteiga, ou dois típicos irmãos que a vida trata de juntar?

    Para a autora Bianca Pinheiro, essa amizade à prova de tudo é o que a vida tem de melhor, afinal, são os nossos laços que nos tornam o que são, nos salvando, nos inspirando muitas vezes a ver com o coração em tempos que precisam tanto disso, e nos empolgando a nunca desistir de encontrar o que precisamos: uma família, uma verdade, um sonho, um afago. O primeiro volume da saga Bear, da editora Nemo, vem com uma parte gráfica caprichada aprimorando, com sua impecável qualidade estética e páginas de tamanho grande, a experiência de nos envolver com gosto nos rumos dessa aventura repleta de coadjuvantes inesquecíveis, como um Rei obsessivo por charadas em um mundo já complexo, o bastante. Sempre há pessoas para dificultarem as coisas. Como diria Dimas: ridículo. Bear conta com uma trama encantadora e muito mais significativa do que aparenta, sendo assim uma belíssima obra para toda a família. Em especial, claro, aos mais jovens que sempre veem além dos mais velhos.

    Compre: Bear – Volume 1.

  • Resenha | Bolland Strips!

    Resenha | Bolland Strips!

    Brian Bolland é um artista britânico muito conhecido pelos leitores de quadrinhos norte-americanos devido à sua incrível participação na graphic novel A Piada Mortal, de Alan Moore para a DC Comics. Nela, Bolland captura o texto pesado e sombrio de Moore para uma história do Batman com o Coringa em traços detalhados e ricos em expressões faciais, além dos excelentes contrastes de luz e sombra. Talvez essa riqueza de detalhes seja a marca característica de Bolland, que começou sua carreira profissional anos antes de ir para a DC, trabalhando em publicações inglesas como 2000 A.D., principalmente nas histórias do Juiz Dredd. Por seu traço exímio, Bolland fez carreira nos Estados Unidos desenhando principalmente capas, visto que sua arte leva um tempo muito maior para ser produzida do que o habitual para revistas mensais. Ainda assim, grandes obras como Camelot 3000 constam no seu currículo.

    Bolland Strips é uma coletânea publicada pela Editora Nemo em 96 páginas em preto e branco, com miolo em couché e capa dura, trazendo material autoral e muito longe das histórias de super-heróis. O álbum conta com a íntegra de sua série A Atriz e o Bispo e das tirinhas autorreferenciais do Sr. Mamoulian. É interessante notar a diferença de estilo entre as duas obras, onde A Atriz e o Bispo contém o traço característico de Bolland enquanto Sr. Mamoulian é mais experimental e despojado, às vezes tosco.

    A Atriz e o Bispo conta a história desse improvável casal e é praticamente centrada na quebra de expectativas do leitor. A Atriz nos é apresentada graficamente com características de dançarina burlesca, com seu corpo altamente voluptuoso – em várias cenas de nudez – e figurino extravagante, como se estivesse sempre em cena. Enquanto isso, o Bispo jamais tira suas vestes sacerdotais e carrega seu báculo, casula e mitra mesmo ao fazer suas necessidades fisiológicas ou, simplesmente, dormir. Representado como um velho gordo e abatido, temos na história do Bispo a tal da quebra de expectativa que permeia o texto: nada é exatamente o que parece, e o religioso tem um passado com máculas das quais ele não consegue se libertar, e que molda também o seu caráter, sua mais que aparente falta de fé e a hipocrisia de quem tem tudo aquilo que deseja bem em sua cama, mas ainda não se esquiva de um rabo de saia. O personagem é, sobretudo, uma caricatura de um conservadorismo religioso tacanho que, mesmo longe de suas afirmadas convicções, não consegue se desapegar das aparências de fachada. Uma crítica aos costumes e morais religiosas que vemos se repetir na edição mais adiante.

    A personagem da Atriz traz também essa quebra de estereótipo que o próprio autor definiu. Se sua representação desenhada é de uma mulher com todas as características de uma meretriz sem talento e aproveitadora de um velho rico, sua personalidade está um tanto longe disso. A Atriz se mostra extremamente habilidosa em vários aspectos, seja fazendo malabarismos com facas ou simplesmente preparando o jantar, mas é válido notar o quão culta ela é. Sempre lendo um livro ou aprendendo uma nova língua, a personagem não se resume a profundidade de um pires que se faz entender no início do conto. A relação entre os dois – apesar de uma escapada com alguém nas sombras que com certeza é o Alan Moore! –  é feita de afeto, carinho e cuidado. Talvez o leitor se frustre com o final que, novamente, quebra uma expectativa criada durante toda a história, mas o desfecho segue a linha do autor de se afastar da fantasia e deixar o leitor tirar suas próprias conclusões.

    Já a segunda parte do álbum conta com as tirinhas do Sr. Mamoulian, e é onde Bolland se sente mais livre para dizer aquilo que pensa, ou simplesmente não dizer nada! No texto introdutório ele afirma que se forçou a fazer suas páginas como se estivesse escrevendo uma carta, e que do jeito que saísse, ficaria. Assim, ele afirma ter vários erros, tanto de desenho quanto de escrita (que a tradução talvez não tenha repassado para o leitor), mas que seria algo fluido e sincero. Não se trata de uma grande ensaio sobre a vida, mas algumas reflexões do autor ficam evidentes. Ele continua criticando o conservadorismo tal qual na primeira parte do livro, mas aqui ele também tece ácidas críticas ao pós-modernismo e a posições progressistas. Se em A Atriz e o Bispo ele quebra a expectativa ao representar a figura feminina, aqui ele faz exatamente o oposto: sua personagem Cara de Merda é um completo estereótipo negativo de feminista masculinizada com posições incoerentes. Aliás, todas as personagens mulheres da série são estereótipos, o que nos faz pensar que o autor tenha algum tipo de problema em se relacionar com o sexo oposto (na verdade, em mais de uma ocasião, o próprio alter ego de Bolland chega a afirmar isso).

    Fecha a edição algumas hqs de uma página, com uma representando um trecho cruel da Bíblia apresentado no Livros dos Reis, e umas ilustrações que vale a pena parar para ver os detalhes (principalmente os escondidos na estola do Bispo), que mais uma vez aponta para uma crítica à religião. Bolland Strips! não é um quadrinho convencional e muito de seu conteúdo é aberto a interpretações. O trabalho de tradução está realmente muito bom, principalmente na primeira parte onde a adaptação dos versos está impecável. É nítido o esforço da Editora Nemo em trazer um material muito bem revisado e com o esmero merecido para a obra de um artista tão aclamado entre leitores de quadrinhos.

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  • Resenha | Rosalie Lightning: Memórias Gráficas

    Resenha | Rosalie Lightning: Memórias Gráficas

    Costuma-se dizer que a maior das dores na vida de uma pessoa é perder um filho ou uma filha. Essa inversão da ordem natural das coisas costuma representar uma quebra do ciclo da vida, que acomete a milhares de pessoas mundo afora.

    Com a história em quadrinhos Rosalie Lightning: Memórias Gráficas, o quadrinista estadunidense Tom Hart conta sua história de vida, relatando sua experiência com a morte de sua pequena filha Rosalie, e como ele e sua esposa fizeram para lidar com essa incomensurável perda. Escrevendo e desenhando, o autor se abre para o leitor em suas reminiscências, descrevendo sensações, retratando percepções, de um ponto de vista absolutamente sensível: o daquele que perde.

    Com menos de dois anos de idade a garotinha faleceu, vítima de um mal súbito, cruel e implacável. Partindo tão cedo deste mundo, Rozi deixou marcas indeléveis em seus pais, que do dia pra noite se viram perdidos, distanciados pelo destino do papel com o qual já haviam se familiarizado, o de pais.

    Já estabelecidos como “pais de Rosalie”, Tom e Leela se encontram em uma espécie de limbo identitário após a perda da filha, uma vez que não conseguem mais se definir por outra coisa que não a função que ganharam quando Rozi veio ao mundo. Hart abre o coração na obra e se expõe de forma contundente, esmiuçando as memórias do trauma, abordando a desorientação inerente à perda e os primeiros passos dele e de sua mulher em busca de uma retomada na vida. A narrativa se torna cada vez mais dolorosa na medida em que o autor retrata de forma extremamente verossímil a convivência com a filha, conferindo-lhe identidade e uma vivacidade ímpares.

    A Rosalie transposta para o papel cativa a cada quadro em que aparece, o que torna ainda mais triste toda a história, uma vez que sabemos qual o seu trágico destino. É interessante a forma como Hart coloca em perspectiva seu papel nessa tragédia, por vezes se enxergando de forma alienada em meio ao caos que consumiu sua vida durante o turbilhão de acontecimentos pelos quais passou. Mesclando realidade e imaginação, Hart concebe a narrativa como uma colcha de retalhos, para exemplificar o estado emocional dele e de sua esposa.

    Se cercando de referências que variam entre a cultura pop e a vida real em sua faceta mais cruel, o quadrinista ilustra tanto seu sentimento de perda como contrapõe o cotidiano de Rosalie. Hart se utiliza dessa concepção metarreferencial para poder lidar com a perda à sua maneira, dando profundidade para a narrativa, sem colocar referências a esmo na história.

    Podemos dizer que “Rosalie Lightning” consiste em uma experiência catártica de Tom Hart, em busca da superação de um trauma com o qual ninguém espera lidar. Uma obra sensível e que toca profundamente, a história em quadrinhos versa sobre a imprevisibilidade da vida e o inexorável peso da morte na vivência humana. A arte simples – mas nunca simplória – de Hart confere leveza para uma história naturalmente tensa e pungente. O uso de páginas pretas em determinados momentos para representar a profunda depressão na qual Leela e Tom se encontram é de uma inventividade contumaz.

    A mensagem de superação de Tom Hart é poderosa, na medida em que o autor se coloca em uma trajetória de retomada de vida, se impulsionando na memória de Rosalie para superar essa terrível e irrecuperável perda. Rosalie Lightning é mais um grande título publicado no Brasil em 2017 com altíssima qualidade pela editora Nemo, conta com 272 páginas e capa cartão.

    Compre: Rosalie Lightning.

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  • Resenha | Garras de Anjo

    Resenha | Garras de Anjo

    A dupla formada pelo finado Jean “Moebius” Giraud e pelo chileno Alejandro Jodorowsky marcou época na Bande Dessinée franco-belga com O Incal, trabalho que potencializou de diversas outras obras de curta duração. Em 1994, contudo, os dois talentosos autores desenvolveram o álbum erótico Garras de Anjo, que trafega entre os limites da história em quadrinhos e do livro ilustrado.

    O traço do artista francês continua esplendoroso como de costume, mas a narrativa de Jodorowsky causa incômodo em grande medida, uma vez que o autor chileno se coloca no papel de um eu lírico feminino e se propõe a discorrer sobre as reminiscências da jovem Garra de Anjo, em um olhar pretensamente poético e erotizado sobre seu passado.

    Cabe aqui uma pequena consideração: ao longo da literatura e da história dos quadrinhos como um todo, diversos homens obtiveram êxito ao emularem a voz feminina, captando detalhes do imaginário feminino com grande precisão. Tal tarefa, ainda que possível, torna-se cada vez menos estimulável, haja vista toda a justa luta por empoderamento feminino e pela ascensão da causa feminista na contemporaneidade. Mal posso imaginar como podem se sentir algumas mulheres ao se depararem com a representação de feminilidade escolhida para esse álbum.

    Em que pese o olhar histórico (uma vez que estamos aqui falando de uma história concebida há cerca de 25 anos atrás), Jodorowsky pesa demais a mão nesse trabalho, e erra demais ao propor uma representação feminina sob uma ótica completamente distorcida e por vezes doentia. Completamente edipiana, Garras de Anjo enxerga em todas as figuras masculinas, reflexos de seu pai.

    Passando por recordações perturbadoras, que evocam um aparente caso de abuso infantil, com reverberações na adolescência da jovem, o autor chileno concebe o monólogo interior da jovem protagonista, em uma espiral surrealista que demole as barreiras entre as camadas de realidade e imaginação, contando com o traço de Moebius para conceber metáforas visuais perturbadoras, misturando a sensualidade das personagens femininas com a bestialidade das figuras masculinas.

    O artista francês desenha mulheres sensualíssimas, dando expressividade e lascívia para olhares, sorrisos e gestos, em cada painel que produziu para acompanhar os textos de seu parceiro chileno. A obsessão fálica que permeia a história é flagrante, com o traço de Moebius contrapondo representações ultrarrealistas para as figuras femininas, enquanto toda e qualquer representação de um pênis acabe descambando para o grotesco, para o exagero em tamanhos e formas. Não podemos atribuir tal característica obsessiva somente a Jodorowsky ou Moebius, o que nos leva a creditar tal necessidade perturbadora à dupla em igual medida.

    Ao longo da trajetória da personagem, que busca tortuosamente alcançar a maturidade, nos deparamos com a glorificação do abuso, da violência sexual como medida de transcendência identitária, em um delírio freudiano que coloca toda e qualquer vontade feminina girando em torno do falo. Para alcançar sua elevação, Garras de Anjo precisa adquirir um falo para si, para conservar sua feminilidade com a autoridade inerente ao aspecto fálico. Por fim, a permissividade às bizarras maneiras de penetração acabam resultando em um incompreensível.. coração. Repugnante, definitivamente.

    A obra, celebrada por muitos e demonizada por outros, foi publicada aqui no Brasil pela Editora Nemo em um luxuoso e belíssimo álbum de 76 páginas, em capa dura e envernizada, no mesmo formato da Coleção Moebius, da própria editora.

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  • Resenha | Deslocamento: Um Diário de Viagem

    Resenha | Deslocamento: Um Diário de Viagem

    A potência dos relatos em quadrinhos se encontra muitas vezes no impacto que estes causam em seus leitores, mas muitas vezes esse choque se dá não por tocar em eventos de proporções épicas e incríveis, mas justamente por dar a perspectiva do banal, dos pequenos momentos que transformam as vidas das pessoas diariamente.

    Em Deslocamento: Um Diário de Viagem, a norte-americana Lucy Knisley narra os acontecimentos de uma viagem que ela realizou como acompanhante de seus avós, já envelhecidos e absolutamente dependentes de sua constante vigilância. Não fosse pela sensibilidade da autora, tal evento poderia passar despercebido, visto que dentro das relações familiares o cuidado para com os mais velhos é algo comum.

    Lucy relata com maestria o contexto que envolveu sua decisão de acompanhar os avós em um cruzeiro pelo Caribe, um passeio atípico para pessoas como eles, que já se encontravam bastante limitados pela ação do mais implacável dos inimigos: o tempo.

    A relação do ser humano com o passar do tempo é a tônica de Knisley nessa história em quadrinhos, uma vez que a narradora-personagem expõe de maneira bem clara ao longo da trama sua estupefação e inadequação com os efeitos que o tempo gerou em duas pessoas as quais ela amou e conviveu desde a mais tenra idade.

    Tal sentimento ressoa no leitor de forma contumaz, uma vez que todos nós estamos à mercê da passagem implacável do tempo, que se descortina diante de nossos olhos, levando de nós nossos feitos, nossas memórias, tudo aquilo que batalhamos literalmente durante uma vida para conquistarmos.

    A perda da autonomia, os lapsos de memória, as extravagâncias e cismas típicas da velhice são bem abordadas por Lucy Knisley, que expõe com muita naturalidade situações constrangedoras, como a incontinência urinária do avô, as confusões mentais da avó, tudo de forma lúdica e bem realista.

    É tocante a forma como Lucy passa por essa experiência se questionando a todo momento sobre o objetivo daquilo tudo, bem como demonstra a todo instante o amor e o respeito com o qual encara aquelas pessoas que, ainda que atualmente fragilizadas, já lhe foram muitas vezes um sólido ponto de referência na vida.

    Os questionamentos pelos quais a autora se coloca são deveras pertinentes, visto que ela coloca em xeque temas como formação acadêmica, generosidade, egocentrismo, expectativas familiares, dentre outras divagações às quais ela se permitia embarcar, durante os cerca de dez dias de viagem. As reflexões de Lucy alcançam tamanho nível de complexidade e variedade que permeiam temas como a guerra, uma vez que ela passa a viagem toda lendo, quando possível, o livro de memórias do avô, um combatente da segunda guerra mundial.

    Na novela gráfica podemos, indubitavelmente, observar uma verdadeira trajetória de crescimento pessoal da narradora-personagem, o que gera diferentes interpretações para o próprio título da obra, uma vez que o deslocamento físico de Lucy e seus avós nessa experiência conjunta só não é maior do que o deslocamento emocional da autora, que atravessa suas questões com o passar do tempo, se interpondo nessa relação cruel e inevitável, buscando apreender o máximo possível das experiências que a vida lhe proporciona.

    A arte de Lucy Knisley é extremamente dinâmica, usando e abusando das possibilidades geradas pela mídia quadrinhos. Os requadros das páginas em muitos momentos inexistem, deixando os espaços em branco ditarem a transição entre as sequências aparentemente soltas de imagens aquareladas que compõem a narrativa.

    Utilizando-se de letreiramentos inventivos, Knisley não permite que sua história mantenha uma estruturação de cenas linear, optando por modificar-se a todo instante pela página, o que causa estranhamento no início, mas garante fluidez com o passar do tempo. Tal estratégia é arriscada, pois a ousadia em sua diagramação pode muito bem ser confundida com falta de esmero no trabalho de decupagem, bem como gerar uma sensação de confusão no processo de leitura.

    A disposição textual da história, contudo, também confere uma proximidade maior do leitor com sua honesta narradora-personagem, uma vez que nos leva a entender de forma sincera, direta e límpida a maneira como ela se vê dentro de toda essa experiência de compaixão, altruísmo e amor genuíno.

    Deslocamento: Um Diário de Viagem, história em quadrinhos publicada pela Editora Nemo em 2017 e que conta com cerca de 144 páginas e capa cartão, acerta em cheio ao trazer o leitor para perto da trama, para lidar com um tema tão tocante quanto a relação do ser humano com o envelhecimento e a compaixão que devemos ter para com todos e, sobretudo, para com aqueles que nos cercam.

    Compre: Deslocamento: Um Diário de Viagem.

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  • Resenha | A Gigantesca Barba do Mal (1)

    Resenha | A Gigantesca Barba do Mal (1)

    Não sou um leitor assíduo de livros, mas busco sempre ler alguma coisa, principalmente autores considerados como clássicos e de destaque. Um desses autores é justamente José Saramago, que é sensacional, leitura mais que recomendada. De sua obra, um dos livros que mais me impressiona é justamente Ensaio Sobre a Lucidez, que mostra que por traz do excesso de regras e de nossa burocracia o caos espreita, basta uma pequena falha para o sistema caia em um imenso efeito dominó.

    Em A Gigantesca Barba do Mal, de Stephen Collins, a temática é justamente como a lógica e o extremamente sistemático encobrem um mundo de caos que está prestes e pronto a emergir de forma gritante e absurda. A temática é sobre Dave, uma pessoa normal em meio a uma sociedade totalmente organizada e padronizada, tudo funciona como deveria funcionar. Até o momento em que a barba de Dave começa a crescer de forma monstruosa e incontrolável, trazendo a desorganização e o caos para o antes mundo perfeito. Parece simples, mas a forma como o autor trata o tema e os seus desdobramentos é impressionante.

    Em primeiro lugar se destaca o extremismo da organização da sociedade, tudo obedece a uma lógica quase que geométrica, a arte do gibi deixa isso bem claro. Imagine como se tudo tivesse um lugar, a sua máxima capacidade de extensão e o seu objetivo. Assim, era o “Aqui”. Exatamente, para deixar bem claro a dicotomia entre o organizado e o caos a sociedade fictícia em questão era uma ilha chamada de “Aqui”, símbolo de organização, e o além mar era o “Lá”, símbolo de caos e o que deveria ser evitado. Para tanto que as casas a beira mar eram viradas para o continente e não existia portas ou janelas que proporcionassem vista para o mar. Curiosamente quanto mais próximo do mar menor o seu valor de mercado. Em outras palavras, o mar e a desordem deveriam ser totalmente evitados.

    Toda essa situação muda a partir do momento em que a barba de Dave começa a crescer de forma rápida e totalmente desproporcional, e para além disso se tratava de uma barba que não poderia ser aparada ou o seu crescimento parado. Essa situação faz com o que o caos passe a surgir naquela sociedade aparentemente perfeita. O primeiro a sentir isso é o próprio protagonista que perde o emprego e passa a não ser aceito em alguns estabelecimentos comerciais. A situação, e o tamanho da barba, chegam a se tornar problema de segurança nacional em que o governo passa a se preocupar e tem de resolver o problema.

    Porém, o mais interessante são os pontos que o autor trata a partir da barba. O primeiro deles é a não aceitação do diferente, que passa a ser discriminado na sociedade por ostentar essa barba. Em que se pode perceber claramente a alusão a vários movimentos de contestação a tudo aquilo que considerarem diferente ou errado. Chega ao ponto de cartazes de grupos políticos e religiosos antibarba.

    Mas também a visão do caos como algo bom. A partir do momento da existência da barba muitas pessoas passam a se questionar do ponto de vista estético e resolvem mudar a sua aparência. Tudo bem que não foi bem uma opção, mas elas mudam o visual e passam a gostar dessas mudanças.

    Também se deve notar a posterior incorporação da barba como um aspecto mercadológico, com o museu da barba com camisetas e souvenir para os consumidores. Além de livros, documentários e filmes sobre o mesmo. É a clara percepção de que uma coisa que era mal vista, passa a ser aceita e até mesmo fruto de incorporação comercial.

    Isso tudo com a barba como símbolo da transgressão, que mostra bem um aspecto da nossa própria sociedade. A barba que era vista como coisa de gente contestadora, hoje em dia é moda e existe até barboterapia, ou seja, foi assimilada pelo mercado.

    Como uma aspecto importante da história a obsessão do protagonista pela música eternal flame, da banda The Bangles cuja letra casa muito bem com a HQ e o clipe é gravado a beira mar, uma clara alusão ao mar de “Aqui” e “Lá”.

    Enfim, obra mais que recomendada, que deve ser lida mais de uma vez, e que faz com que pensemos em muitos temas e na nossa própria sociedade.

    Compre: A Gigantesca Barba do Mal.

    Texto de autoria de Douglas Biagio Puglia.

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  • Resenha | Ayrton Senna: A Trajetória de um Mito

    Resenha | Ayrton Senna: A Trajetória de um Mito

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    Onde você estava no dia em que Ayrton Senna morreu?

    A pergunta varia de tempos em tempos, de lugar pra lugar. Pode ser sobre o assassinato de John F. Kennedy ou o atentado de 11 de setembro. Mas para os brasileiros que viveram a época mais gloriosa de nossa Fórmula 1 (ao menos em nossa idílica memória), o dia em que Senna se acidentou fatalmente diante de nossos olhos ficou marcado para sempre. Ao conversar um pouco sobre a vida de Ayrton Senna com pessoas ao meu redor, notei o quanto todos pareciam demonstrar uma grande emoção ao relembrar daquele dia. A história acaba sendo suprimida, e o mito toma seu lugar. Se Senna foi um grande corredor em sua época, nos dias de hoje ele alcança quase um status divino no panteão de heróis nacionais.

    E é esse espírito emotivo que a HQ Ayrton Senna – A Trajetória de um Mito evoca. Escrita por Lionel Froissart – jornalista francês apaixonado por corridas de automóveis e amigo pessoal de Senna – e desenhada por Christian Papazoglakis e Robert Paquet, a graphic novel apresenta quatro histórias curtas que mostram o início e o fim da carreira do piloto. O estilo de narrativa e os recursos gráficos utilizados nas belíssimas ilustrações fogem do que estamos acostumados a ler na mídia mainstream, deixando a marca de quadrinho europeu bastante evidente. É interessante notar a forma como o roteiro e o desenho se completam. Se o leitor desatento apenas folhear suas páginas, poderá erroneamente pensar que a qualidade dos desenhos se assemelha às antigas propagandas do Instituto Universal Brasileiro que circulavam nos gibis dos anos oitenta. Ledo engano: o traço leve e detalhado dá movimento às cenas de corrida, e a narrativa dá o tom de emoção que uma obra como essa depende para funcionar. Em alguns momentos, o leitor pode ver-se realmente tenso entre uma volta e outra das pistas de corrida. A riqueza de detalhes dos desenhos se mostra também nas marcas dos patrocinadores nos carros e uniformes dos corredores: nenhuma é suprimida, como seria de se esperar em uma obra como essa.

    O número de quadros por página é bastante alto. Temos uma média de dez, mas algumas páginas chegam a doze ou até mesmo catorze quadros. É algo bastante diferente do que estamos acostumados nos quadrinhos nacionais, até mesmo pelo número relativamente baixo de páginas: apenas cinquenta, contando a capa. Além disso, a fonte usada nos textos e os balões de fala retangulares podem causar certa estranheza ao leitor. Mas as histórias são muito bem contadas.

    A primeira mostra Senna ainda criança, em corridas de kart, e introduz uma parte importante de sua mitologia: seu melhor desempenho em dias chuvosos. A segunda história mostra seu relacionamento com pilotos e empresários brasileiros, dando um grande destaque a Emerson Fittipaldi. A rivalidade com Nelson Piquet é sugerida, porém não muito explorada, e acaba ficando subentendida. Na terceira história, Senna já alcança um patamar de ídolo, e vemos os problemas que enfrenta com empresas e patrocinadores. Na quarta e última história, temos seu capítulo final: a troca da McLaren pela Williams, o acidente e o início do Instituto Ayrton Senna.

    Ao sustentar-se principalmente nas emoções, o livro é bastante competente no que se propõe. Fica impossível, para quem tem mais do que trinta anos, não se lembrar daquele dia fatídico. Não importa se você era ou não fã de Fórmula 1, sempre irá se lembrar onde estava no dia em que Ayrton Senna morreu.

    Ayrton Senna - A trajetória de um Mito - foto

  • Resenha | Peter Pan – Volume 3

    Resenha | Peter Pan – Volume 3

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    Releituras de obras literárias clássicas não são algo novo, muito tem se realizado nesse sentido ao longo do tempo, não apenas na literatura, mas também em outras mídias, como acontece com o premiado álbum do francês Régis Loisel, em Peter Pan, clássico de sir J.M. Barrie, que chega ao seu desfecho no terceiro volume da série lançada pela Nemo.

    Assim como nos volumes anteriores (leia nossa resenha de Peter Pan – Volume Um e Peter Pan – Volume Dois), o autor continua a recriação o universo clássico do garoto que não queria crescer e os ambientes e personagens que orbitam à sua volta, como também inova ao desenvolver narrativas paralelas que criam um conectivo entre a história de Peter e a Londres do século XIX, como fica claro pela inserção do famoso assassino, Jack, o estripador.

    As liberdades utilizadas por Loisel não soam gratuitas ou desnecessárias, pelo contrário, sempre procurando se pautar pelo argumento adulto e sombrio dado a graphic novel, o autor deixa margem para interpretações, além de sedimentar posição firme sobre cada um de nós e a dubiedade existente, expurgando o moralismo barato e o maniqueísmo de sua obra.

    Se anteriormente nosso protagonista se tornava uma figura por vezes desagradável e irresponsável, neste último volume o autor consegue desconstruir sua imagem. Parte disso, graças, principalmente, ao continuar o desenvolvimento da importância da figura materna para Peter como também justificar o que provoca a ausência desse carinho materno na personagem.

    Podemos dizer que a importância do seio materno para o autor são um dos cernes deste último volume, já que além de Peter, essa trama também se desenvolve na figura de Rosie, a órfã que simboliza a como mãe à todos os garotos perdidos e algumas criaturas da Terra do Nunca.

    A arte estupenda se contrapõe entre a sombria e suja Londres e a vívida Terra do Nunca, que ao lado do roteiro demonstra que nem tudo está ao alcance dos olhos como se parece. Esses ares sombrios e cruéis podem se dar mesmo numa ilha edênica onde o tempo não passa, todavia o esquecimento é uma força descomunal aos seus habitantes, como também na dura e fria Londres, onde a preservação da inocência ainda se mantém para uma parte da sociedade.

    Compre: Peter Pan – Volume 3

  • Resenha | Peter Pan – Volume 2

    Resenha | Peter Pan – Volume 2

    Peter Pan - Vol 2

    O segundo volume do álbum de Loisel (leia nossa resenha sobre Peter Pan – Volume 1 aqui), livremente inspirado na obra de J.M. Barrie, Peter Pan, continua com a jornada do jovem Peter pela ilha misteriosa (o nome Terra do Nunca não é mencionado aqui) ao lado dos seres fantásticos do lugar. O segundo volume reúne a terceira e quarta partes da trajetória do pequeno herói: Tempestade e Mãos Vermelhas.

    Após a tarefa de apresentar os personagens, Loisel passa a edição desenvolvendo cada um deles, principalmente o irresponsável protagonista. O mundo de Peter também ganha vida neste desenvolvimento, fazendo um forte paralelo à suja Londres, cidade de onde surgiu. Os seres encantados desse local também servem como contraponto ao mundo real, fazendo-nos refletir sobre o conceito de conto de fadas conduzido pelo autor.

    A edição traz como mote a aproximação de Peter com esses seres fantásticos e a tentativa destes em afastar os piratas de sua ilha, criando um plano mirabolante com a ajuda das sereias para se livrarem de uma vez do Capitão e seus piratas. Obviamente, as coisas não saem como o planejado e o protagonista tem que conviver com suas escolhas e a responsabilidade de liderança.

    Loisel busca uma aproximação maior com a obra original, amarrando algumas pontas deixadas no primeiro volume. Além disso, seus personagens são sofridos, e principalmente Peter passará por difíceis caminhos para se tornar o Peter Pan mais próximo daquele que conhecemos, dando um estofo necessário ao protagonista. Isso sem que ele deixe de lado a malandragem e uma pitada de egocentrismo dadas pelo autor nessa nova versão.

    O autor aproveita o passado de Peter em Londres para desenvolver uma segunda linha narrativa, dessa vez trazendo um gancho com a história britânica envolvendo os casos não-solucionados de assassinatos que ocorreram no distrito de Whitechapel, cometidos pelo serial-killer denominado pela imprensa da época como Jack, o Estripador.

    Assim como na edição anterior, Loisel consegue transmitir emoções e características de forma competente. O mesmo ocorre no dinamismo de seus quadros. Essas qualidades influem diretamente na forma narrativa do autor, não sendo necessários “balões” excessivos para expor o que suas personagens querem expressar. Isso fica bastante claro no personagem de Sininho, que não possui falas, ou mesmo nos dos índios, que se comunicam em um língua intraduzível, mas que mesmo assim pode-se entender o que está sendo dito por cada um deles.

    Novamente um excelente trabalho da Editora Nemo, uma caprichosa edição em capa dura que faz jus ao trabalho apresentado pelo autor.

  • Resenha | A Trilogia Nikopol

    Resenha | A Trilogia Nikopol

    A Trilogia Nikopol - Bilal

    Lembro de ter assistido a um filme que se tratava, em uma França futurista no ano de 2023, de um homem coagido pelo deus egípcio Horus a ajudá-lo a se vingar de Anubis e outros deuses imortais. Pouco me lembro deste filme, mal sabia que ele era baseado em uma trilogia de histórias escritas pelo artista e cineasta Enki Bilal. O francês foi convidado frequentemente a publicar histórias na revista Heavy Metal entre outras editoras, inclusive as duas primeiras que constituem a trilogia da personagem Alcide Nikopol. A habilidade e talento de Enki para a criação e elaboração detalhadas de cenários em quadrinhos, feitos totalmente à mão, são tão magníficos quanto grandiosos, fazendo-nos imaginar que tenha se inspirado nos trabalhos de Ralph McQuarrie e Hayao Miyazaki.

    A primeira história da trilogia Nikopol, A Feira dos imortais, de 1980, mostra como o personagem de Alcide Nikopol, um astronauta que foi condenado a vagar no espaço durante 30 anos em uma câmara criogênica, retorna ao caótico cenário de uma sociedade desajustada à mercê de uma nova ditadura fascista em Paris, no ano de 2023.

    Ao acordar, Nikopol descobre-se em posse de Horus, deus imortal e renegado de seus iguais, que traçava um plano de vingança contra outros imortais. O decorrer da história mostra quão modificada estava Paris enquanto o astronauta estava desacordado, inclusive com a existência de um filho, nascido em sua ausência, com a mesma idade de quando foi enviado ao espaço. Viajantes alienígenas são parte da nova miscigenação; ainda há sinais de contaminação e doença causados por duas guerras atômicas; além da separação de habitantes pobres e ignorantes, totalmente desprezados pela elite comandada por homens, enquanto mulheres eram aprisionadas e condenadas a repopular a nação.

    O governador de Paris, Jean-Ferdinand Choublanc, é atacado e comparado, pelo autor, a ditadores da história mundial, principalmente a Mussolini. Tudo é apresentado aos poucos enquanto admiramos os cenários ao estilo steam punk criados por Enki. No fim, Nikopol se rende a Horus e juntos tramam a abdicação de Choublanc para assumir o controle de Paris e livrar a população do governo fascista. Além de conseguir a vingança contra os imortais em uma viagem para se opor aos poderes corruptos dos megalomaníacos do século 21. Infelizmente, o final não é dos mais adequados a ambas as partes.

    A Mulher Armadilha, escrita em 1986, nos leva à futura Londres e apresenta uma nova personagem, Jill Bioskop, uma espécie de repórter investigativa que está em crise após os acontecimentos com seu atual contato e amante. Se passaram dois anos desde a última história e, apesar de sua aparência nada convencional (Jill tem a pele branca com cabelos, lábios e lágrimas azuis), nada disso é explorado na história. Nikopol desperta de sua nova prisão em um asilo psiquiátrico ao mesmo tempo em que um grupo de astronautas liberta Horus, preso em uma pedra no espaço (mais tarde é revelado que, na verdade, a pedra era uma parte da nave dos Deuses Imortais).

    Jill, em um surto, ingere drogas para esquecer seus problemas e tentar se concentrar no trabalho, porém nada ajuda. Ao se dirigir a Berlim, na tentativa de mudar o foco de suas preocupações, a mulher azul se torna cada vez mais perturbada, principalmente ao se deparar com Horus. Após sair à procura do Deus Imortal, Nikopol, que saiu do hospital com a ajuda de seu filho, torna-se Imortal. Os dois personagens principais se unem novamente, mas desta vez com uma condição estipulada por Nikopol, a de aproveitar a vida e deixar o passado para trás. Os três passam a conviver juntos até o futuro retorno dos Imortais.

    Em Frio Equador, escrito em 1992, o francês termina a trilogia de forma inusitada. 18 anos após os acontecimentos de A Mulher Armadilha, Nikopol, Horus e Jill se reencontram. Um filho surge, mas nada se sabe sobre ele. Jill desaparece enquanto Nikopol e Horus continuam a viver juntos. Sob o pseudônimo de Loopkin, anagrama de seu próprio nome, Nikopol se torna profissional no jogo de Chess-Boxing, uma mistura cômica e sem sentido de xadrez e boxe.

    A segunda história é dedicada ao filho de Nikopol que está à procura de seu pai por motivos de autoesclarecimento. Nessa história, os casos políticos voltam às atenções ao ambiente particularmente estranho no Equador devido a um grupo anarcoterrorista que controla a cidade. Com a reaparição da pirâmide nos céus do mundo inteiro, Outros Deuses Imortais procuram por Horus para cessar seus atos de rebeldia, pondo um fim definitivo. A história se completa formando um ciclo que promete continuar no ano de 2064, segundo a nota do autor. A parceria entre o deus e o homem tem um fim no reencontro acidental entre Nikopol e sua amada Jill.

    Para uma história de ficção científica, Enki Bilal insere elementos bem diferentes do comum. A aparição de deuses egípcios, em contraponto com o governador na primeira história, destaca a veia cômica do autor, mostrando como esta visão futurista está rendida à moda e aparência a tal ponto de desumanizar-nos. Ainda que haja a inclusão de personagens alienígenas, os pobres decadentes não são base da história, são apenas um apelo ou crítica política às questões raciais e sociais renegadas, expostas de forma fria e particular pelo autor para mostrar o quanto a sociedade ruiu com o passar do tempo.

    Na segunda parte da terceira história, vemos um futuro menos colorido e mais cinza do que o primeiro, perdendo o tom sarcástico das cores de roupas e maquiagens e ganhando maior liberdade, principalmente as mulheres. A sociedade se encontra mais miscigenada, porém a história é ainda mais centrada em mostrar o que acontece com os personagens principais, desta vez com uma mensagem diferente que a anterior. Apesar de retornar com possíveis críticas a empresas que se dizem benfeitoras e munidas de recursos, mas que não fazem nada que não seja para bem próprio, a história do último ato é como um final feliz, talvez com um plot twist no final para alguns.

    O final mostra brevemente o quanto os personagens principais se gostavam a ponto de ter que se separarem para continuarem a viver em paz. Mas também volta com um pouco mais de humor, principalmente com a questão do Chess-Boxing, ausente na segunda parte. É uma história bem psicodélica, cheia de formas Kafkianas. Um belo thriller no estilo de Blade Runner.

    Lançada em volume único com capa dura pela editora Nemo, a Trilogia Nikopol também traz artes extras de Enki, além de algumas notas extras ao final de cada edição. Quanto ao filme, bem, terei de vê-lo novamente, pois a história da qual me lembro era um pouco diferente, como um apanhado destas três histórias. O filme foi escrito e dirigido pelo próprio Enki Bilal e com toda a certeza vale a pena conferir.

    Texto de Autoria de Bruno Gaspar.

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  • Resenha | Peter Pan – Volume 1

    Resenha | Peter Pan – Volume 1

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    Peter Pan já faz parte do imaginário popular. O personagem de J. M. Barrie, criado para sua peça de teatro – que posteriormente se tornou um romance – há mais de 100 anos atrás teve inúmeras adaptações, seja para o cinema, teatro ou quadrinhos, contudo, talvez a mais notória delas seja a versão criada pela Disney, em 1953. Em 2003, o francês Régis Loisel decidiu dar sua contribuição para o clássico “infantil”.

    Talvez para muitos seja difícil abordar questões originais ao revisitar um clássico como Peter Pan, e esse é o grande mérito deste álbum. Loisel compreende o cerne dos questionamentos da história que tem em mãos e não só consegue recontá-la de forma original, como também questiona e critica aspectos sociais abordados superficialmente em outras versões. Cabe ressaltar que a versão de Loisel é dedicada ao público adulto.

    Loisel insere Peter numa Londres miserável, rodeado de orfãos, bêbados, estupradores e prostitutas. Peter tenta compensar seu mundo cinza e desesperançoso em algo fantasioso, como um conto de fadas. Suas frequentes humilhações o afastam dia-a-dia do mundo real, até que conhece uma fada, a quem Peter decide chamar de Sininho. A fadinha decide levá-lo à Terra do Nunca, uma ilha fantástica onde os habitantes desse lugar precisam de sua ajuda.

    Loisel adapta e recria Peter Pan de forma cínica, mas extremamente real. Peter está longe de ser um personagem cativante ou um modelo que deveria ser seguido, pelo contrário, suas atitudes são altamente questionáveis, mas compreensíveis, se analisarmos a sociedade de que ele saiu. Peter definitivamente não quer crescer, mas não porque acha o mundo das crianças o lugar ideal. Peter apenas conhece a sujeira do mundo adulto e o quão baixo eles podem descer.

    O autor entrega uma versão muito distante do conto de fadas da Disney. A Londres de Loisel é imunda, seu inverno é cruel, cinza e angustiante. Os moradores de Londres são figuras repulsivas para qualquer um de nós, quiçá para uma criança. A Terra do Nunca do autor está longe de ser um lugar seguro, porém é um excelente contraponto a Londres de Peter. O traço e o trabalho de cores do autor é incrivelmente expressivo e de encher os olhos a cada página, te colocando próximo daquele mundo e daqueles personagens. A narrativa gráfica é ágil, utilizando cada enquadramento em prol da história. Impressionante o nível de detalhes na arte de Loisel. Um deleite visual.

    Peter Pan, de Loisel, está entre as melhores publicações do ano, e mostra de forma chocante quão cruel e prejudicial o mundo adulto pode se tornar para uma criança.

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  • Resenha | Hip Flask – Seleção Não Natural

    Resenha | Hip Flask – Seleção Não Natural

    Hip Flask

    Hip Flask marca a estreia da série distópica Elephantmen no Brasil pelas mãos da Editora Nemo. Seleção Não Natural, primeiro volume da série de Richard Starkings, Joe Casey e Ladrönn, traz o ainda distante ano de 2218, onde grandes corporações criam um exército formado de seres híbridos de homens e animais.

    Esses seres híbridos são condicionados desde a sua criação a se tornarem armas de destruição, assassinos treinados desde o nascimento para agirem de acordo com a vontade de seus criadores, não passando de meros joguetes para realização de interesses políticos da Corporação Mappo.

    Richard Starkings é o criador da série, utilizando o personagem Hip Flask, um hipopótamo antropomórfico que teve sua primeira aparição como mascote de sua empresa. Starkings convidou Casey para participar do roteiro e o mexicano Ladrönn para ilustrar o álbum, o que sem dúvida é o grande diferencial da edição. Ladrönn tem um traço extremamente detalhado e incrivelmente niilista para a história, tudo isso aliado a um dinamismo visual. Impossível não ficar embasbacado com a arte das suas páginas pintadas.

    A primeira edição conta com 48 páginas e muito pouco conhecemos das reais motivações dos seus personagens, algo que certamente será desenvolvido em volumes futuros, no entanto, o estopim de uma possível revolução é dada na história. Só nos resta aguardar ansiosamente pelo próximos dois volumes.

  • Resenha | Estórias Gerais

    Resenha | Estórias Gerais

    Há tempos atrás, um dos gênios dos quadrinhos nacionais, Flavio Colin, se uniu ao roteirista Wellington Srbek para criar uma aventura belíssima e tipicamente brasileira, Estórias Gerais, repleta de influências de autores nacionais como Guimarães Rosa, Monteiro Lobato, Jorge Amado, Ariano Suassuna e tantos outros.

    A trajetória de Estórias Gerais até sua publicação não foi nada fácil. Srbek ficou com a obra na gaveta por três ano, em busca de alguma editora que pudesse publicar o material. Não conseguiu. Em 2001, os autores conseguiram publicar a HQ com o auxílio da lei de incentivo à cultura da prefeitura de Belo Horizonte. O álbum foi premiado com o HQ Mix de Melhor Graphic Novel Nacional daquele ano. Um ano depois, infelizmente, o Mestre Flavio Colin veio a falecer.

    Estórias Gerais se tornou um cult e nem isso foi o suficiente para que as editoras nacionais se interessaram em publicá-la. Em 2006, uma editora da Espanha se interessou pelo álbum e publicou por lá com o nome de Tierra de Estorias. E nada do álbum publicado por uma grande editora na sua terra natal. O tempo passou e em 2007, finalmente, a editora Conrad colocou Estórias Gerais no mercado. Pouco mais de 5 anos se passaram e o trabalho de Srbek e Colin ganha uma edição definitiva publicada pela editora Nemo, selo do Grupo Autêntica.

    Na trama, conhecemos os percalços de uma série de personagens do sertão brasileiro. A HQ conta a história do jornalista Ulisses Araújo que vai até uma pequena cidade do norte de Minas Gerais para escrever uma matéria sobre a vida de Antonio Mortalma, um sanguinário bandoleiro local que vive em guerra com Manuel Grande e o exército nacional, comandado pelo Coronel Odorico Pereira.

    Estórias Gerais traz várias narrativas paralelas ao longo dos seus seis capítulos, cada um desses capítulos se dedicam a contar a história de determinados personagens-chave da trama. Srbek busca sempre um paralelo entre o presente e o passado para narrar sua história, sempre lançando pontas importantes em um capítulo, para serem amarradas com maestria no capítulo seguinte.

    Srbek consegue construir muito bem cada personagem, mesmo os coadjuvantes, sabendo utilizar muitos deles como contrapontos de outros, seja na personalidade de cada um, ou mesmo no estilo, como é o caso do jornalista com seu jeito pomposo de falar e se vestir, comparado à outros personagens que falam “mineirês” e usam roupas próprias ao sertão onde vivem.

    O roteiro de Srbek é primoroso, utilizando referências a diversos autores nacionais, como já mencionado anteriormente, e lendas do imaginário popular brasileiro. A Arte do Mestre Colin também consegue espaço para fazer referências, seja em seus quadros típicos de filmes do Sergio Leone, como nos seus personagens sujos que parecem recém-saídos de um western spaghetti.

    Os desenhos do Colin são um aula de como um traço simples tem muito a dizer, seu trabalho de luz e sombra é de cair o queixo, o dinamismo que é o fator primordial da Arte sequencial, além de como cada personagem da trama tem um traço próprio. Tudo coisas simples, mas que a grande maioria dos artistas não domina.

    Estórias Gerais é uma obra inestimável dos quadrinhos nacionais e mostra como é possível falar de temas e tradições tipicamente brasileiros sem se tornar algo chato. Uma HQ única, essencial e marcante, não só pra quem é fã de quadrinhos, mas para todo mundo.

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  • Resenha | O Incrível Cabeça de Parafuso e Outros Objetos Curiosos

    Resenha | O Incrível Cabeça de Parafuso e Outros Objetos Curiosos

    Mike Mignola um dia teve uma ideia para um brinquedo: “Um robô com a cabeça semelhante a uma lâmpada, que se encaixaria em diversos corpos”. Dessa ideia surgiu o Cabeça de Parafuso, personagem que protagoniza a história principal que dá nome ao álbum, composto por seis pequenas histórias em quadrinhos.

    “Máquinas voadoras vitorianas, uma cabeça mecânica, roubos de tumbas, fantasmas, bruxas, marionetes, alienígenas e vegetais gigantes: um vertiginoso desfile de curiosidades encontra-se reunido nesta coletânea.”

    O Incrível Cabeça de Parafuso e Outros Objetos Curiosos conta com duas histórias ganhadoras do Eisner Awards: O Incrível Cabeça de Parafuso,vencedora da categoria Melhor Publicação de Humor do Eisner 2002, e O mágico e a cobra, vencedora do Eisner por melhor história curta. Só esse fato por si só demonstra o quão valioso é este compilado de histórias. Porém, trata-se de um trabalho que pode causar um pouco de estranhamento para aqueles que não estão familiarizados com o trabalho de Mike Mignola, que é mais conhecido por ser o responsável por criar o Hellboy.

    Mignola possui uma arte peculiar e sombria, que se completa brilhantemente dentro de suas narrativas influenciadas por uma atmosfera de terror, obscurantismo e mistério. Mignola é único. Alguns podem considerar histórias como Na capela dos objetos estranhos e A bruxa e sua alma superficiais, mas têm bastante significado no universo que o autor vem desenvolvendo desde o início de sua carreira. Esta pode não ser a obra mais importante de sua vida, mas com certeza é obrigatória para todos os seus fãs, que se envolvem em seu universo oculto e misterioso.

    O preço do encadernado de fato é alto, porém ele possui um acabamento gráfico impecável. Ao final, temos 11 páginas de esboços e anotações do autor, que vão deixar qualquer fã extremamente satisfeito.

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    Texto de autoria de Pedro Lobato.

  • Resenha | A Garagem Hermética

    Resenha | A Garagem Hermética

    Uma das obras primas do quadrinista Moebius (Jean Giraud), falecido em 10 de março de 2012, A Garagem Hermética foi originalmente publicada na revista francesa Metal Hurlant entre 1976 e 1980 em episódios de duas a quatro páginas. Foi republicada no Brasil pela editora Nemo, com nova tradução e um belo trabalho editorial. Portanto, hora mais propícia para uma resenha de um dos maiores clássicos dos quadrinhos europeus provavelmente não haverá. Embarquemos, então, nessa viagem lisérgica de Moebius.

    É uma tarefa árdua falar do plot de Garagem Hermética, tanto pela estrutura da história – com idas e vindas que saem do desconhecido e te levam para pontos que “desconhecido” não é o suficiente para definir – quanto porque, notadamente, talvez o último interesse do autor fosse realmente contar uma história quadrada, fechada, seguindo uma estrutura narrativa comum, com início, meio e fim. Ele próprio descreve um pouco do desenvolvimento da história de Garagem Hermética: “Todo mês eu tentaria recriar uma trama coerente, com os elementos já existentes na história. E então separaria tudo para me sentir inseguro novamente, e então no mês seguinte unir os pedaços pra começar tudo de novo”.

    Com esse espírito de liberdade de desenhar e criar universos e deixar que o leitor os complete em sua própria experiência, Moebius continua a contar a história de Major Grubert – e digo “continua” pois era um personagem já existente em Major Fatal, e publicado pela primeira vez em A caçada ao francês de férias. Dessa vez, Major Grubert e seu antagonista, Lewis Carnelian, protagonizam uma trama transcendental, mística, em que adentram um planeta com diferentes níveis de realidade, cada vez mais complexos e distantes da nossa própria realidade, deixando o leitor sempre um passo atrás da compreensão de tudo aquilo que está acontecendo, mas ainda assim envolto e imerso naquele universo de nonsense, belas imagens e criatividade quase infinita.

    Sobre a arte de Moebius: eu compararia sua arte e os planos que ele apresenta em Garagem Hermética ao Cinema Scope dos quadrinhos. Planos abertos, às vezes até ocupando uma página inteira, com detalhes suficientes para que o leitor dê uma pausa na leitura e na evolução da trama apenas para analisar cada trecho e minúcia desenhada. Observar e apreciar cada referência e inspiração que o quadrinista deixa ali em seu traço: por exemplo, uma cena em que Major e Lewis estão voando, o próprio autor cita como referência direta ao Homem de Ferro. Como se já não fosse o bastante, alguns dos ângulos de observação daqueles planos já seriam muito inovadores nos dias de hoje. Considerando então a época em que Garagem Hermética foi escrita e desenhada, podemos com certeza considerá-la um marco que viria a influenciar quase toda, se não toda, a produção de quadrinhos subsequente.

    Fora que toda essa arte remete, é claro, ao nosso mundo real, mas ainda assim cria um universo próprio, com suas regras particulares, o que dá ainda mais liberdade e criatividade para suas criaturas, paisagens, construções, todas belíssimas e únicas. Os desenhos em preto e branco conferem ao leitor o uso da imaginação para que aquilo tudo se torne ainda mais vivo e real, sem perder, porém, um aspecto de sonho e imaginação que muitas obras em preto e branco sugerem.

    A Garagem Hermética, mesmo que não agrade àqueles que preferem uma estrutura narrativa mais linear e fechada, com certeza vale por seu desenho.Em muitos momentos ele é a motivação para a continuidade na saga que, por suas idas e vindas, muitas vezes sem muito nexo e lógica, dá a impressão de que a história não sai do lugar, e que cairá para algo em que não há solução possível. Portanto um clássico como esse, quase uma experiência, é obrigatório para todos os fãs de histórias em quadrinhos, e também como uma introdução a esse mestre da nona arte, Moebius, junto com suas histórias iniciais do Major Grubert.

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