Crítica | Era o Hotel Cambridge
Dentre as diversas declarações realizadas por Eliane Caffé nas diversas coletivas de promoção de seu filme, em São Paulo, Era o Hotel Cambridge delineia aquilo que o Cinema quando precisa faz tão bem: a quebra do individualismo, ou seja, de reiteração do poder do coletivo em prol de uma ação que interessa a um grupo. No palco das atuações, num cortiço de onomatopeias ambulantes, é lá aonde Caffé encontra o amparo dos contornos de uma ficção construtiva para fortalecer o retrato e o relato de pessoas que tem muito mais a informar, do que meramente a comunicar seus pontos de vista. Aqui, é a arte que se vê embutida nas significações da realidade, ambas na harmonia cinematográfica que se espera deste casamento de fruições tão descortinantes, e pulsantes.
Isso se dá por esse acolhimento do sociopolítico à arte, do socioeconômico visto não por mera presença capitalista, mas por intermédio da relevância da invasão humanitária de corpos onipresentes num hotel, bem no centro conturbado de uma megalópole latino-americana, cuja presença corpórea é conflituosa com os poderes excludentes que regem a nossa sociedade. Políticas públicas de moradia que só percebem esses homens e mulheres que não participam do jogo do capital bancários e consumista na hora de expulsá-los de quaisquer recantos que possam servir de alojamento não-oficial, e mesmo que temporal àquela gama de famílias e compadres, sempre à beira de uma reintegração de posse na calada da noite. Gente de todo tipo, raça e valores culturais, sempre tidos pela mídia como bárbaros, ou dignos de uma investigação rumo ao cerne da problemática. Porque o hotel está lá, infinito entre seus andares, amparando as ocupações de quem sempre mereceu um documento audiovisual de suas lutas, e pelo menos isso podem se dar ao luxo de terem conquistado, efetivamente falando.
Não apenas no detrimento do individualismo, que muitas vezes cria intolerâncias e exclusões que assombram o social do Brasil, e de qualquer país judicialmente arbitrário e classicista como o nosso, mas é pelas esteiras da dramaturgia, de uma encenação corajosa, livre e realista que a enorme luta da coordenadora geral do MSTC, Carmen Silva e de uma grande companhia lado a lado com ela, ganha o prazer de ser imortalizada no Cinema brasileiro pela ótica franca e reveladora de Caffé, e produção. Nada em Hotel Cambridge é falso, forçado ou soa como tal – em absoluto. Um cosmos engarrafado não só pelo edifício onde tudo se dá, mas ampliado pelas personagens adoráveis que, como em tantos outros grandes filmes, literaturas e documentários da história, representam cada aspecto, cada fatia aparente ou subjetiva de um conflito que se resiste em conjunto. Entre concordâncias e desentendimentos, é lá que eles tentam sobreviver, onde os fracos não têm vez, na verdade; um por todos, e todos por um, afinal.
A quem nunca adentrou uma ocupação, seja no centro de uma cidade ou numa tentativa de demarcação de terra indígena, o filme fartamente inspira essa ação de solidariedade a quem mais precisa de atenção, de ouvidos que escutam e não apenas ouvem o sentido do barulho que suas invasões provocam a quem, aparentemente, não tem nada a ver com isso. O espectador inclusive pode vir a elucubrar, aliás, como existem grandes pequenas batalhas rolando ao nosso redor em constância plena, sem que a nossa percepção seja afetada por isso, tamanho o individualismo que o sistema econômico atual nos presenteia – e afirma-se aqui como isso não poderia ser mais anormal, caso realmente sejamos Um, ativos na mesma luta, ainda que sob codinomes distintos. Porque se você estiver parado(a) na plataforma da estação da Luz, em São Paulo, e por um momento olhar para um dos prédios ao redor da estação, vai notar a seguinte frase que emblema tudo que o belíssimo filme de Caffé nos explicita: Quem não luta, está morto.
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