Crítica | Millenium: A Garota na Teia de Aranha
O significado do xadrez num filme é amplo, principalmente quando se é bem usado por cineastas interessados em aprimorar a linguagem de suas obras. Seja para invocar o poder de estratégia de um(a) personagem, quanto a fim de demonstrar (ao invés de falar, afinal, isso é Cinema) o poder de alguém sobre o(a) outro(a) jogador(a), o uso do jogo clássico de peças brancas e pretas num tablado monocromático não é gratuito, em absoluto, como bem exemplifica este vídeo do ótimo canal, em inglês, Now I See It.
E é justamente com essa riqueza de detalhes subjetivos, só para os espectadores mais perspicazes, é claro, que a adaptação cinematográfica do quarto livro da saga Millennium começa, com a jovem Lisbeth Salander, já relativamente conhecida pelo grande público por seu forte visual punk, postura misteriosa e sua enorme tatuagem de dragão, aqui ainda criança, jogando xadrez com sua irmã logo antes da sua vida, ainda prematura, virar um inferno.
Já fazem oito anos desde que Os Homens que Não Amavam as Mulheres, o ótimo filme de David Fincher tomou o mundo de assalto, com o material original servindo como uma luva para estabelecer ainda mais, logo após o sucesso de A Rede Social, seu cinema frio, um tanto distante, cerebral e esquematizado e, mesmo com tudo isso, hipnótico – exatamente como o livro base. Aqui não é diferente, com o exemplar de 2018 pagando tributo sim ao legado de Fincher, conseguindo entender tão bem esse mundo de grande paranoia, violência e investigações sem fim pelos quais os livros suecos da série Millennium nos atraem.
Parece que, no mundo de Salander (agora na pele de Claire Foy, uma ótima atriz em ascensão), a neve nunca para de cair, o sol é sempre raquítico e as pessoas não irradiam nada, exceto dúvidas e muitos segredos que podem ser mortais aos desavisados. Só que algo mudou em A Garota na Teia de Aranha: ninguém é mais inocente, e a garota que só veste preto se mostra agora como um anjo da morte justiceiro com psicopatas oriundos de uma masculinidade doentia em Estocolmo, a congelante capital da Suécia – cidade perfeita para um bando de lobos sem coração, transvestidos de homens e mulheres de negócios. E quando a periculosidade começa a ganhar corpo, os serviços da hacker são mais do que necessários, de novo.
Envolvida desta vez com cyber-terrorismo em larga escala, a partir de um projeto ambicioso demais de um ex-agente da Segurança Nacional da Suécia, e que acabou caindo em mãos erradas, Salander se envolve novamente com o jornalista Mikael Blomkvist, uma das únicas pessoas que ela confia no mundo, para desvendarem juntos as pistas de um crime que pode afetar não só a paz federal dos cidadãos, mas o mundo inteiro – uma ameaça terrorista que, uma vez envolvida, a levará direto as ameaças de um pretérito maldito. E como num livro de Ian Fleming, mas sem metade do glamour do criador de 007, temos aqui um herói de terno, uma heroína rebelde correndo contra o tempo, e arriscando a segurança que nunca tiveram para viver sob tensão, e terem aonde ver o sol nascer, uma vez mais.
Sob a alcunha do uruguaio Fede Alvarez, reconhecido em Hollywood pelo regular remake de Evil Dead, e o bom suspense O Homem nas Trevas, de 2016, tem-se aqui o seu melhor projeto, sereno e coerente por grande parte do tempo, mas que ainda faz expor suas limitações enquanto cineasta, mantendo com muito esforço o ritmo no que poderia ser um tour de force vigoroso, principalmente em seu terceiro ato, lidando com o suspense como Michael Bay lida com carros. É evidente o gosto de “poderia ser melhor”, mas A Garota na Teia de Aranha segue à risca a cartilha de Fincher, sem aquele clima pesado (e magistralmente construído) de 2011, ainda encontrando espaço para suas ousadias próprias. Se essa fosse, de fato, uma engenhosa partida de xadrez, seria em todos os sentidos merecedora de se assistir.
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