Crítica | Wolfwalkers
Há 400 anos, o norte da Irlanda era tão medieval quanto qualquer episódio de Game of Thrones. Os habitantes da cidade ao norte do país, Kilkenny, jamais poderiam sonhar que, séculos e séculos depois, a cidade teria uma das mais populares lendas de seu folclore levada ao Cinema, e com um primor inesquecível: os homens que falam com lobos, também chamados de Wolfwalkers – e possuem um forte espírito de cura, dentre os seus dons. Assim, Kilkenny é palco desta fábula orgulhosamente nórdica, sobre forças místicas que vivem em suas florestas geladas, um infinito outono, e sempre perseguida pelo Lorde Protetor que vê nos lobos da região, uma ameaça bestial aos moradores da sua cidade, e que deve ser extinta! Mas se a humanidade sempre teme os mistérios que não entende, sobra para as crianças compreendê-los com os olhos do coração.
E é Robyn, filha de um caçador que é chamado à cidade justamente para acabar com essa “praga” dos lobos que a rodeiam (mas não possuem um histórico violento), a quem é incumbida pelo destino a missão de tentar equilibrar essa relação entre o homem, o ecossistema, e com animais muito menos perigosos que os “seres racionais”. Assim, Robyn descobre um novo mundo nas florestas da Irlanda, as dádivas e perigos que lá se escondem sob a luz do sol, e da lua, e que o diferente não precisa ser uma ameaça apenas por ser… diferente. Além da coerência e profundidade impecáveis da história, Wolfwalkers se beneficia da beleza dos seus traços. Isso porque o cineasta Tomm Moore (O Som do Mar) e Ross Stewart, evitam o CGI cada vez mais realista da Pixar, e aposta num estilo de ilustração em 2D bem estilizado, que remete a aquarela, inserindo ao filme um visual esotérico muito bem-vindo.
Um diferencial e tanto para um mercado dominado pelo 3D. Ao adaptar uma lenda europeia dos anos de 1600 para o público de 2020, Moore e Stewart entendem o brilhantismo atemporal da história, e não apenas o traduz em som e nessas imagens exuberantes, produzidas para nos tragar para dentro dessa floresta e seus mitos, como também encaixa na mais pura e deliciosa das fantasias inúmeras questões contemporâneas. Numa época que a humanidade precisa se importar com o meio ambiente, enquanto certos “líderes” nacionais o desprezam, e o castigam sem um pingo de dó – o paralelo com a destruição dos lobos comandado pelo Lorde Protetor é claro. Longe de ser uma simples crítica fantasiada de animação, Moore faz reconhecer o potencial metafórico da história como um de seus principais trunfos narrativos, e o destila com uma paixão atestada em cada detalhe.
Talvez seja essa mesma paixão, afinal, que torna Wolfwalkers uma aula referencial de como fazer o mundo se identificar com uma fábula regional até então fadada ao norte da Irlanda, e que pouco ou nada dialogava com o Brasil ou a Índia, e mesmo assim, todos agora podem ser seduzidos por este conto de Robyn, sua amiga Mebh, seus lobos, e a injustiça institucional dos homens – a raça dos corruptos. Sua graça é universal, suas cenas são apaixonantes, e sua literal magia colorida nos atrai e preenche os nossos sentidos com um magnetismo que poucas vezes a Pixar (Wall-E) e os estúdios Ghibli (Nausicaä do Vale do Vento) alcançaram, e com tamanho impacto, e admiração. Provavelmente, temos a melhor animação desde Divertida Mente no Cinema, lançada no streaming da Apple TV+ (uma pena que poucos conseguiram-na ver na tela grande). Um trabalho digno de todos os aplausos.