Poucas coisas são mais sem limites do que a criatividade japonesa. Algumas das maiores maluquices criativas no campo da cultura POP vem de lá e, especialmente no mundo desenhado, eles comprovam esta afirmação. Animes e mangás dos mais variados estilos e gêneros cobrem, basicamente, todos os tipos de gostos que existem e, neste sentido, são muito mais universais do que os comics norte-americanos.
Alguns arquétipos se repetem no mundo dos quadrinhos e animações orientais, é claro. Existe um sem-número de Gokus, Narutos e Seiyas nos títulos mais famosos, mas o típico shonen para garotos adolescentes vai muito além de um jovem garoto sem amigos com um poder extremo escondido dentro de si. São obras que vão do robô gigante espacial à jovem apaixonada pelo garoto novo do colégio, passando por samurais que vivem num mundo futurista, monstrinhos que lutam para entretenimento dos humanos, um jogo de videogame que prende o jogador em seu mundo virtual e até um esporte nacional baseado em combates violentíssimos cujas regras permitem apenas o uso dos seios e das nádegas (google “Keijo anime”, mas numa aba anônima e longe da família, tá?).
Tudo o que você imaginar, o Japão já desenhou ou animou (provavelmente, os dois) antes de você. Em uma de minhas primeiras incursões no RPG de mesa eu já pensava em criar um bardo cientista, inventar a arma de fogo e dominar aquele mundo com meu avançado intelecto do século 20. O tema do anime resenhado no post de hoje é, pra dizer o mínimo, bastante peculiar e eu tenho “dez bilhões porcento de certeza” que você também já deve ter imaginado algo parecido.
Para Senku Ishigami, o mundo é tão complexo quanto a ciência mais cabeçuda que o explica. Com uma memória praticamente sobre-humana, o garoto conhece a explicação científica por trás de qualquer evento observável e é uma verdadeira enciclopédia humana para seu único amigo na escola. Um dia, sem aviso prévio, um raio cósmico de natureza desconhecida atinge o planeta Terra e irradia através do mundo inteiro, petrificando toda a humanidade e acabando com a hegemonia humana no globo. 3715 anos após sua petrificação, e também sem nenhuma explicação, Senku irrompe de seu casulo de pedra para descobrir que é o primeiro ser-humano a reverter sua condição de estátua. Descobrindo-se sozinho em um mundo que regrediu à idade da pedra, o garoto começa a utilizar seu elaborado pensamento científico na esperança de acordar todas as vítimas do raio cósmico. Após acordar seu melhor amigo, Taiju Oki, Senku planeja aprimorar sua fórmula de “despetrificação” para acordar toda a humanidade ainda em estado de pedra. Quando uma situação adversa o obriga a despertar o maior brutamontes da escola, Tsukasa Shishio, este rapidamente se opõe ao pensamento científico de Senku e parte para tentar matá-lo. Certo de que o futuro que Tsukasa planeja para este novo mundo de pedra não tem espaço para adultos e para a ciência, Senku Ishigami se une a uma pequena comunidade de “homens das cavernas” e precisa convencê-los sobre o poder do pensamento científico enquanto desenvolve as ferramentas da ciência que permitirão que ele possa enfrentar o gigante Tsukasa e seu exército de brutamontes. Conseguirá ele reproduzir o avanço de tecnológico que a humanidade levou milhões de anos para alcançar, antes que Tsukasa o encontre?
Dr. Stone é uma animação japonesa, produzida pela TMS Entertainment, baseada em um mangá homônimo escrito por Riichiro Inagaki e ilustrado pelo sul-coreano Mujik Park, mais conhecido como Boichi. Os capítulos do mangá foram publicados originalmente no Japão pela Weekly Shōnen Jump e a série animada foi transmitida em diversos canais japoneses sendo, no Brasil, distribuída em transmissão simultânea através do Crunchyroll.
Dr. Stone é interessante, principalmente, pela quebra que ele apresenta no gênero. O anime tem uma qualidade gráfica, de animação e um ritmo de roteiro muito lugar comum para um shonen como One Piece ou Naruto, por exemplo, mas batalhas de fato acontecem em apenas duas situações nessa primeira temporada e elas passam bem rápido. O anime é um shonen com uma carga de adrenalina bastante elevada apesar do tema científico que, a priori, não evoca esse tipo de velocidade e urgência na ação. Boa parte dessa urgência que conduz a velocidade da trama reside nos desafios, algumas vezes físicos, que os personagens têm que enfrentar para desenvolver uma nova tecnologia. A ameaça de Tsukasa fica, durante toda essa primeira temporada, muito longe de Senku e dá espaço mais do que suficiente para o personagem carregar o roteiro.
Há uma claríssima importância, no roteiro de Inagaki, para a acurácia científica de quase tudo o que Senku explica durante a série, e esse também é um ponto importantíssimo do desenho. Desde o cálculo de consumo energético de um cérebro humano e da força necessária para mover um tronco utilizando polias até a fórmula de criação da pólvora e mesmo o processo utilizado na construção de uma bomba de vácuo rudimentar para um lâmpada elétrica, todos os argumentos científicos de Senku são muito próximos da ciência real do nosso mundo. Algumas situações são menos fáceis de acontecer na natureza e exigem uma perícia na manipulação dos elementos que os personagens provavelmente não possuiriam sem treino, mas adicionando um pequeno distanciamento (comumente chamado de “suspensão da descrença”) nada é 100% impossível de acontecer. Alguns artigos na internet (com fontes mais e menos confiáveis) resumem bem o corajoso pensamento e estudo científico empregado nos roteiros.
Os personagens utilizados nessa primeira temporada do anime são carismáticos e bem explorados. Logo no início dessa temporada, o roteiro acertadamente remove Tsukasa e Taiju de praticamente todos os episódios, e isso é muito importante para que o anime tenha foco total na ciência necessária para o desenvolvimento de sua trama. Taiju e Tsukasa, ambos nada científicos, permanecem importantes para o desenvolvimento e evolução dos outros personagens, mas o foco total do desenho é em Senku. O cientista é personagem central da trama e ponto focal de todas as discussões importantes sobre o pensamento científico e sobre o funcionamento da ciência. Nesse ponto, o personagem se torna uma espécie de antropomorfização do pensamento científico e age, sempre, pensando na evolução das tecnologias naquele mundo de pedra, não tendo espaço para relacionamentos que não sejam puramente fonte de força de trabalho para os seus objetivos. Senku trabalha para o desenvolvimento de sua própria agenda, demonstrando como o efeito colateral desse desenvolvimento é benéfico para as pessoas ao seu redor.
Alguns outros personagens possuem, sim, algum espaço na trama e eles cumprem propósitos muito claros no decorrer do desenho. O feiticeiro do vilarejo de homens das cavernas, Chrome, pratica uma espécie de ciência empírica e acredita que o que faz é magia até se encontrar com Senku (fonte da real ciência daquele mundo), que o ilumina e o transforma em um “cienceiro” como ele. Os outros habitantes da vila não passam de personagens truculentas e anti-ciência que vão sendo, aos poucos, conquistadas pelas benesses que o desenvolvimento da tecnologia de Senku apresenta ao vilarejo. Embora o ponto focal do anime esteja acertadamente posicionado nas ciências exatas, um dos personagens do velho mundo que traz um pouco mais de ciência para o mundo de pedra é um mentalista. Sua função, explorada de forma bastante rasa, é apresentar uma vertente de ciências humanas aplicando alguns conceitos de psicologia além de lançar um olhar antropológico, explicando de um ponto de vista menos teórico todos os movimentos que Senku promove para transformar o vilarejo pouco desenvolvido em seu “Reino da Ciência”.
As sequências de animação são extremamente bonitas e bem animadas, e se saem aqui também como um dos pontos extremamente positivos da série. Embora a animação seja, em sua grande maioria, bastante sóbria e realista (tirando o cabelo do protagonista), alguns frames são hilariamente deformados quando um personagem faz uma careta ou o “Cyber-Senku” precisa explicar um conceito com um voice-over divertido. Num geral, a comédia abunda acertadamente durante toda a temporada sem tirar a seriedade dos conceitos científicos e tecnológicos dos episódios.
Para ser completamente justo, o roteiro é um pouco machista e desmerece bastante a figura da mulher. Com exceção da guerreira Kohaku, todas as moças do vilarejo aparecem como objetos a serem exibidos e conquistados, chegando ao ponto de serem oferecidas como prêmio em um torneio de lutas do vilarejo. Levando em consideração a própria história de origem da vila dentro da história, esse desprezo pelo gênero feminino aparece como um contrassenso que incomodou um pouquinho. Algumas cenas parecem, também, sexualizadas de forma desnecessária em uma espécie de fanservice que, apesar de bastante raro e nada inesperado, também tira um pouco do brilho desta temporada. Boichi, mangaká responsável pelo traço no material que originou a série, é um reconhecido artista no campo do hentai japonês então, dado o histórico do desenhista, até que os momentos que incomodam nesse quesito são bem poucos. A maioria destes takes surge de forma forçada e não são bons, mas poderiam ser muito piores ou mais frequentes, dado todo o ambiente onde a obra foi produzida.
Do vaso de cerâmica ao telefone, Senku Ishigami avançou rapidamente a tecnologia de seu mundo de pedra para expandir as fronteiras do Reino da Ciência. Ao longo de seus 24 episódios, Dr. Stone deixa claro o desenvolvimento incremental da tecnologia e como ela trabalha de maneira apartidária, podendo fazer o bem ou o mal a depender de quem a manipula. Esta primeira temporada, que terminou em dezembro de 2019, tem foco puro no funcionamento da ciência aplicada para seu próprio desenvolvimento mas a segunda, e última, deve colher os frutos desse desenvolvimento trazendo o embate anunciado entre Tsukasa e Senku numa espécie de luta da iluminação científica contra o obscurantismo do pensamento não-científico. Tem tudo para ser uma temporada de mais batalhas e, apesar de não ser algo que eu senti falta nesses primeiros 24 episódios, deve trazer um jorro de novidade para um desenho que mostrou coisas muito novas para o gênero.
Numa época em que o pensamento científico está extremamente em baixa, Dr. Stone mostra a importância das ciências e reconta a evolução tecnológica e científica da raça humana de maneira divertida, pouco forçada e de forma belíssima. Um anime que vale muito a pena ser assistido por todos.