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  • Review | Jujutsu Kaisen – 1ª Temporada

    Review | Jujutsu Kaisen – 1ª Temporada

    Consumir entretenimento é, em boa parte, um exercício de repertório. Se você tem apresso especial por algum determinado gênero de cinema, por exemplo, tende a buscar mais obras que estejam dentro daquele gênero. Se fizer isso por algum tempo, invariavelmente vai acabar percebendo os arquétipos contidos de maneira quase inescapável à essa categoria cinematográfica e, quando isso acontece, há a inexorável descoberta que tira boa parte do brilho daquilo que, outrora, lhe ofuscava a visão: todo filme de um determinado gênero é só um remix de elementos narrativos que contam, basicamente, uma mesma história. Não há problema nenhum nisso, é claro. O segredo para alcançar o espectador é sempre inovar na forma enquanto tenta mascarar um conteúdo sem muita novidade e isso, pelo menos nos últimos anos, parece ter ficado tão difícil para a indústria de animações japonesas que eles resolveram simplesmente desistir.

    Embora animes como Dr. Stone e Cells at Work tragam um ar de inovação arriscado em um mercado bastante competitivo, os grandes sucessos da atualidade parecem inseparáveis do esgotado estereótipo do garoto fraco ou estúpido que teve uma infância difícil e guarda dentro de si um poder inigualável que um poderoso mestre vai mostrar como controlar. Naruto, Boruto, Ichigo, Natsu, Asta e, mais recentemente, Yuji Itadori, tem tudo isso em comum mas não para por aí. Todos esses protagonistas ainda tem a mesma origem, a mesma força de vontade, os mesmos poderes demoníacos e um mestre muito parecido. A criatividade na indústria do Shonen parece em falta nos últimos 15 anos mas isso não quer dizer que não exista espaço em Jujutsu Kaisen para que ele se diferencie levemente dos demais e, principalmente, não significa que você não deve assistir ao anime.

    No leito de morte de seu avô, o jovem Yuji Itadori promete sempre ajudar aqueles que forem mais fracos do que ele. Possuidor de uma resistência física muito acima do normal, Yuji se envolve em uma briga escolar no mesmo momento em que um artefato mágico poderoso libera seu poder e atrai uma série de “maldições” (seres místicos e malignos que são a personificação de sentimentos ruins) para os corredores da instituição. Ajudado por Megumi Fushiguro, um “feiticeiro jujutsu” treinado para destruir os seres maléficos, Yuji se vê obrigado a engolir o artefato mágico que causou o problema e acaba se tornando o hospedeiro da entidade conhecida como Ryoumen Sukuna, o demônio mais poderoso do mundo e reconhecido como “O Rei das Maldições”. Ao contrário do que supostamente deveria acontecer, Itadori não morre ao ingerir o artefato (que é, na realidade, um dos dedos do demônio Sukuna) e por isso é recrutado pela escola de jujutsu local com uma missão bem específica: encontrar e engolir todos os 20 dedos de Sukuna para que o demônio seja eliminado do mundo através do sacrifício de seu hospedeiro. Enquanto duela com Ryoumen pelo controle do próprio corpo, Itadori precisa aprender a manipular a energia amaldiçoada que reside nele e aproveitar todo o tempo que ainda lhe resta antes de ser morto para cumprir a promessa que fez ao seu avô de sempre ajudar aqueles que precisam de ajuda.

    Jujutsu Kaisen é uma animação japonesa do estúdio MAPPA (de “orohedoro e God of Highscool) baseada em um mangá homônimo de Gege Akutami publicado desde 2018 na Weekly Shōnen Jump e 2020 pela Panini. A primeira temporada do anime, lançado no Japão e trazido ao Brasil pelo Crunchyroll em transmissão simultânea desde 02 de outubro de 2020, conta com 24 episódios bem aproveitados e de ritmo muito bom. A temporada terminou de maneira bastante empolgante no dia 26 de março de 2021 e uma segunda temporada da série já foi confirmada pelo estúdio, embora a data de lançamento ainda não tenha sido anunciada.

    Como citado nos parágrafos acima, há pouca novidade no enredo de Jujutsu Kaisen mas a produção compensa com uma das melhores e mais belas animações da história recente da indústria. Com personagens secundários muito mais interessantes que o protagonista, o anime consegue empolgar demais o espectador nas sequências de ação que, logicamente, abundam nessa primeira temporada. No decorrer dos episódios, conhecemos mais da história dos companheiros de Itadori e o que, a principio, parecia genérico e sem força vai ganhando contornos interessantes o suficiente para que seja relevada a total falta de carisma do protagonista. O anime faz um excelente uso dos personagens secundários (outros alunos da escola de jujutsu e do time de vilões que coloca a ação do desenho em movimento) na medida em que vai interligando-os durante os episódios. Acertadamente, o roteiro movimenta o foco narrativo retirando-o aos poucos do fraco protagonista.

    De Yuji Itadori, na verdade, pouco se destaca per se. Como um recém chegado ao mundo do jujutsu, cuja existência é desconhecida de quase toda a população, o protagonista serve de aprendiz mas o anime não segura a trama para ensinar de forma muito mastigada o que é o jujutsu e que são as maldições. Assim, como o personagem principal, o espectador aprende os conceitos ligado à arte da manipulação de energia amaldiçoada e todo o conceito dos artefatos de poder e das maldições conforme a ação vai acontecendo e o trio de protagonistas vai sendo colocado em perigo. Enquanto Megumi Fushiguro e Nobara Kugisaki (companheiro de Yuji) aparecem com histórias claramente mais interessantes que a do personagem principal, o hospedeiro de Ryoumen Sukuna tem apenas vestígios de desenvolvimento quando interage com o demônio que o habita. Ryoumen é apresentado como um antiherói da série e demonstra, durante alguns episódios, parte do seu poder e o inexistente apresso pela humanidade (incluindo, é claro, um desprezo ainda maior por seu hospedeiro). Egoísta ao extremo, o Rei das Maldições negocia o compartilhamento do seu poder com o hospedeiro de sua alma conforme a necessidade aparece em troca de ganhar mais liberdade no corpo de Itadori (parece com uma certa raposa de sete caldas ou com um demônio do submundo trancado em um garotinho sem mana, não é mesmo?). Conforme os episódios se desenvolvem e desembocam em batalhas com cenas de cair o queixo, em nenhum momento o espectador fica empolgado com a atuação de Yuji e isso, infelizmente, tira boa parte do apelo do protagonista. O demônio que o habita, que é introduzido como a grande ameaça à humanidade, não chega a exercer o papel durante nem um segundo dessa primeira temporada e a posição de vilão principal do anime fica a cargo de Suguro Geto, uma espécie de rei do crime na sociedade das maldições. Misterioso e com aparições bastante esparsas na história, a origem e os poderes de Geto são apenas refletidos pelo grande respeito que maldições especiais (as mais poderosas deste universo) tem por ele e as habilidades do grande vilão não são postas à prova durante o primeiro conjunto de episódios.

    Ainda sobre os personagens, não poderia deixar de citar o grande nome da serie. Um dos personagens de anime mais hypados da atualidade, Satoru Gojo destaca-se com uma das coisas mais divertidas que o anime pode oferecer aos espectadores. Professor e responsável por Yuji e seus companheiros, Satoru guarda uma aura de trivialidade e pouca preocupação enquanto esconde um poder monstruoso no fundo de um poço de carisma. De design claramente inspirado em Hatake Kakashi (um dos mais populares personagens de Naruto), Gojo aparece como um dos mais indecifráveis enigmas de Jujutsu Kaisen: quando ele dá as caras na tela, você nunca sabe se ele vai dar um pirulito para o vilão ou arrancar a cabeça dele, sempre com um sorriso no rosto. Apesar de já ter destacado a muito mais do que excelente animação do estúdio MAPPA em todos os episódios, é importante dar especial atenção a duas cenas específicas durante essa primeira temporada que envolvem Satoru Gojo e que parecem ter sido o foco do extenso time de ilustradores e animadores do estúdio.

    Gojo e Kakashi: Em batalha? provável vitória de Satoru. Todo o resto? um empate técnico!

    Em linhas gerais, o anime parece muito com um Naruto ou um Black Clover para jovens adultos. Com cenas violentíssimas e conceitos pesados envolvendo toda a ideia por trás da manifestação das maldições, o anime consegue se manter fiel àquilo que apropriou de outras obras recentes e isso, posto que os próprios originais não conseguiram fazer, já consta como uma grande ponto positivo. Apesar de pouquíssimas coisas aparecerem como novidade nos personagens de Jujutsu Kaisen, o anime consegue manter um argumento central honesto e bastante simples (que certamente será traído até o final da história). Com algumas das cenas de batalha mais lindas e bem feitas que já foram feitas na indústria, a série assumiu merecido protagonismo no Crunchyroll e um longa de animação que contará uma história anterior ao anime já está anunciado com data de lançamento para o início de 2022. Provavelmente, só depois desse filme poderemos retornar à Yuji, Megumi, Nobara e, principalmente, Satoru Gojo. Vale a pena esperar!

  • Review | Darling in the FranXX

    Review | Darling in the FranXX


    As vezes tenho a nítida impressão de que o preconceito com animações e quadrinhos japoneses é justificável. A mania que alguns mangakás têm de soterrar suas histórias em poses sensuais, referências sexuais e meninas em trajes sumários é totalmente explicada pela cultura japonesa, menos permissiva num geral do que as culturas ocidentais. Mas isso atrapalha tanto a divulgação dessas séries fora do Japão que, as vezes, adaptações ocidentais poderiam se tornar mais palatáveis algumas excelentes histórias oriundas daquele lado do planeta. Darling in the FranXX é um excelente exemplo disso. Não é um desenho pra você assistir com algum parente na TV da sala, mas se você abstrair todo o fanservice, perceberá uma história que vai muito mais fundo do que o ecchi escancarado em todos os episódios.

    No futuro, a humanidade desenvolveu a capacidade de utilizar o magma no centro do planeta como fonte de energia. A utilização dela, entretanto, devastou a natureza e forçou a sociedade a se recolher para o interior de gigantescas estruturas móveis subterrâneas chamadas Colônias, onde as pessoas vivem sem qualquer contato com o mundo exterior. A exploração da energia magma trouxe, também, a aparição de seres que viviam nas profundezas do planeta e que passaram a emergir como grandes inimigos dos seres humanos: os Urrossauros. Para batalhar contra esses seres abissais, o excêntrico doutor Werner Franxx desenvolveu robôs gigantes que só podem ser pilotados por duplas de crianças. Os pilotos desses mechas, denominados parasitas, vivem dentro de abóbodas sobre as cidades subterrâneas, sem qualquer contato com adultos, sempre de prontidão para combater os urrossauros que, ninguém sabe porquê, atacam as colônias. Obedecendo as ordens de um grupo de governantes que nunca viram, os parasitam enfrentam os urrossauros de acordo com as ordens do “papai” na esperança de tornarem-se adultos e ganharem sua passagem para o interior das cidades que protegem, mas a chegada de uma nova criança a um dos esquadrões de parasitas, que é particularmente especial, pode colocar todo o plano das colônias e a humanidade inteira em risco.

    Darling in the FranXX, lançado no início de 2018, narra a história do 13º esquadrão de parasitas da APE (a organização chefiada pelo misterioso “papai”). Ao longo dos 24 episódios dessa animação original, o telespectador descobre a história do mundo e dos personagens criados por Code:000 (pseudônimo cuja real identidade nunca foi revelada) e produzidos através da colaboração entre os renomados estúdios Trigger (“Kill la Kill”) e A1 Pictures (do excelente “Fairy Tail”). A história é bem elaborada mas, como eu introduzi no primeiro parágrafo deste review, pode ser necessário um pouco de força de vontade para chegar até ela.

    Isso acontece porque desde o character design até o método desenvolvido para pilotar os robôs, praticamente tudo no anime traz alguma referência sexual e foi especialmente elaborado para causar um sentimento de “vergonha alheia” monstruoso. O sistema desenvolvido para utilização do poder máximo dos FranXX, por exemplo, depende de uma garota e um garoto que desenvolvem uma conexão quase literal. O sistema depende de uma pistilo (uma garota que, literalmente, fica de quatro e serve de base para o piloto do robô) e um estame (um garoto que precisa tomar assento atrás da menina e controlar o robô através de manoplas acopladas ao quadril da pistilo). As denominações para as funções dos parasitas são, não por acaso, as mesmas denominações dadas aos órgãos reprodutores das plantas. A primeira vista, o sistema extremamente machista de controle do robô causa desconforto ao espectador, com sequências de conexão meio forçadas e uma playlist bem peculiar de gemidos e acenos dos jovens parasitas durante os combates a bordo das máquinas.

    Praticamente tudo, nas sequências de combate, tem alguma conotação sexual.

    Mas se por um lado o anime escorrega fortemente no conceito básico por trás dos robôs gigantes, as sequências de ação que aparecem quando os FRANXX batalham contra os urrossauros destaca-se como um ponto bem positivo. Apesar da movimentação bem pouco natural dos robôs, o CGI nas cenas de batalha e principalmente a trilha sonora nos momentos de confronto são bem colocados e embalam de maneira empolgante. O roteiro desenvolvido ao longo dos capítulos também se aprofunda e revela conceitos que vão além dos pontos já destacados. O casal de protagonistas, bem interessantes, se desenvolve de forma madura e mostra uma evolução notável desde os primeiros episódios, demonstrando a real profundidade da trama.

    No início do desenho eu mesmo me peguei pensando sobre o que eu estava fazendo enquanto assistia Darling in the FRANXX, e você provavelmente também vai ter alguma dificuldade de se acostumar à crianças tão jovens se colocando em situações como as que o anime propõe. Mas isso tudo se torna secundário quando você entende a real história por trás do ecchi exagerado. Em sua essência, a série conta a história de 10 crianças e sua jornada de amadurecimento enquanto passam por uma adolescência bastante atribulada. Além das várias sequências incômodas, há dezenas de outras cenas extremamente triviais mas que mostram o desenvolvimento do roteiro e deixam claro que o desenho é muito mais do que uma japonezisse com robôs gigantes e menininhas em lycra. O encontro das crianças com sentimentos inexplorados, suas primeiras decepções com o mundo e o evidente amadurecimento delas como seres humanos é uma jornada interessante de acompanhar e, do meio para o final, extremamente emocionante.

    O grupo heterogêneo de personagens conta uma belíssima história de amadurecimento que, infelizmente, foi soterrada por uma montanha de ecchi.

    Com boas sequências de ação, uma trilha sonora impecável e excelente desenvolvimento de personagens, Darling in the FRANXX demorou alguns episódios, mas despontou como um dos animes  originais mais emocionantes dos últimos anos. Como martelado durante toda a resenha, é importante entender as sequências desnecessariamente sexualizadas como uma manifestação cultural de um anime que não foi pensado para ser consumido por adultos ocidentais. O final um pouco acelerado demais e o trabalho ineficaz com alguns elementos de roteiro na última reta evidenciam esse fato, mas o anime permanece extremamente bem recomendado. Além de uma excelente história de crescimento e desenvolvimento humano, ainda ensina um pouco sobre a indústria cultural japonesa e escancara a diferença cultural entre nós e eles. Apesar do clamor de todos os fãs para uma segunda temporada, não há qualquer indicação dos estúdios acerca de uma nova (e desnecessária) continuação. O anime está disponível, completo e de forma legalizada, no Crunchyroll.

  • Review | Dr. Stone – 1ª Temporada

    Review | Dr. Stone – 1ª Temporada

    Poucas coisas são mais sem limites do que a criatividade japonesa. Algumas das maiores maluquices criativas no campo da cultura POP vem de lá e, especialmente no mundo desenhado, eles comprovam esta afirmação. Animes e mangás dos mais variados estilos e gêneros cobrem, basicamente, todos os tipos de gostos que existem e, neste sentido, são muito mais universais do que os comics norte-americanos.

    Alguns arquétipos se repetem no mundo dos quadrinhos e animações orientais, é claro. Existe um sem-número de Gokus, Narutos e Seiyas nos títulos mais famosos, mas o típico shonen para garotos adolescentes vai muito além de um jovem garoto sem amigos com um poder extremo escondido dentro de si. São obras que vão do robô gigante espacial à jovem apaixonada pelo garoto novo do colégio, passando por samurais que vivem num mundo futurista, monstrinhos que lutam para entretenimento dos humanos, um jogo de videogame que prende o jogador em seu mundo virtual e até um esporte nacional baseado em combates violentíssimos cujas regras permitem apenas o uso dos seios e das nádegas (google “Keijo anime”, mas numa aba anônima e longe da família, tá?).

    Tudo o que você imaginar, o Japão já desenhou ou animou (provavelmente, os dois) antes de você. Em uma de minhas primeiras incursões no RPG de mesa eu já pensava em criar um bardo cientista, inventar a arma de fogo e dominar aquele mundo com meu avançado intelecto do século 20. O tema do anime resenhado no post de hoje é, pra dizer o mínimo, bastante peculiar e eu tenho “dez bilhões porcento de certeza” que você também já deve ter imaginado algo parecido.

    Para Senku Ishigami, o mundo é tão complexo quanto a ciência mais cabeçuda que o explica. Com uma memória praticamente sobre-humana, o garoto conhece a explicação científica por trás de qualquer evento observável e é uma verdadeira enciclopédia humana para seu único amigo na escola. Um dia, sem aviso prévio, um raio cósmico de natureza desconhecida atinge o planeta Terra e irradia através do mundo inteiro, petrificando toda a humanidade e acabando com a hegemonia humana no globo. 3715 anos após sua petrificação, e também sem nenhuma explicação, Senku irrompe de seu casulo de pedra para descobrir que é o primeiro ser-humano a reverter sua condição de estátua. Descobrindo-se sozinho em um mundo que regrediu à idade da pedra, o garoto começa a utilizar seu elaborado pensamento científico na esperança de acordar todas as vítimas do raio cósmico. Após acordar seu melhor amigo, Taiju Oki, Senku planeja aprimorar sua fórmula de “despetrificação” para acordar toda a humanidade ainda em estado de pedra. Quando uma situação adversa o obriga a despertar o maior brutamontes da escola, Tsukasa Shishio, este rapidamente se opõe ao pensamento científico de Senku e parte para tentar matá-lo. Certo de que o futuro que Tsukasa planeja para este novo mundo de pedra não tem espaço para adultos e para a ciência, Senku Ishigami se une a uma pequena comunidade de “homens das cavernas” e precisa convencê-los sobre o poder do pensamento científico enquanto desenvolve as ferramentas da ciência que permitirão que ele possa enfrentar o gigante Tsukasa e seu exército de brutamontes. Conseguirá ele reproduzir o avanço de tecnológico que a humanidade levou milhões de anos para alcançar, antes que Tsukasa o encontre?

    Dr. Stone é uma animação japonesa, produzida pela TMS Entertainment, baseada em um mangá homônimo escrito por Riichiro Inagaki e ilustrado pelo sul-coreano Mujik Park, mais conhecido como Boichi. Os capítulos do mangá foram publicados originalmente no Japão pela Weekly Shōnen Jump e a série animada foi transmitida em diversos canais japoneses sendo, no Brasil, distribuída em transmissão simultânea através do Crunchyroll.

    Dr. Stone é interessante, principalmente, pela quebra que ele apresenta no gênero. O anime tem uma qualidade gráfica, de animação e um ritmo de roteiro muito lugar comum para um shonen como One Piece ou Naruto, por exemplo, mas batalhas de fato acontecem em apenas duas situações nessa primeira temporada e elas passam bem rápido. O anime é um shonen com uma carga de adrenalina bastante elevada apesar do tema científico que, a priori, não evoca esse tipo de velocidade e urgência na ação. Boa parte dessa urgência que conduz a velocidade da trama reside nos desafios, algumas vezes físicos, que os personagens têm que enfrentar para desenvolver uma nova tecnologia. A ameaça de Tsukasa fica, durante toda essa primeira temporada, muito longe de Senku e dá espaço mais do que suficiente para o personagem carregar o roteiro.

    Há uma claríssima importância, no roteiro de Inagaki, para a acurácia científica de quase tudo o que Senku explica durante a série, e esse também é um ponto importantíssimo do desenho. Desde o cálculo de consumo energético de um cérebro humano e da força necessária para mover um tronco utilizando polias até a fórmula de criação da pólvora e mesmo o processo utilizado na construção de uma bomba de vácuo rudimentar para um lâmpada elétrica, todos os argumentos científicos de Senku são muito próximos da ciência real do nosso mundo. Algumas situações são menos fáceis de acontecer na natureza e exigem uma perícia na manipulação dos elementos que os personagens provavelmente não possuiriam sem treino, mas adicionando um pequeno distanciamento (comumente chamado de “suspensão da descrença”) nada é 100% impossível de acontecer. Alguns artigos na internet (com fontes mais menos confiáveis) resumem bem o corajoso pensamento e estudo científico empregado nos roteiros.

    Senku Ishigami: protagonista utiliza conhecimento científico no lugar da força.

    Os personagens utilizados nessa primeira temporada do anime são carismáticos e bem explorados. Logo no início dessa temporada, o roteiro acertadamente remove Tsukasa e Taiju de praticamente todos os episódios, e isso é muito importante para que o anime tenha foco total na ciência necessária para o desenvolvimento de sua trama. Taiju e Tsukasa, ambos nada científicos, permanecem importantes para o desenvolvimento e evolução dos outros personagens, mas o foco total do desenho é em Senku. O cientista é personagem central da trama e ponto focal de todas as discussões importantes sobre o pensamento científico e sobre o funcionamento da ciência. Nesse ponto, o personagem se torna uma espécie de antropomorfização do pensamento científico e age, sempre, pensando na evolução das tecnologias naquele mundo de pedra, não tendo espaço para relacionamentos que não sejam puramente fonte de força de trabalho para os seus objetivos. Senku trabalha para o desenvolvimento de sua própria agenda, demonstrando como o efeito colateral desse desenvolvimento é benéfico para as pessoas ao seu redor.

    Alguns outros personagens possuem, sim, algum espaço na trama e eles cumprem propósitos muito claros no decorrer do desenho. O feiticeiro do vilarejo de homens das cavernas, Chrome, pratica uma espécie de ciência empírica e acredita que o que faz é magia até se encontrar com Senku (fonte da real ciência daquele mundo), que o ilumina e o transforma em um “cienceiro” como ele. Os outros habitantes da vila não passam de personagens truculentas e anti-ciência que vão sendo, aos poucos, conquistadas pelas benesses que o desenvolvimento da tecnologia de Senku apresenta ao vilarejo. Embora o ponto focal do anime esteja acertadamente posicionado nas ciências exatas, um dos personagens do velho mundo que traz um pouco mais de ciência para o mundo de pedra é um mentalista. Sua função, explorada de forma bastante rasa, é apresentar uma vertente de ciências humanas aplicando alguns conceitos de psicologia além de lançar um olhar antropológico, explicando de um ponto de vista menos teórico todos os movimentos que Senku promove para transformar o vilarejo pouco desenvolvido em seu “Reino da Ciência”.

    As sequências de animação são extremamente bonitas e bem animadas, e se saem aqui também como um dos pontos extremamente positivos da série. Embora a animação seja, em sua grande maioria, bastante sóbria e realista (tirando o cabelo do protagonista), alguns frames são hilariamente deformados quando um personagem faz uma careta ou o “Cyber-Senku” precisa explicar um conceito com um voice-over divertido. Num geral, a comédia abunda acertadamente durante toda a temporada sem tirar a seriedade dos conceitos científicos e tecnológicos dos episódios.

    Comédia tem espaço recorrente na série e é bem dosada em todos os episódios.

    Para ser completamente justo, o roteiro é um pouco machista e desmerece bastante a figura da mulher. Com exceção da guerreira Kohaku, todas as moças do vilarejo aparecem como objetos a serem exibidos e conquistados, chegando ao ponto de serem oferecidas como prêmio em um torneio de lutas do vilarejo. Levando em consideração a própria história de origem da vila dentro da história, esse desprezo pelo gênero feminino aparece como um contrassenso que incomodou um pouquinho. Algumas cenas parecem, também, sexualizadas de forma desnecessária em uma espécie de fanservice que, apesar de bastante raro e nada inesperado, também tira um pouco do brilho desta temporada. Boichi, mangaká responsável pelo traço no material que originou a série, é um reconhecido artista no campo do hentai japonês então, dado o histórico do desenhista, até que os momentos que incomodam nesse quesito são bem poucos. A maioria destes takes surge de forma forçada e não são bons, mas poderiam ser muito piores ou mais frequentes, dado todo o ambiente onde a obra foi produzida.

    Do vaso de cerâmica ao telefone, Senku Ishigami avançou rapidamente a tecnologia de seu mundo de pedra para expandir as fronteiras do Reino da Ciência. Ao longo de seus 24 episódios, Dr. Stone deixa claro o desenvolvimento incremental da tecnologia e como ela trabalha de maneira apartidária, podendo fazer o bem ou o mal a depender de quem a manipula. Esta primeira temporada, que terminou em dezembro de 2019, tem foco puro no funcionamento da ciência aplicada para seu próprio desenvolvimento mas a segunda, e última, deve colher os frutos desse desenvolvimento trazendo o embate anunciado entre Tsukasa e Senku numa espécie de luta da iluminação científica contra o obscurantismo do pensamento não-científico. Tem tudo para ser uma temporada de mais batalhas e, apesar de não ser algo que eu senti falta nesses primeiros 24 episódios, deve trazer um jorro de novidade para um desenho que mostrou coisas muito novas para o gênero.

    Numa época em que o pensamento científico está extremamente em baixa, Dr. Stone mostra a importância das ciências e reconta a evolução tecnológica e científica da raça humana de maneira divertida, pouco forçada e de forma belíssima. Um anime que vale muito a pena ser assistido por todos.